No caos apocalíptico do espaço-tempo chamado 2020, falo de um futuro em que festivais presenciais, e sessões de cinema, ainda (r)existem. O curioso é que se trata de um futuro no espaço, e não no tempo. Um espaço em que as pessoas acharam que ficar em casa por dois meses e usar máscaras para proteger os outros não eram um sacrifício assim tão impossível. Como recompensa, hoje é possível ver filmes no altar da sala escura, e não apenas em telas de tablets, celulares, TVs e computadores.
O que nos leva ao Porto Femme, que começou na noite da terça-feira, dia 6, no Cinema da Trindade, no Porto. Hoje em sua terceira edição, o festival foi idealizado em 2018 para pensar, e promover, o cinema – esse substantivo masculino, diferente da pintura, da música e da literatura – no feminino. A proposta já está declarada no nome – Porto Femme: Festival Internacional de Cinema no Feminino – e nas mostras competitivas, nacional e internacional, compostas apenas por filmes, curtas e longas, dirigidos por mulheres. “Somos um barco de sororidades, com uma crença quase utópica de que é possível mudar o mundo”, sintetizou a diretora do festival Rita Capucho, durante a cerimônia de abertura.
Na mesma cerimônia, diante de uma sala quase cheia (em tempos de distanciamento) e 100% mascarada, o festival se colocou como “uma criança de 3 anos, começando a se interrogar, a perguntar por quês, a questionar tudo e todos”. E essa interrogação dos feminismos que movem o evento foi exemplarmente representada pelo curta – brasileiro – escolhido para a sessão de abertura. Dirigido pela catarinense Loli Menezes, “Selma Depois da Chuva” conta a história da protagonista do título, interpretada por Selma Light, uma mulher trans que retorna à sua cidade natal com o objetivo de buscar a mãe (Amélia Bittencourt), sofrendo de um estado inicial de demência, para ir morar com ela na capital. O filme começa na estrada, com Selma ouvindo mensagens no celular enquanto a câmera enquadra a janela do ônibus – reforçando a ideia de transição, jornada, travessia inerente à protagonista. Mas é no encontro-confronto com a mãe que a trama se centra.
Em nenhum momento do curta, o nome de Selma é dito em cena, com a personagem sendo sempre chamada de “Nelsinho” – culminando no momento em que a mãe pergunta se “Nelsinho morreu”. “Selma Depois da Chuva”, no entanto, quebra com essa associação esgotada e equivocada de transexualidade a uma ideia de morte de alguém ou de uma identidade – curiosamente presente em um dos principais filmes queer portugueses, “Morrer como um Homem”, de João Pedro Rodrigues. Porque alguém que, na verdade, nunca existiu – como “Nelsinho” – não pode morrer.
Por isso, logo após a pergunta da mãe, Loli Menezes corta para um belo plano-sequência em que Selma chora na chuva, ao som de “Manhãs de Setembro”, de Vanusa. É um choro exagerado, uma sequência não-naturalista que tem a clara intenção de quebrar, de certa forma, o encadeamento bastante clássico da narrativa até ali. Porque não é exatamente um choro. É um parto. Ao gritar e chorar sob a chuva, Selma (re)nasce e afirma sua existência. O curta de Menezes associa, assim, a transexualidade à ideia de alguém que vem à vida. Se algo morre no filme, é aquela casa velha, com cheiro de naftalina e anos 50, filmada não por acaso em p&b, que as personagens fecham e abandonam no plano final. O que morre é um (ultra)passado que já passou da hora de ser enterrado.
E voltando ao Femme, programar esse filme logo na sua sessão de abertura é uma declaração clara e aberta desses feminismos em evolução, transformação, que se interrogam sobre si mesmos neste momento. Esse encontro entre uma mulher do presente, ou do futuro, e uma mulher do passado é o reflexo perfeito de um movimento que, em resposta a posicionamentos controversos, e absolutamente equivocados, como os de J. K. Rowling, por exemplo, busca integrar, incluir, e não segregar – a tal interseccionalidade. Busca olhar para o futuro, e abandonar o passado.
Nos próximos dias, espero ver como isso reverbera – ou não – nos demais filmes do festival. Que venha o futuro, e o cinema do futuro – e que ele (r)exista, de máscara ou não.
(Por motivos de transparência, devo expor que participei da comissão de seleção de uma das mostras do Femme, a XX Element, voltada para filmes dirigidos por homens, mas centrados em mulheres, ou com uma mulher chefe em posição criativa chave, como roteiro, fotografia ou montagem. Por isso, minha cobertura focará mais nas competitivas nacional e internacional, deixando de lado a XX).
O crítico atualmente mora em Portugal e viajou ao Porto Femme a convite do festival.