Em sua primeira edição online, a Mostra de Cinema de Tiradentes ofereceu ao público nove dias de uma programação gratuita intensa e diversa, com 114 produções brasileiras (31 longas, 2 médias e 81 curtas-metragens) de 19 estados, em pré-estreias mundiais, nacionais e mostras temáticas, além de debates e apresentações artísticas, que não perderam seu brilho diante de intercorrências técnicas próprias do ambiente digital. No encerramento do evento, que aconteceu no último sábado, dia 30 de janeiro, os filmes vencedores foram anunciados e tivemos a oportunidade de acompanhar ao vivo como cada realizador e realizadora recebeu seu prêmio. Mesmo que à distância, cada um em sua tela, emociona ver o cinema brasileiro sendo festejado, valorizado e defendido, especialmente em tempos tão difíceis de enfrentamento à pandemia e de desmonte de políticas públicas do setor cultural.
O prêmio mais aguardado, o de Melhor Filme da Mostra Aurora, foi concedido pelo Júri Oficial ao baiano “Açucena”, de Isaac Donato. Em fala transmitida em vídeo, a integrante do júri, cineasta e curadora Graciela Guarani apontou que o filme “celebra e movimenta as imagens para dar a ver o que não é da ordem do visível”, pois “acumula delicadamente um estranho familiar, evocando uma infância ou maternidade coletivas”. Diz ainda: “Com dissonância misteriosa, estimulada a partir do cotidiano de sorrisos, gestos e falas de uma comunidade envolta numa festa-ritual, premiamos um filme de partilha de sensibilidades”. Sensibilidade é mesmo uma força do filme que, como eu aponto em minha crítica, articula de maneira muito eficiente o que é estranho ao que é reconhecido, para documentar, sem invasão, uma realidade muito única, de um tempo e significações próprias.
Invasão, inclusive, é algo sobre o qual nossos povos originários sabem contar — e cantar. “Nũhũ yãg mũ yõg hãm: essa terra é nossa!”, de Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero, foi o vencedor da Mostra Olhos Livres, levando o Troféu Carlos Reichenbach, entregue pelo Júri Jovem. O filme acompanha os maxakalis em andanças pelo Vale do Mucuri, em Minas Gerais, enquanto estes narram a vida de seus antepassados naquelas terras e como diariamente lutam por elas e pela sua sobrevivência, em confrontos com os brancos moradores da região e também com todo um sistema de genocídio indígena, encabeçado por nossos governantes. No ano passado, na 23ª edição da mostra, o cinema maxakali também foi destaque quando Isael e Sueli receberam este mesmo prêmio por “Yamiyhex – As Mulheres-espírito”.
O Prêmio Helena Ignez, oferecido pelo Júri Oficial a um destaque feminino em qualquer função nos filmes das Mostras Aurora e Foco, foi dado à diretora e roteirista paranaense Ana Johann, que assinou “A Mesma Parte de um Homem”. A integrante do júri e pesquisadora Mariana Souto disse que a “maturidade demonstrada em um primeiro longa-metragem de ficção e a forma consistente como a diretora maneja os jogos ficcionais, desdobrando narrativas em outras narrativas” foram essenciais para a escolha da premiada. Na história, duas mulheres, uma mãe e uma filha, enfrentam as opressões e violências patriarcais numa vida interiorana de muito isolamento, dependência e medo. Quando um desconhecido com amnésia chega à sua casa, elas tentam inverter essa lógica de poder, experimentando momentos de libertação. Questionando papéis de gênero e fabulando possibilidades de intervenção numa realidade machista, o roteiro e a direção do filme são primorosos em seu minimalismo cheio de camadas. E aproveito para mencionar como dialoga diretamente com “O Estranho que Nós Amamos”, de Sofia Coppola, na elaboração de uma perspectiva feminina sobre afetos, perigos e mudanças a partir da presença de um “corpo estranho” masculino, mas ainda familiar.
Na Mostra Foco, o Júri Oficial escolheu o curta-metragem sergipano “Abjetas 288”, com direção de Júlia da Costa e Renata Mourão. A justificativa, lida pela crítica teatral Soraya Martins, integrante do Júri Oficial, apontou que “em um panorama de filmes que respondem a um caos político e social que beira o apocalipse, o filme deste ano reconfigura a transgressão estética do cinema de invenção e aponta para um futuro combativo e vibrante”, dizendo que o “trabalho inquieto de direção e o ritmo da montagem do filme constroem uma estética do transbordamento”. Além da direção e montagem, é preciso mencionar a direção de arte que salta aos nossos olhos e a performance da dupla de protagonistas Joana (Débora Arruda) e Valenza (Dandara Fernandes).
Já o Prêmio Canal Brasil de Curtas, entregue por um júri de críticos especializados formado pelo próprio canal, foi para “4 Bilhões de Infinitos”, de Marco Antônio Pereira. De Cordisburgo, no interior de Minas Gerais, o diretor segue apostando na combinação do fantástico à singeleza e entrega, mais uma vez, uma narrativa de encantamento pela capacidade humana de invenção, fabulação e resistência. Agora pelo olhar infantil.
Mais destaques
Além dos filmes premiados, outras produções se destacaram durante a programação da mostra, como “Ostinato”, de Paula Gaitán, filme de abertura e que integrou a homenagem à cineasta. O documentário é uma investigação possível sobre a arte e o pensamento de Arrigo Barnabé, que deixa claro o quanto essa aproximação é apenas um vislumbre de seu processo criativo, revelando muito mais sobre a troca entre personagem e diretora. Já na Mostra Aurora, “Kevin”, de Joana Oliveira, trouxe uma força feminista intereseccional grandiosa, pois parte da amizade e protagonismo feminino de duas mulheres muito diferentes entre si: uma brasileira branca, que sofreu um aborto e lida com essa perda e o sentimento de culpa, e uma negra de Uganda, mãe de três filhos ainda pequenos. É no reencontro das duas que vemos uma linda união, uma co-criação de possibilidades e enfrentamentos pelo afeto, pela convivência, pelos gestos cotidianos, domésticos. A narrativa e as imagens evidenciam a diferença racial e cultural entre elas, mas apontam para a potência do andar junto.
“Eu, Empresa”, de Leon Sampaio e Marcus Curvelo, também da Mostra Aurora, aborda o mal-estar em torno da precarização do trabalho, especialmente pelas novas configurações impostas pela internet, aplicativos e redes sociais. Com humor e ironia, o filme questiona a irritante e constante profusão dos discursos neoliberais sobre “empreendedorismo”, “ser você mesmo”, a busca por sucesso profissional e reconhecimento público como validação da existência, que na verdade alimenta um capitalismo feroz e torna a sociedade cada vez mais doente (física e mentalmente) e também mais desigual.
Na Mostra Olhos Livres, “Rodson ou (Onde o Sol Não Tem Dó)”, de Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra, nos surpreende com sua estética de cultura remix, utilizando-se de recursos imagéticos de diferentes texturas, épocas e estilos. Tem VHS, tem videogame, videoclipe, cinema mudo… A colagem é tão vibrante que se torna sensorial. Não há como ser indiferente a essa experiência, assim como acontece com o curta premiado “Abjetas 288.” Também chamou a atenção o novo filme de Glenda Nicácio e Ary Rosa, “Voltei!”, que, apesar de não arrebatar como o anterior “Até o Fim”, repete muito do que deu certo neste (incluindo a cervejinha – embora aqui não esteja gelada), mas trazendo um novo pano de fundo, outros temas e sabores, ligados à política do “disparate”.
Na mostra temática Vertentes da Criação, os longas “Pajeú”, de Pedro Diógenes, e “#eagoraoque”, de Rubens Rewad e Jean-Claude Bernardet falam de temas coletivos por meio da fricção com seus protagonistas deslocados do conforto. “Pajeú”, já visto no 9º Olhar de Cinema, onde foi ganhador do Prêmio de Melhor Longa-Metragem Brasileiro, mistura o real e o ficcional a elementos de horror. Aprofundando-se na história do Rio Pajeú, sobre o qual a cidade de Fortaleza foi construída, a personagem Maristela (Fátima Muniz) é atormentada pelos fantasmas da urbanização e também por suas questões pessoais de identidade e pertencimento. Já o “#eagoraoque” discute atuação política com muita atuação cênica e questiona o lugar de um intelectual de esquerda, mais especificamente do professor Vladimir Safatle, que é colocado contra a parede, desestabilizado, ao ter que encarar suas contradições e o confronto com as pessoas da periferia, conscientes do inevitável abismo que há entre suas experiências. É bem interessante para refletirmos alianças e tensões nas lutas políticas e como o cinema estabelece contato no entremeio de visões.
Por fim, não posso deixar de mencionar alguns outros títulos marcantes, que se conectam e dialogam sobre o que é ser mulher neste mundo, mas em universos distintos: o longa “Irmã”, de Luciana Mazeto e Vinicius Lopes, os curtas “À beira do planeta mainha soprou a gente”, de Bruna Barros e Bruna Castro, e “Won’t you come out to play?”, de Julia Katharine, e o filme de encerramento da mostra, “Valentina”, de Cássio Pereira dos Santos. A vontade é ver tudo em tela grande, num Cine-Tenda ou Cine-Praça, pois cada obra cresceria ainda mais na imersão e coletividade calorosa da Mostra de Tiradentes presencial. Mas enquanto isso não é possível, o que fica é a satisfação do encontro com os filmes em minha casa e saber que, pelo online, o cinema nacional, com todas as suas discussões urgentes e concepções estéticas, chega a mais pessoas e permanece vivo.
Observação: Confira minha lista de premiados e destaques também no Letterboxd para imagens e mais informações sobre os filmes.