“Bela Vingança”: o feminino vai à desforra

Uma mulher embriagada como representação de alvo “fácil” para homens atraídos por sua vulnerabilidade sexual. É esta a bandeira hasteada nas primeiras cenas do filme “Bela Vingança”, escrito, dirigido e produzido por Emerald Fennell (que também tem Margot Robbie como uma das produtoras). Trata-se da história de Cassandra Thomas (Carey Mulligan), “Cassie”, uma jovem que abandonou a faculdade de medicina para se tornar balconista de uma cafeteria.

No entanto, Cassie não estava embriagada. Logo se deduz que sua principal aventura noturna pelas boates da cidade seguia o mesmo script: fingia-se de muito bêbada, era abordada por um homem comum, mantinha a encenação da embriaguez e, finalmente, quando já estava perto de ser abusada sexualmente, revelava que estava sóbria, a fim de questionar as atitudes do aproveitador e demonstrar o quão inaceitável seria tirar vantagens de uma mulher alcoolizada. É, então, desmascarado e, claro, se sente ameaçado.

Assim, como dois lados da mesma Cassandra, sua rotina envolve um trabalho monótono na cafeteria, a convivência labiríntica com os pais que estranham o comportamento nada usual da filha, e, em contraposição, a agitada vida noturna de Cassie, sempre em busca do próximo macho a desmascarar. Essa é a complexidade da personagem que se revela no correr de uma história curiosamente linear. E digo “curiosamente” porque o que explica uma visão áspera de Cassie perante a vida, além da evidente opressão feminina, são acontecimentos de seu passado. Desse modo, é admirável como o roteiro é construído basicamente sem necessitar do uso de flashbacks, mesmo que as ações de sua protagonista estejam ligadas à traumas antigos. Tudo vai sendo elucidado aos poucos, à medida que a ela segue sua vida e seu plano incomum.



“Bela Vingança” (Promising Young Woman, 2020), de Emerald Fennell – Divulgação

O ponto de virada da obra é o momento em que, por coincidência, Cassie reencontra Ryan (Bo Burnham), um antigo colega de faculdade. Ele se interessa por ela e, após muita insistência, consegue leva-la para sair. O ritmo e a pretensão do filme deste ponto em diante são alterados sensivelmente.  As cenas com o par romântico traçam uma quebra de expectativa entre a personalidade inicial de Cassie e sua personalidade transformada perante o novo relacionamento.  Ela resolve “superar” suas questões internas e abandona por completo sua rotina da vida noturna.

Assim, o tom do filme, construido até então com elementos de um thriller, passa a ser o de uma comédia romântica. E nessa mistura de gêneros, a diretora subverte e ironiza clichês e estereótipos do próprio cinema, amarrando sua crítica social também à linguagem. Evidencia-se a denúncia de aspectos do machismo estrutural, mostrando como o papel do “bom moço” de Ryan pode esconder atitudes problemáticas. Então, essa “superação” repentina pode ser considerada como um exagero proposital, remetendo às representações do amor romântico idealizado, que cega Cassie e vai, na sequência, provocar uma desilusão de grande impacto, para ela e para o espectador e a espectadora.

E apesar de deslumbrante em um primeiro momento, a relação com Ryan acaba por remontar cenários conturbados do passado universitário de Cassie: sua melhor amiga Nina foi estuprada por um colega de faculdade na presença dos amigos dele e do próprio Ryan. A história de Nina à época dos acontecimentos foi deslegitimada pelos colegas homens e mulheres e, inclusive, pela reitora da instituição. A garota foi colocada na posição de culpada em vez de vítima e os abusadores saíram impunes. Nina, uma jovem promissora estudante de medicina, teve a vida destruída, enquanto seus algozes tiveram cada vez mais sucesso na carreira de Medicina. Mais tarde, na trama, fica implícito que Nina chegou a cometer suicídio, embora não haja explicações claras sobre sua morte.

Com esse trauma circundando toda sua vida, um verdadeiro gatilho é acionado. Cassie decide se vingar de todos os envolvidos no sofrimento da melhor amiga, culminando com a cena ápice que é a vingança contra o estuprador. Vale a pena assistir ao filme pelas ideias elaboradas de Cassie a fim de cumprir seu plano. A ideia aqui não é descrevê-las, mas provocar o leitor/espectador a pensar no conjunto e para além da obra.

Na trilha dos filmes de vingança feminina, entre “A vingança de Jennifer” (Meir Zarchi, 1978) e seu remake “Doce Vingança” (Steven R. Monroe, 2010), “Bela Vingança” aposta em um elemento diferenciador: a vingança é feita em nome da vítima e não pela própria vítima. Talvez, com certa inspiração no clássico “A Fonte da Donzela” (Ingmar Bergman, 1960), seguidos por “Aniversário Macabro” (Wes Craven, 1972) e “A Última Casa da Rua” (Dennis Iliadis 2009), nos quais os pais da vítima buscam vingar-se do estupro. “Bela Vingança” inova, neste aspecto, ao propor uma visão menos patriarcal da temática e mais focada no aspecto feminista da luta das mulheres pelas mulheres com a figura da amiga que prepara a vingança. A dor de uma é também de todas.

Vale ressaltar que há preocupação do roteiro em tornar todas as revanches da protagonista próximas do limite do justo. Ou seja, a intenção de Cassandra é não passar do limite (1) da legalidade e (2) da proporcionalidade. Cada personagem responsável pelo sofrimento de Nina foi castigado na proporção do mal que causou, de modo que a lição moral desejada por Cassie, o arrependimento estampado em suas expressões, fosse mais importante do que um mero escárnio de sua parte.  A única vingança que ultrapassa os limites pré-estabelecidos é a do estuprador de Nina. Neste caso, Cassie vai além, e se determina a um ato que é também simbólico e pode ser considerado como o grande ápice do filme.

Por fim, creio que é interessante notar o tom superficial escancarado das personagens periféricas quando comparadas à Cassandra. A protagonista é sempre colocada como mais madura e evoluída, pois circundada por um contexto social que prima pela aparência em detrimento da essência. “Bela Vingança” quebra um padrão quando colocado em perspectiva com as outras indicações para a categoria Melhor Filme do Oscar 2021. É um filme mais despojado e enérgico, que aposta, fervorosamente, no humor irônico, ácido e até mesmo exagerado, o qual desemboca em um drama denso que retrata aspectos do machismo estrutural e da culpabilização da vítima. Afinal, Cassie é posta como “mártir”, crucifica-se pela causa, sua morte representa a luta real de grupos feministas (e de tantas mulheres silenciadas e vítimas de violência de gênero) por uma tratativa mais evoluída do que é a justiça para as dolorosas histórias de abuso sexual existentes na realidade.

Nota: