Qual a ação do tempo sobre uma obra; e mais, qual a ação do tempo sobre uma obra relegada? A conclusão de João Moreira Salles foi a metalinguagem. Em “Santiago”, é apresentado o modus operandi de se fazer e trabalhar cinema a partir de um material que, em outra época, fora desprezado.
Salles se aproveita dessa deixa para trazer ao público parte da sua transformação como diretor e mostrar como a experiência de vida traz perspectivas diversas sobre um mesmo material bruto, não apenas sobre aspectos de pós-produção, mas também da produção em si. No mais, é um filme ácido com relação à autocrítica. O diretor faz uma homenagem ao personagem-título – o mordomo que trabalhara em sua residência de infância por longos anos – sem deixar de também se colocar como personagem de sua própria obra.
Nesse sentido, o realizador se coloca como um personagem a ser criticado e repensado, pois o conteúdo e a forma de lidar com este conteúdo, produzido em época pretérita, tomaram outro significado com o passar dos anos, justificando a importância de retomar a obra apenas muitos anos depois.
Se me fiz bem entender, a juventude tem algo de primordial na ideia e na necessidade do ineditismo, ou do perfeccionismo plástico das imagens. Por outro lado, a maturidade traz consigo uma liberdade e uma ousadia no estilo de direção e de edição. Ela produz um desapego formal que traz resultado, pois acaba sendo uma consequência de uma vida toda de direção na qual se aperfeiçoa, não a forma e o fundo, mas a personalidade de se fazer o cinema. Salles representa essa questão escolhendo takes com sutileza narrativa bastante profunda, cenas simbólicas e aguçadas.
No contrabalanço entre as duas personagens, confesso que os relatos de Santiago foram decrescidos pelas cenas de fala do narrador-personagem. De alguma forma, apesar de intuir uma homenagem ao mordomo que, de fato, tem muito a revelar, suas cenas acabam servindo de contrapeso aquelas narradas pelo diretor, como meros espaços de respiro. Veja, para o contexto da obra, em um olhar cosmológico, não são cenas que complementam a linearidade ou que impulsionam e “levantam a bola” para as cenas de intervenção do diretor; pelo contrário, são cenas nas quais Santiago discorre sobre conteúdos diversos, e poucos são os momentos em que elas tem esse condão de complementar ou dar encalço à narrativa do próprio diretor, como ocorre, por exemplo, ao final do documentário, quando tanto as cenas narradas por Salles quanto as cenas de Santiago se constroem e conversam sobre um mesmo tema: o afastamento do diretor de seu objeto de filmagem por não querer abrir mão de um preciosismo técnico, hoje, visto por ele, como menos importante do que a naturalidade e o conteúdo fervilhante de sua personagem principal. Inclusive, esta é, possivelmente, a mais impactante e significativa das cenas, promovendo um final espetacular, em um percurso fílmico que estagna no decorrer dos minutos, mas que cresce vertiginosamente nas cenas finais.
O documentário como uma revelação cinematográfica de um making of. Relutando o preciosismo técnico de sua fase juvenil, João Moreira Salles expõe, agora na fase madura, como a plasticidade deixa de ser essencial, quando percebe que, na essência, o que deveria ter sido posto em relevo durante as filmagens seria a naturalidade de Santiago. Este homem que em sua humilde grandiosidade tem uma personalidade forte, e é amplamente caricato em seus modos de agir. O diretor deixa isso muito exposto: suas manias e feições revelavam uma inteligência íntima sobre um homem que trabalhou para a aristocracia e, de certa forma, possuía um senso de curiosidade e interesse inesgotável sobre o aspecto histórico da classe social para a qual trabalhava. ■
SANTIAGO (2007, Brasil) Direção: João Moreira Salles; Roteiro: João Moreira Salles; Fotografia: Walter Carvalho; Montagem: Eduardo Escorel, Lívia Serpa; Estúdio/Produtora: VideoFilmes; Distribuição: VideoFilmes. 79 min