Dirigido por Eduardo Coutinho, “Jogo de Cena”, documentário de 2007, empreende um estudo sobre o comum e o ordinário. Um filme sobre realidades que dispensa quaisquer outros elementos senão a necessidade da pessoa, de sua memória e de sua capacidade comunicativa. Sobre um palco de teatro com um fundo escurecido, Coutinho entrevista mulheres que atenderam a um anúncio fixado em locais públicos, convocando aquelas que viviam no Rio de Janeiro, tivessem mais de 18 anos e histórias para contar. No entremeio das conversas, ele anexa a atuação de atrizes famosas (Marília Pêra, Andrea Beltrão, Fernanda Torres) que interpretam as histórias daquelas mulheres anônimas, dando continuidade aos seus relatos, como se estivessem as substituindo no palco, numa verdadeira mimetização das personagens selecionadas.
É um belo ensaio sobre histórias reais e a capacidade interpretativa das atrizes. Um estudo sobre o papel do ator, que para além da reprodução da fala, precisa incorporar gestos, expressões e modos de se comunicar. Cada vez que a história real dá lugar à imitação feita pelas atrizes, conseguimos realizar esse exercício, de notar o quanto elas conseguem absorver a expressividade do real e trabalhar perante a câmera os trejeitos de cada desconhecida com quem tiveram contato ali, no jogo de cena, precisando incorporar suas histórias, realidades, perfis e dar vida, continuidade, para que o documentário se tornasse uníssono.
Essa alternância entre o encenado e o real causa um verdadeiro questionamento metalinguístico a respeito do cinema documental. Qual o teor de realidade proposto em um documentário? Coutinho, ao longo de sua carreira, percebeu que suas entrevistas, por vezes, eram encenações para a câmera, e que a atitude do indivíduo era sensivelmente alterada a partir do momento em que se iniciava a gravação.
Importante também perceber a diversidade das mulheres que ali se apresentam. As histórias são das mais impactantes às menos chocantes, mas há qualquer coisa de comum entre todas. Em suas vivências há um cordão umbilical que une o ser mulher ao modo de vida feminino na sociedade brasileira. Histórias de mulheres que, nas mais diversas faixas etárias, foram filhas, mães, irmãs e esposas. Se há qualquer coisa de vínculo entre elas, pode-se acreditar que é o pesar daquilo que marcou suas entrelinhas. Majoritariamente, histórias sobre gravidez – esperadas ou nem tanto – sobre casamentos mal sucedidos, homens que deixaram marcas indeléveis sobre a trajetória, e sobre relações familiares conturbadas. Mulheres de diversas classes sociais, mas que revelam forças e marcas que fazem entender o porque de chegarem até ali, ou de resolverem contar a um diretor de cinema suas próprias vitórias e derrotas.
Coutinho faz do palco de teatro uma sala de terapia indireta. Como espectadora, eu tive quedas na realidade. Por vezes eu me observei refletindo como todo ser humano tem em si fatos e versões. As pessoas são repletas de acontecimentos que gotejam em seus interiores e comunicam viéses. Elas têm sua racionalidade e subjetividades de forma contida e, talvez, um único espaço aberto por um diretor de cinema foi capaz de aflorar nessas mulheres a profundidade de um falar abertamente, porque contar, comunicar, é uma forma de se ouvir e até de ressignificar ou consolar as próprias memórias e traumas.
De uma forma um pouco fugidia do documentário em si, questiono qual o papel atual das redes sociais sobre a revelação de memórias e acontecimentos? Existimos sob o pressuposto de redes sociais que nos acolhem e que refletem nossas personas. Nas redes existe um teor de exposição que abre margem para uma seletividade daquilo que expomos e sentimos, e como é nossa demonstração para o mundo exterior. Cada vez mais, vidas imaculadas são expostas perante a exigência do perfil impecável, da vida sem o lado que dói. O quão impressionante seria exportar as vidas das redes sociais para um jogo de cena como o de Coutinho? Será que as pessoas com histórias para contar viriam de corpo e alma para abrir aquilo que as fazem humanas? Ou seriam histórias-reflexo do que se convencionou exibir nas redes? Será que uma versão 2020/2021 de “Jogo de Cena” seria um conto de fadas sob a perspectiva de que aprendemos a domar nossos interiores para sempre transparecer histórias felizes? Afinal, vivemos a época de demonização da tristeza e dos traumas, evitados a qualquer custo e escondidos por todos os meios.
“Jogo de Cena” tem a nos ensinar a perspectiva da humanidade, a importância da abertura, o olhar para além das aparências e a naturalização de que a vida em si é um conjunto de histórias e nichos felizes e tristes, traumáticos e esperançosos, de contatos reais e vidas que continuam, apesar de tudo ou por causa de tudo. E o bonito papel do teatro, das atrizes e das pessoas que se sensibilizam e conseguem atrair para si a história do outro, representando gestos e expressões com naturalidade.
O que me instigou a continuar pensando sobre o filme após o seu fim não foi exatamente a sua construção técnica, mas o futuro pesado e carregado por aquelas mulheres em cena. O que aconteceu com elas após o jogo de cena? O que aconteceu no jogo de suas vidas? Como foi difícil me separar depois de me envolver tanto com suas histórias. ■
JOGO DE CENA (2007, Brasil) Direção: Eduardo Coutinho; Produção: Bia Almeida, Raquel Freire Zangrandi; Fotografia: Jacques Cheuiche; Montagem: Jordana Berg; Elenco: Marília Pêra, Andrea Beltrão, Fernanda Torres, Aleta Gomes Vieira, Claudiléa Cerqueira de Lemos, Débora Almeida, Gisele Alves Moura, Jeckie Brown, Lana Guelero, Maria de Fátima Barbosa, Marina D’Elia, Mary Sheila, Sarita Houli Brumer; Estúdio/Produtora: Matizar, VideoFilmes; Distribuição: VideoFilmes. 100 min
Acadêmica de Direito na Universidade de São Paulo. Cinéfila, fez das salas de exibição sua segunda casa. O cinema é, junto da fotografia, a arte responsável por ensiná-la a olhar o mundo nos seus traços gerais e específicos. Em sua vivência acadêmica busca aperfeiçoar o entrelaçamento das duas áreas do conhecimento.