O melhor filme, ou ao menos o mais instigante, da competitiva internacional do 3º Porto Femme até agora foi exibido na tarde de quinta na Casa Comum da Reitoria da Universidade do Porto. Dirigido pela belga Alexe Poukine, o documentário “O que Não Mata” tem uma premissa aparentemente simples: o filme conta a história da violação de uma mulher. Ou mais especificamente: a história de Ada, uma jovem que, eventualmente, dá-se conta de que o breve relacionamento sexual que ela teve com um homem, aos 19 anos, foi um ato de violência.
O que torna o longa tão interessante, porém, é que o espectador nunca vê essa mulher – a cineasta se recusa a re-perpetuar a violência de que Ada foi vítima ao fazê-la sentar-se em frente à câmera, relatando tudo que lhe aconteceu. Em vez disso, Poukine convida várias atrizes – e dois atores – para contar o calvário vivido por ela, por meio do que podem ser considerados longos monólogos extraídos de uma narrativa em primeira pessoa de Ada, transformados em depoimentos documentais pelo dispositivo fílmico.
“O que Não Mata” começa com uma mulher tentando se lembrar de como tudo começou, como se fosse uma memória pessoal difícil de resgatar. A partir de certo ponto, uma outra continua, depois outra – e outra. Porque o filme não é sobre um momento de agressão. É sobre como um estupro, assédio ou violação sexual é uma violência que reverbera por anos, talvez para sempre, na vida de quem o sobrevive. A narrativa de Ada repercute por uma década – tirando sua vida completamente do eixo, numa série de novos traumas, retraumatizações e novas compreensões – e é tão mais sofrida com o passar do tempo, especialmente porque não é um caso preto no branco, em que o estupro é claro imediatamente. É um daqueles encontros sexuais complexos, em que o ponto no qual o consentimento se esvai é difícil de demarcar, tornado ainda mais fragmentado e volátil pelos processos subjetivos da memória, demorando um tempo para que ela mesma perceba o que lhe passou, assim como seu papel naqueles eventos – com as próprias atrizes, em determinados momentos, admitindo a dificuldade de entender certas escolhas e decisões de Ada na história.
E é exatamente essa interação entre atrizes/mulheres e história o que faz do filme um exercício eduardocoutiniano fascinante. Ao mesmo tempo em que leem e interpretam o relato para a câmera de Poukine, as convidadas (e os dois convidados) tecem comentários sobre o texto/caso, e também acrescentam relatos próprios de violências que sofreram. A diretora, no entanto, nunca avisa previamente quando uma das mulheres está fazendo um depoimento pessoal, ou voltando ao texto/roteiro, cabendo ao espectador discernir entre um e outro.
O resultado disso deixa claro duas coisas. A primeira é como a narrativa de Ada é uma história comum a todas as mulheres. É um exemplo específico de uma epidemia social, e as atrizes no filme não tornam aquele relato tão impactante simplesmente por serem talentosas (são, todas), mas porque identificam, reconhecem e compreendem toda a dor e os sentimentos contidos nele. O que muda é o ponto de entrada e identificação de cada um(a) nessa narrativa da violência sexual, com uma das atrizes negras, por exemplo, explicando como ela – em seu lugar social infinitamente mais vulnerável – não teria se colocado na mesma situação de risco narrada; ou os dois homens, nada surpreendentemente, tentando compreender e se colocando no lugar do violador.
O segundo reflexo é como é necessário falar, discutir e refletir sobre estupro, assédio e violação sexual. Para que entendamos as reais nuances do que significa consentimento, e casos como o de Ada não sejam tão difíceis de compreender – e para que, nas palavras dela, a “diferença entre culpa e responsabilidade” fique mais clara para todos nós. Em suma, para que, como no exercício proposto por Poukine, aprendamos a nos colocar no lugar das pessoas que sobreviveram a algo assim, e tenhamos mais empatia por elas(es) – e por nós mesmos. É isso que faz de “O que Não Mata” um exercício humano, cinematográfico e de encenação – de colocar em cena, de dar a ver e falar – tão único.
Marielle vive
Com o perdão por me estender um pouco em tempos de ciberlândia 2020, não poderia deixar de registrar um dos destaques da competitiva nacional do Porto Femme este ano: “Por Onde Anda, Teresa Villaverde?”. O curta é parte de uma série do centro francês Georges Pompidou sobre cineastas portugueses. A diretora do título, talvez a principal mulher em atividade no audiovisual lusitano, decidiu filmar o seu “capítulo” durante uma estada no Rio – mais especificamente na quadra da Mangueira, em 2019, durante a apuração que deu o título do carnaval carioca ao samba-enredo da escola sobre Marielle Franco.
O filme resultante é uma captura única de um estado de êxtase e profusão emocional indescritível em palavras. A câmera de Villaverde é hipnotizada pelos rostos dos membros da escola durante a expectativa e celebração por cada nota, registrando não pessoas, mas imagens e estados de pura emoção. A partir de determinado momento, quando a vitória já está definida, é como se a realização da cineasta fosse cooptada pelo turbilhão de sensações e de potência orgásmica do carnaval carioca – com a câmera sendo jogada de um lado para o outro, captando borrões de corpos, fragmentos de momentos, não um acontecimento, mas um estado de espírito e uma catarse ilustrada por meio cores e sons na tela, com o samba-enredo tocando ininterruptamente no fundo.
Dirigido por uma portuguesa, “Por Onde Anda, Teresa Villaverde?” é um registro único da capacidade brasileira de transformar um trauma tão recente, e uma dor tão irredimível, em um grito de arte e uma explosão de alegria. É uma forma única de luto, que mistura dor, indignação e resistência por meio da mais pura recusa a perder o espírito de luta e de gozo inerentes a Marielle. Para o espectador estrangeiro, talvez seja algo quase tribal. Para nós, é uma experiência e uma emoção única, sintetizadas no rosto de Mônica Benício ao chegar na quadra da Mangueira. Num certo sentido, o curta de Villaverde é um filme fascinado com rostos – com esses rostos brasileiros capazes de condensar tantas emoções ao mesmo tempo, como uma pintura abstrata que não se explica, apenas expressa.
O crítico atualmente mora em Portugal e viajou ao Porto Femme a convite do festival.