Durante as entrevistas de divulgação de “Retrato de uma Jovem em Chamas”, a cineasta Céline Sciamma disse várias vezes que um de seus objetivos com o filme era desconstruir – ou destruir – o conceito de “musa”. Porque “musa” foi um termo usado historicamente para apagar a contribuição e a participação criadora feminina na história da arte.
A programação de sexta-feira do Porto Femme contou com a participação de duas artistas referidas repetidas vezes como grandes “musas” do cinema brasileiro e português – Helena Ignez e Isabel Ruth. A primeira, claro, é bastante conhecida dos cinéfilos do Brasil como um dos ícones do cinema independente e “marginal” do país. E a segunda, para fins de contextualização, é uma espécie de Fernanda Montenegro lusitana, uma das grandes damas do cinema local desde que estrelou, em 1963, “Os Verdes Anos” – considerado um dos principais títulos, se não o principal, do Novo Cinema Português.
Além de ter seu longa “Fakir” exibido alguns dias atrás, Ignez marcou presença no festival com “A Mulher da Luz Própria”, documentário biográfico dirigido por sua filha Sinai Sganzerla. E aos 80 anos, Ruth foi a grande homenageada da sessão de gala à noite, no Cinema Trindade, após a exibição do curta “O Sapo e a Rapariga”, de Inês Oliveira.
Em “A Mulher da Luz Própria”, Ignez narra sua história em primeira pessoa, passando pela carreira no teatro e no cinema, o relacionamento conturbado com (e a perda da filha Paloma para) Glauber Rocha, o casamento com Rogério Sganzerla, o exílio e a venda de seu apartamento para financiar “O Abismo”, e sua reinvenção como cineasta após a morte do parceiro. O filme podia se chamar “A Verdade (ou O Evangelho) segundo Helena Ignez”. Já à noite, Isabel Ruth disse não entender bem no que exatamente consiste uma “homenagem” – quando seu trabalho é simplesmente ler um “guião” (roteiro, para os portugas) e encontrar nele a verdade para ser capaz de interpretar sua personagem.
São dois discursos que dizem muito da persona(lidade) e do ego de cada uma dessas mulheres. Mas, acima de tudo, são duas formas diferentes de dizer a mesma coisa; que elas nunca foram musas. Nenhuma das duas acordou um dia, decidiu ser bonita e usar sua beleza para inspirar homens a criarem grandes filmes. Ignez e Ruth são duas mulheres de cinema. Artistas. Co-criadoras de obras. Em certa medida, cineastas.
Se é inegável a importância de um diretor na concepção e criação de um filme, é também preciso questionar e discutir como a Política dos Autores, criada pela crítica francesa nos anos 1960, serviu – em grande parte – para dar quase todo o crédito no cinema a homens (quase sempre brancos, quase sempre heterossexuais). Diretores(as) de fotografia, montadores(as), atores e atrizes também são cineastas. Também criam cinema.
Quando Ignez entrou trotando Rio de Janeiro abaixo como Sonia Silk em “Copacabana mon Amour”, ela não só instaurou – chutando porta abaixo – um novo signo de mulher no cinema brasileiro. Um novo jeito de andar em cena, de encarar a câmera, de ser mulher na tela. Ela co-criou o longa com Sganzerla. Da mesma forma, a performance de Ruth como Ilda em “Os Verdes Anos” foi a abertura de uma porta para trazer ao cinema lusitano não só um novo tipo de atuação, mas de personagem e uma nova ideia de povo português, abandonando o matutismo protofascista, brejeiro e arcaico da ditadura salazarista e prenunciando o que viria a se tornar a Revolução dos Cravos em 1974.
Resumir isso a um termo como “musa” não é apenas equivocado – é ofensivo, míope e limita empobrecidamente a análise da complexidade, coletividade e dos processos criativos inerentes ao cinema. Porque cinema não é só uma coisa. Não é só um diretor com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Cinema também é mulher. É também Helena Ignez e Isabel Ruth.
O crítico atualmente mora em Portugal e viajou ao Porto Femme a convite do festival.