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“Canto dos Ossos”: A juventude se reinventa entre a morte e a eternidade

"Canto dos Ossos" (2020) - Foto: Divulgação

"Canto dos Ossos" (2020) - Foto: Divulgação

O cinema de horror brasileiro contemporâneo está em um momento singular. Vários filmes nacionais que utilizam códigos do gênero têm se destacado e suscitado ótimos debates. Nota-se uma pluralidade criativa entre eles, pois cada obra e realizador ou realizadora seguem caminhos muito próprios para abordarem imaginários, experiências e críticas sociais. Como exemplo, basta que eu cite Gabriela Amaral Almeida (“O Animal Cordial” e “A Sombra do Pai”), Marco Dutra e Juliana Rojas (“As Boas Maneiras”), Ramon Porto Mota (“A Noite Amarela”), entre outros nomes. Impressionando pela originalidade ao explorar as potencialidades do horror pelo trash e pela heterogeneidade, Petrus de Bairros e Jorge de Polo se juntam a essa turma com seu longa-metragem de estreia, “Canto dos Ossos”, premiado como Melhor Filme da Mostra Aurora na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

O filme lida com ambivalências, dualidades, com o vacilante. Sua produção de baixo orçamento e de trabalho coletivo — as funções como direção de arte, fotografia e som são assinadas por várias pessoas — se expressa de maneira livre e destemida. Mistura o terror sanguinolento e gráfico, de visual desconcertante (que se associa a possíveis reações físicas de repulsa e aflição), com uma tensão de cunho existencial numa ambiência que faz o familiar parecer estranho, pois são as praias de Búzios (RJ) e de Canindé (CE), mas também um outro lugar, fantasmagórico e misterioso. Não se limita ao explícito, mas não o recusa. E explora igualmente o que é apenas sugestão e o que é lacunar.

Somos apresentados aos seres vampirescos, que não seguem o que descreve a mitologia tradicional, pois aqui são retratados como pessoas comuns, trabalhadores ou desempregados, jovens LGBT, da periferia (vivendo sob a luz solar, inclusive) e que se encontram com amigos para conversas triviais, fumos, bebidas e paqueras. Na noite, porém, é quando sua monstruosidade irrompe e vemos suas incríveis unhas pontudas e apetite pela carne. O horror e o desejo se fundem na imagem, em cenas onde o erotismo ganha caráter disruptivo. Eles sentem prazer numa espécie de fusão total que só é alcançada pela destruição, corpos transfigurados pela abertura da pele, sangue que se espalha e exposição de órgãos.

E tudo volta à normalidade quando, na manhã seguinte, eles se limpam e se curam tranquilamente num lago, enquanto fazem selfies que não serão publicadas — das sequências de imagens mais marcantes e afetivas, no sentido filosófico, vistas na Mostra de Tiradentes. Fantasia e realismo, vida e morte, se abraçando em forma e conteúdo e evocando a ideia de partilha do presente e libertação possíveis. A força de uma comunidade que se reinventa para continuar sendo. A juventude transformando o horror vivido pela marginalização que lhe é imposta em performance de si e modos de (r)existência. Corpos políticos e semióticos que pulsam e querem seu lugar.

Entre esses jovens, acompanhamos Naiana, professora numa escola de ensino médio que tem seu trabalho constantemente perseguido, sendo que um dos livros que ela usa em aula, e que interessa uma aluna em especial, chega a ser censurado. “Quem define o que é obsceno?”, alguém narra. Acompanhamos também Diego, há alguns bons quilômetros dali, que trabalha como balconista de farmácia. É uma base de roteiro que logo se desprende da necessidade de contar uma história, uma vez que tudo é costurado e descosturado sem apegos a estruturas narrativas e convenções. Alterna-se entre espaços e situações como uma colagem arriscada e ruidosa.

Vários pequenos núcleos e diferentes violências possíveis compõem essa curiosa amálgama, mas todos sem muitas explicações e relações facilmente identificáveis. E os verdadeiros monstros estão na presença de um grupo empresarial dono de hotéis de luxo que ameaça a bonita paisagem e a vida no local, tendo inclusive sua logomarca estampada num lenço encontrado no local de um crime, além de estarem ligados a um projeto de doutrinação de crianças e adolescentes por meio de um programa a ser aplicado nas escolas que querem privatizar. A figura monstruosa e decrépita que surge (a la Palpatine, de “Star Wars”, incluindo a voz tenebrosa) parece liderar essas forças macabras, mas também humanas, de controle e opressão. E, diferentemente dos jovens, ela vive às escuras, escondida. No entanto, não se encontra numa casa mal-assombrada e abandonada, como se esperaria, mas numa edificação asséptica, espaçosa, paredes claras, de grandes janelas e arquitetura minimalista. Seria esse também um aceno às velhas políticas de higienização social?

O sobrenatural também se manifesta pelo doppelgänger ou duplo. E se, até este momento, não se tinha certeza do diálogo com David Lynch — mesmo com os vários “Tem fogo?”, que lembram o famoso “Got a light?”, de “Twin Peaks” — aqui a influência fica escancarada. Mas esse duplo não confronta, simplesmente vagueia. Ainda que aparentemente inofensivo, esse duplo me fez pensar como nosso próprio eu pode ser um estranho a nós mesmos. Nossa condição de eternos desconhecedores não somente do outro, mas também perante a um espelho, faz parte do que nos angustia mesmo que não conscientemente.

Não é possível apreender o mundo de fora e de dentro em sua totalidade, sempre haverá enigmas. “Canto dos Ossos” faz do enigma um cerne conceitual e libertador para o retrato de uma juventude que é vista como ameaça a uma ordem social. E entre imperfeições, mutações e experimentações de fotografia, filtros de câmera, trilha sonora e gosmas verdes, o filme desafia sentidos, a racionalidade e o conforto, projetando (des)limites entre realidade e imaginário — além de proporcionar uma “estética de moda gótica praiana”, como muito bem disse alguém da plateia no debate em Tiradentes. Enfim, uma obra com texturas à qual não se assiste indiferente. ■

Nota:

CANTO DOS OSSOS (2019, Brasil). Direção: Jorge Polo, Petrus de Bairros; Roteiro: Jorge Polo, Petrus de Bairros; Produção: Bárbara Cabeça, Julia Couto, Jorge Polo, Petrus de Bairros; Fotografia: Helena Lessa, Catu Gabriela Rizo, Irene Bandeira, Lívia de Paiva, Pedro Lessa, Juliana Di Lello; Montagem: Jorge Polo, Isabela Vitório, Petrus de Bairros; Com: Rosalina Tamiza, Maricota, Lucas Inácio Nascimento, Noá Bonoba, Mariana Costa, Ana Manoela, Thai Pata, Gabriel Freitas, Jupyra Carvalho, Paula Haesny Cuodor, Heloise Sá, Lucas Souza, Vitor Tambelli, Ana Luiza Santos-Fernandes, Luiza Victorio, Ramyro Carvalho, Lucas Bittencourt, Jorge Polo, Petrus de Bairros, João Filgueiras, Catu Gabriela Rizo, Gustavo Pires ; Estúdios: Lambeolhos Produções, Estúdio Giz. 88 min


Texto publicado originalmente em 7 de fevereiro de 2020.

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