Os filmes que se afirmam “no feminino”, ou feministas, equilibram-se sobre uma corda bamba. De um lado dela, está a pauta feminista como mero fundo temático. Do outro, o feminino como uma questão formal, uma outra maneira de pensar e fazer cinema – um olhar. Se pendem demais para o primeiro lado, as produções correm o risco de se tornarem didáticas e pouco sutis – lembrando mais um episódio de TV do que um filme. E se radicalizam exageradamente para o segundo, podem alienar um público mais leigo que precisa acessar o que elas têm a dizer/mostrar.
No primeiro dia da competitiva internacional do Porto Femme, uma série de curtas serviu como bons (e médios) exemplos do primeiro caso. O finlandês “Linda Menina”, de Merja Maijanen, aborda a questão da violência doméstica, mas apesar de ser um retrato interessante de como crianças aprendem a mentir – ensinadas pelos adultos – não tem nada de muito novo a dizer ou encenar sobre o tema, pouco ajudado por um roteiro e atuações medianas. Já o inglês “Ondulações”, de Aleksandra Czenczek, explora a gordofobia internalizada e problemas de autoimagem, com uma bela sequência de uma sororidade possível, talvez utópica, numa piscina. Ao fim, porém, parece mais uma ideia incipiente não totalmente desenvolvida. E o alemão “Trabalho Manual”, de Marie-Amélie Steul, enfoca a censura nos países árabes, com um humor cheio de potencial que o roteiro e a realização ignoram em favor de um esquete televisivo fraco. Os três são absolutamente clássicos em sua abordagem e se alicerçam quase exclusivamente nos tópicos que desejam discutir.
A proposta mais interessante, nesse sentido, veio de Taiwan. Numa pegada entre o nonsense e o deboche, a videoartista BadBadMeowMeow transforma a busca pelo clitóris em um videogame oitentista em “O Labirinto da Minha Vagina”. Com uma técnica de animação que mistura o recorte, o 2D e gráficos típicos do Atari, Nintendo e afins, ela usa o humor para guiar o bonequinho de um astronauta pelo labirinto do título. É possível argumentar que as gags visuais sobre preliminares, o poder do flerte e os caminhos rumo ao orgasmo feminino poderiam ser ainda mais afiadas – mas ainda assim a ideia é boa, funciona e não se estende mais do que devia.
É importante ressaltar, porém, que nem todos os filmes no Femme são necessariamente feministas ou voltados para questões inerentes ao movimento. Um dos curtas mais bem resolvidos do primeiro dia de competições, por sinal, foi “Nesta Terra Somos Temporariamente Fantasmas”, de Myanmar. Nele, a diretora Chen-Wen Lo conta a história de um casal de irmãos, soldados num exército infantil, capturados ao tentarem fugir e presos até que um acate a ordem de matar o outro. A cineasta coloca o espectador dentro do ambiente escuro e claustrofóbico do estábulo onde os protagonistas se encontram presos, com um fio quase inexistente de luz e esperança, extrai ótimas performances de seus dois atores mirins e consegue alternar bem com as sequências de sonho/devaneio da garota (ou “miúda”, como dizem cá em Portugal) fora dali. O filme diz muito sobre a violência sem sentido do conflito armado no país, sem dizer quase nada, apenas mostrando, com um tom pouco discursivo e nada didático ausente em algumas das outras produções do festival.
Mia por Solveig
O dia se encerrou com a exibição do média-metragem “Sou Autor do meu Nome Mia Couto”, documentário de Solveig Nordlund sobre o moçambicano considerado um dos principais escritores da língua portuguesa hoje. Sueca naturalizada e radicada em Portugal há anos, a cineasta acompanha o autor pela cidade da Beira, em Moçambique, onde ele é uma celebridade local, retratando desde sua infância, sua ligação de proximidade e intimidade com os conterrâneos, sua obra, adaptações teatrais e cinematográficas, visitando espaços que revelam sua história pessoal e suas outras facetas, como biólogo e ambientalista.
Pela descrição, é possível perceber que se trata de um documentário, acima de tudo, informativo e jornalístico. Os já iniciados na obra de Couto vão gostar de saber aspectos mais pessoais e pouco conhecidos do escritor, e quem pouco sabe sobre ele tem uma boa chance de descobrir os motivos e a ligação com Moçambique que alimentam a escrita do autor. Como cinema, não traz nada de muito novo ao gênero.
De fato, articulado, desenvolto e vaidoso em frente à câmera, Mia Couto quase assume a co-condução do filme com seu testemunho quase ininterrupto praticamente dirigindo o que se vê e ouve. Mas, é claro, a montagem final, que divide o média quase em capítulos sobre os diferentes aspectos do escritor, coube a Nordlund, que deixa claras a admiração por seu personagem e a curiosidade em ouvir suas reflexões e dar espaço na tela ao seu universo biográfico e artístico.
O crítico atualmente mora em Portugal e viajou ao Porto Femme a convite do festival.