Um dos aspectos mais interessantes da experiência de acompanhar um festival de cinema é perceber o trabalho curatorial em cada sessão. A ordem em que os filmes são programados, como dialogam ou contrastam entre si e como, às vezes, um filme pode fortalecer ou enfraquecer o outro quando se constroem essas relações, que também estão intimamente ligadas ao tempo e ao espaço em que se assiste.
Neste sentido, o ambiente online de exibição possui uma diferença fundamental das sessões em uma sala de cinema: não há controle da curadoria sobre como o espectador e a espectadora vão receber os filmes do dia, pois quando e como ver é uma escolha de cada pessoa. Soma-se a isso a variedade de tipos de telas e suas especificações técnicas de tamanho, som e imagem: TVs, telão, computadores, tablets, celulares.
Após a abertura do 9º Olhar de Cinema, veio o primeiro dia de programação e as minhas primeiras escolhas. Geralmente, eu me guio pelos filmes em competitiva e por produções cujos nomes envolvidos ou propostas me chamem a atenção. Na quinta-feira, dia 8 — e considerando também o filme de abertura exibido no dia anterior, leia a crítica aqui — o curioso foi perceber que as obras tratavam, cada uma à sua maneira, de coletividade e de espaços compartilhados. Grupos, estudantes, multidões, ruas, escolas. E eu, que estou em isolamento social na minha casa desde março, em decorrência da pandemia de Covid-19, acabei sentindo um certo estranhamento diante de imagens que antes eram comuns. Ao mesmo tempo, tornou-se forte a vontade de poder me familiarizar com isso novamente, de acessar o externo ao ambiente doméstico, ter contato e trocas com outros indivíduos, me sentir parte de um grupo e viver as imprevisibilidades e descobertas do que há fora da toca.
O documentário “Nardjes A.”(2020), de Karim Aïnouz, dentro da mostra de Exibições Especiais, me fez voltar ao Brasil de junho de 2013 e aquelas primeiras manifestações políticas tão difusas, que se alimentavam de uma insatisfação geral e, ao mesmo tempo, vigor e esperança nas ruas do país – embora, em retrospecto, os desdobramentos nos levem a ressignificar criticamente o momento. O filme, no entanto, não se passa aqui, em terras brasileiras, e nem em 2013, mas na Argélia e em 2019. A relação que fiz e a “viagem no tempo” aconteceu porque Aïnouz nos faz acompanhar um dia de protestos pacíficos contra o governo argelino de Abdelaziz Bouteflika, colado à jovem ativista do título, a Nardjes, desde o momento em que ela se prepara em casa até o momento em que descansa do ato público. E não é qualquer dia, mas o 8 de março, Dia Internacional da Mulher.
Inicialmente, Aïnouz planejava fazer um filme sobre as origens de sua família paterna, mas ao chegar na Argélia encontrou e se decidiu por essa outra narrativa. Embora pareça que não há relação com a primeira ideia, numa reflexão mais dedicada é possível conectar as coisas, pois ele não deixou de lado a inquietação sobre identidade, nacionalidade e parentesco, mesmo que tenha trabalhado tais questões não pelo viés autobiográfico, mas através de uma outra pessoa muito diferente de si mesmo. E ainda, a questão de passado, presente e futuro que se imbricam, pois Nardjes, em sua plena juventude, fala sobre a história de militância de seus familiares. Além disso, as suas reivindicações políticas contra a opressão e o autoritarismo dizem também de uma demanda de um tempo possível, sonhado, mas que não é o agora.
O agora, inclusive, toma conta do filme em sua forma e o torna contraditório em como se aproxima e como se distancia de mim — o que, eu acredito, deve acontecer com mais espectadores. Vendo-o com fones de ouvido, a imersão funcionou muito bem, especialmente nos momentos em que Nardjes estava em meio à aglomeração de manifestantes. O som caótico e por vezes abafado, os gritos, as músicas… Definitivamente, a dimensão sonora foi um elemento que serviu à aproximação do que ela vivenciou. Vale mencionar que o documentário foi todo filmado em um smartphone e que também as imagens estavam com ótima qualidade. Mas o filme não consegue ir além desse tempo do visionamento e do simples ato de acompanhar sua personagem, mesmo quando há a interação dela com outras pessoas. Não há reverberações, nem permanências que ultrapassem os limites do quadro. Ao final, passada a imersão, fica um certo sentimento de incompletude, de falta. E talvez isso seja reflexo de como eu vivo um outro momento e outros sentimentos. Não há como desconsiderar minha desilusão política (brasileira), muito distante da esperança e empolgação de Nardjes, mesmo que eu tenha estado imersa em sua vida e ativismo por um dia.
Ainda na quinta-feira, assisti a “Um Filme Dramático” (2019), do franco-americano Eric Baudelaire, da Mostra Competitiva de Longas. Aparentemente simples e modesto em sua proposta metalinguística, o documentário abraça a colaboração lúdica e espontânea de crianças e pré-adolescentes em seu feitio, ao mesmo tempo que elas próprias tentam se relacionar com o cinema e suas ferramentas, inventando, conversando, brincando. O filme foi realizado ao longo de quatro anos numa escola do subúrbio de Paris. Aos alunos e alunas foram entregues equipamentos de filmagem e assim elas exploraram espaços e diálogos da maneira que lhes interessava.
Pensar o dispositivo não é nenhuma novidade, mas aqui há perspectivas e texturas únicas que enriquecem a experiência e acrescentam outros pontos aos debates nunca esgotáveis sobre o fazer cinema. Há muita beleza no tempo que passam e amadurecem juntos, em como vão refletindo sobre questões muito pessoais e também as sociais e políticas — principalmente sobre racismo — em como se elaboram em separado e em grupo, em como as imagens também se modificam nesse tempo. Então, não é só o filme dentro do filme. Acompanhamos um universo sobre crescer, se relacionar e se expressar. E como eu comentei no início desse texto-percurso, percebo a falta que faz a imprevisibilidade dos encontros presenciais e as trocas coletivas tão essenciais para esses processos. Sensível a isso, posso dizer que todos os longas-metragens vistos nesses primeiros dias de festival — “Para Onde Voam as Feiticeiras”, “Nardjes A.” e “Um Filme Dramático” — são atravessados pelo conceito de comunidade e pertencimento, suas consonâncias e fricções. E, assim, emerge uma questão: como se fazem as comunidades no ambiente online?
Obs.: “Nardjes A.”, de Karim Aïnouz, e “Um Filme Dramático”, de Eric Baudelaire, ficarão novamente disponíveis para acesso no dia 12 de outubro, segunda-feira. E o Olhar de Cinema segue com outros filmes e atividades até dia 15 de outubro, quinta-feira.