Começar uma resenha pela apresentação do roteiro é quase uma receita pronta para desenvolver um raciocínio. Creio que desta vez não conseguirei começar por essa estratégia. Posso dizer apenas que “Vou Morrer Amanhã” (She Dies Tomorrow) é um filme de 2020, roteirizado e dirigido pela norte-americana Amy Seimetz. O seu título entrega o conteúdo e o público pode esperar, sem surpresas, que o assunto seja o ballet entre o humano e a morte.
Um núcleo muito restrito de personagens e acontecimentos é retratado no longa; ele se prende à frase “eu vou morrer amanhã”, alternando seu uso entre a forma literal e metafórica. O filme tenta valorizar suas (poucas) personagens mais no exato momento dos acontecimentos do que em seus históricos de vida ou nos espaços físicos da narrativa. A maior parte delas se apresenta com pouco contexto e, após descobrirem que “morrerão amanhã”, não são profundamente trabalhadas.
Para ser mais objetiva, Amy (Kate Lyn Sheil) assume o perfil da personagem principal colérica. Já nos primeiros momentos, sabe-se que algo de muito traumático aconteceu na sua vida, pois ela parece estar psicologicamente abalada. Em uma ligação telefônica com Jane (Jane Adams), que provavelmente é sua amiga, nota-se que a vida de Amy tem um tom de solidão, pois Jane não se preocupa muito com o momento difícil vivido por Amy e tagarela sobre a própria dificuldade de ir ao aniversário da cunhada, Susan (Katie Aselton), com a qual não se dá bem. Aliás, a cunhada e o irmão de Jane, Jason (Chris Messina), posteriormente, farão parte da trama, de forma secundária, junto de um casal de amigos, Tilly (Jennifer Kim) e Brian (Tunde Adebimpe). Para fechar o quadro de personagens, nós temos Craig (Kentucker Audley), que aparece apenas em cenas de flashbacks de Amy. Ela e Craig nutrem uma relação amorosa, o que nos leva a suspeitar de que algo relacionado ao rapaz abalou Amy profundamente.
Como dito, essa teia de personagens não nos é apresentada de forma detalhada na trama. São apenas pessoas que, em comum, descobrem que “morrerão amanhã”, como que num momento de queda na própria consciência, envoltos por luzes neon.
Por isso, reafirmo, não é possível que eu me atenha a simplesmente relatar o roteiro do filme. É praticamente inviável, porque não há uma história que desencadeie começo, meio e fim. Na realidade, só existe a exploração de uma verdade dolorida: que a consciência da fragilidade da vida produz existencialismo e isso torna o mundo e as relações absurdamente relativas e até despropositadas.
Aqui, esclareço, a obra nasce como uma celebração – ou poderia chamar de mau gosto refinado? – do que seja a ideia da morte. Aponta a possibilidade da morte iminente no “amanhã”, mas não necessariamente o “amanhã seguinte”, em sua literalidade. Sendo assim, pode ser uma referência redundante tanto ao “amanhã seguinte” quanto a qualquer amanhã que esteja por vir. Afinal, colocando os dois pés no mundo real, o “dia seguinte” no qual tudo se acaba é um “amanhã” que inevitavelmente chega a todos, mas que tratamos com abstração e que acaba nos surpreendendo. O filme brinca com a acidez e ironia da tomada de consciência sobre a possibilidade da morte nesse amanhã hipotético, que nada mais é do que uma realidade óbvia: basta estar vivo, para morrer.
Com citação de Albert Camus e cenas construídas sobre silêncio alternado com música clássica, há uma presença muito forte do existencialismo como medida para todas as coisas. Se a morte é o destino final, cada indivíduo que se torna consciente dessa ideia se derrama sobre a relatividade da existência. Assim, a “revelação” sobre a proximidade da morte, ao mesmo tempo em que anula a importância de convenções sociais, também é capaz de fazer com que o ser humano acredite e assuma a potencialidade de um Deus.
Então, tomando nota dessa primeira perspectiva, percebemos que o filme exibe usos e ações socialmente inconvenientes: o vestido de festa no corpo de Amy enquanto ela queima objetos no quintal, Amy beijando um completo estranho que lhe alugou um carro, o rally em plena madrugada, Jane em uma festa de aniversário e nadando em uma piscina de estranhos vestindo pijamas, o sangue que cai de Jane em outra mulher como se aquilo não implicasse algo sujo ou surpreendente, mulheres sujando as mãos de terra enquanto as limpam na água de uma piscina. Nenhuma dessas situações parece aceitável ou normal em uma sociedade com convenções claras; no entanto, para uma realidade em que a relatividade da vida é maior do que a necessidade de formalidades sociais, elas são possíveis.
A obra sugere que, após se conscientizar sobre a morte, o homem passa por uma profunda transformação e se torna um protótipo de ser onipotente. Ele assume que poderá tutelar a relação entre o outro e a própria vida. Isso é visto nas cenas em que Brian e Tilly atacam o pai de Brian ou em que Jason e Susan decidem sobre a morte da própria filha. Até mesmo o aborto relatado por Amy e os estudos celulares de Jane poderiam remeter a essa necessidade humana pelo controle da vida e de seus significados.
Por fim, o que resta de todo esse contexto pré-apocalíptico é o mistério do momento em que ocorre a “revelação” sobre a morte. Craig, aparentemente o primeiro a se tornar consciente de seu próprio fim, o faz ao atender o interfone para o entregador de pizza. Após ele, não se sabe qual a condição para se tornar apto a se tornar consciente para essa revelação, mas, percebe-se que ela é transmitida por uma corrente, na qual aqueles que têm contato com uma pessoa para quem a verdade foi revelada, em pouco tempo recebem a mesma mensagem sobre a chegada da própria morte. Nesse ponto, o filme tenta trazer à tona uma atmosfera sci-fi para cada cena de revelação, abusando do jogo de luzes e da imagem estática. No entanto, para mim, ficou bem mais marcada a metáfora puramente humana, o drama travestido de terror psicológico e a remissão dolorosa – em tempos pandêmicos – de que a qualquer momento é possível que a ficha da finitude da vida caia depressa sobre nossos ombros; e que a consciência permanente sobre a morte, quando ainda em vida, pode transformar o convívio social do ser humano de uma forma pouco conhecida ou compreensível na sua totalidade. ■
VOU MORRER AMANHÃ (She Dies Tomorrow, 2020, EUA) Direção: Amy Seimetz; Roteiro: Amy Seimetz; Produção: Amy Seimetz, Justin Benson, David Lawson Jr., Aaron Moorhead; Fotografia: Jay Keitel; Montagem: Kate Brokaw; Música: Mondo Boys; Elenco: Kate Lyn Sheil, Jane Adams, Kentucker Audley, Katie Aselton, Chris Messina, Tunde Adebimpe, Jennifer Kim, Josh Lucas, Michelle Rodriguez; Estúdio/Produtora: Rustic Films; Distribuição: Neon. 84 min
Acadêmica de Direito na Universidade de São Paulo. Cinéfila, fez das salas de exibição sua segunda casa. O cinema é, junto da fotografia, a arte responsável por ensiná-la a olhar o mundo nos seus traços gerais e específicos. Em sua vivência acadêmica busca aperfeiçoar o entrelaçamento das duas áreas do conhecimento.