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“Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu”: Quando o cinema entra em casa e senta à mesa

"Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu" (2020) - Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

"Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu" (2020) - Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

Fazer um filme pode levar uma vida inteira. Quando filmou a primeira imagem de seus pais, em 2010, Bruno Risas ainda não sabia que ela seria parte de “Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu”, uma estranha (no melhor dos sentidos) mistura de documentário familiar e ficção científica metalinguística que marca a estreia do diretor em longa-metragem. Na verdade, àquela altura, Bruno nem sabia ao certo qual filme seria feito. Ele, a família e o projeto mudaram juntos ao longo de todo o processo.

Constituído de cenas feitas por Bruno dentro da casa dos pais, em um bairro suburbano de São Paulo, durante um período de quase dez anos, “Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu” funciona como uma radicalização da proposta de hibridez documentário/ficção que certamente não surgiu no tempo recente, mas tem pautado diversas produções do cinema brasileiro independente contemporâneo – entre elas, algumas muito bem-sucedidas e premiadas, como “Ela Volta na Quinta”, do mineiro André Novais Oliveira, e “Vermelha”, do goiano Getúlio Ribeiro, realizadores que também usaram o lugar onde cresceram e vivem como locação e contaram com pais, irmãos, avós, amigos próximos no elenco de seus projetos cinematográficos, quando não eles mesmos.

É de vidas que esses filmes são feitos e por isso funcionam tão bem. No caso de “Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu”, Bruno não só tem ele, a família e a casa como personagens, mas também o próprio filme. A radicalização está na forma como ele incorpora a realização das cenas nelas mesmas.

A câmera não é invisível: sua presença é identificada e ressaltada desde os primeiros minutos, quando a narração em off do diretor nos contextualiza sobre a situação financeira difícil que os pais passavam após um revés ainda nos anos 90, o que os obrigou a mudar de casa e buscar novas fontes de renda. A partir daí, somos apresentados à rotina diária do casal principalmente, com Viviane, a mãe, sempre cuidando dos afazeres domésticos e Marcus, o pai, consertando uma coisa ali e outra aqui. A irmã e a avó de Bruno também aparecem e têm seus momentos de protagonismo. As cadelas de estimação roubam a cena sempre quando surgem. E há a câmera, que de corpo estranho se torna um novo membro dessa família de classe média.

Intrigante e envolvente, “Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu” é um filme sobre fazer um filme, que é making of de si mesmo e lida com os “erros de gravação” como parte essencial de sua matéria-prima. Na casa-estúdio da família de Bruno, a avó nota a presença da câmera na sala de jantar, faz graça para a lente e isso é uma cena. Um depoimento da mãe é interrompido por alguém que abre a porta, ela dispersa a atenção e isso é uma cena. A presença da fotógrafa (e ex-companheira de Bruno), Flora Dias, é deliberadamente revelada para nós, ao mesmo em que representa uma ausência fantasmagórica (no espaço fílmico e no espaço afetivo) e isso é uma cena. Uma cena fascinante, diga-se.

Fazer cinema nunca foi fácil no Brasil. Trabalhar e viver de arte, no geral, é uma escolha que demanda muito investimento financeiro, físico e emocional. Bruno se lançou a essa aventura e a família o acolheu. Quase como num gesto de retribuição, ele transforma seu primeiro longa em algo como um vídeo de registros caseiros, desses que insistimos em mostrar às visitas, mas que são lembranças eternizadas. Ao mesmo tempo, ele reflete sobre como o cinema é, além de arte, um ofício como outro qualquer. A mãe faz a faxina, o pai arruma a calha, o filho faz um filme. E numa situação de crise financeira como a que eles viviam, o cinema serve ao mesmo tempo como forma de resiliência e fabulação. A acolhida da família à proposta a transforma em uma atividade compartilhada por todos (Viviane e Julius também são creditados como roteiristas ao lado de Bruno, que ainda contou com auxílio de Maria Clara Escobar, cineasta profissional que tem no currículo filmes como “Histórias que Só Existem Quando Lembradas”, “Os Dias com Ele” e “Desterro”).

De um alienígena invasor, a câmera se torna não o E.T. de Spielberg ou Alf, o ETeimoso, mas uma coprotagonista que divide com Viviane as cenas mais emblemáticas de “Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu”. A relação da mãe de Bruno com a câmera se dá diversas formas. Por exemplo, há uma cena brechtiana em que ela lê o roteiro enquanto atua, sentada no sofá, narradora de si mesma. Há outro momento em que ela faz a sobrancelha da avó de Bruno, conversa com ela e a câmera carinhosamente as observa. Há também a fala de Viviane em resposta à curiosidade de Bruno sobre os trabalhos que ela teve antes de se tornar dona de casa, quando descobrimos que o emprego que ela mais gostou foi em um videoclube. Por obra ou não do destino, Viviane reencontra o cinema como atividade, agora dentro da própria casa. E então temos o momento em que mãe e filho têm uma discussão durante a gravação de um close-up dela.

Viviane (e aqui me refiro a ela não como pessoa física, mas enquanto pessoa imagética, a única que nos é tangível por meio do filme) não consegue controlar o riso e o filho fica bravo porque ela “estragou” a cena. Não há corte. Viviane responde que está se esforçando, mas que “não é atriz”. Pode não ser, mas a câmera segue com ela enquanto Bruno sai do aposento. Sem direção e sem roteiro (será? A dúvida também é interessante), o calor da emoção desta supermulher sutilmente revela um choro contido, possivelmente apenas a pontinha de anos e anos de mágoas e frustrações empilhadas. Um sofrimento não reconhecido pelas pessoas por quem ela vive. Os olhos inundados por lágrimas e o nó na garganta de Viviane simbolizam a dificuldade que é sim fazer cinema, mas dizem muito mais sobre todo um sistema social que desvaloriza o trabalho doméstico como atividade laboral e subjuga mães, avós, esposas, filhas. Mulheres.

Após ouvir sons esquisitos e se sentir atraída por uma força mantida fora de quadro, Viviane é abduzida – fazer cinema, literalmente, leva uma vida inteira. A família é “zumbificada” dentro de casa e a ficção científica surge enfim como gênero e como limite. Mas tudo voltará ao normal. O cinema afetou aquelas vidas na tela e, por um momento, diante das imagens, as nossas também. Mas nada muda após esses contatos imediatos, lá ou aqui. E essa talvez seja a principal constatação que Bruno faz. Que o cinema é atividade comum, que está em nossas vidas, que serve de espelho, prato e travesseiro. E que sendo um modo de sobrevivência ou uma forma de abstração, é um meio para nos ajudar a entender nossas vidas e lidar com o mundo. ■

Nota:

— Ouça o podcast com a entrevista que gravamos com Bruno Risas, família e equipe.

ONTEM HAVIA COISAS ESTRANHAS NO CÉU (2019, Brasil). Direção: Bruno Risas; Roteiro: Bruno Risas, Maria Clara Escobar, Julius Marcondes, Viviane Machado; Produção: Julias Alves, Michael Wahrmann, Felipe Santo; Fotografia: Flora Dias; Montagem: João Marcos de Almeida; Música: Juliana R.; Com: Viviane Machado, Julius Marcondes, Iza Machado, Geny Rodrigues, Bruno Risas, Flora Dias; Estúdio: Sancho & Punta; Distribuição: Vitrine Filmes. 109 min


Texto publicado originalmente em 7 de fevereiro de 2020.

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