Ele muda, minha casa não
[…]
Meu endereço é o sítio estrelado de norte a sul
Ele muda a cada estação
Na boca do sertão, na varanda do seu olhar
Onde estou, a minha casa está
A minha carne é feita de tudo que vai e vem
Tempo, nuvem, aflição também
Encontro e perda ao mesmo tempo, eu não vou parar
Onde estou, a minha casa está
Porque eu sou apenas movimento
Sou do mundo, sou do vento
Nômade
Porque quando paro sou ninguém
Não declaro onde ou quem
Nômade
[…]
(“Nômade”, de Samuel Rosa e Chico Amaral)
Assistindo à “Nomadland”, viajando por suas estradas, passeando por suas paisagens e no encontro com suas personagens em chegadas e partidas, fiquei pensando no contraste de estar há mais de um ano “presa” em minha casa por culpa da pandemia de Covid-19. Nossa percepção de tempo e a relação com o espaço estão sendo afetadas pelas restrições de mobilidade e isolamento, de maneiras que ainda nem sabemos explicar completamente, apenas vamos vivendo. Ainda que em sofrimentos diversos, seja pela falta de contato social, enfrentamento da doença, pelo luto, perda de emprego, saúde mental fragilizada, entre outros processos individuais e coletivos, estamos tentando seguir em frente. Mas nesse movimento, de ir adiante, não há contraste algum com o filme. Muito pelo contrário, há uma profunda identificação.
Seguir em frente, mas sem perder de vista o que está ao nosso redor, de onde viemos e do que somos feitos, talvez seja a essência da narrativa que a atriz Frances McDormand e a diretora e roteirista Chloé Zhao nos apresentam. O filme é baseado em um livro-reportagem da jornalista Jessica Bruder, publicado nos Estados Unidos em 2017. McDormand se apaixonou pela obra, logo comprou os direitos de adaptação e mais tarde convidou a sino-americana Zhao para a realização do projeto, que além de dirigir e escrever, também é produtora e assina a montagem. A cineasta chamou a atenção de McDormand — e do mundo — com a estreia de seu segundo longa-metragem “Domando o Destino” (2017), drama sobre um jovem caubói, estrela em ascensão de rodeios, que sofre um acidente e se vê obrigado a deixar as arenas. A hibridez entre documentário e ficção já era uma marca autoral de Zhao nesta produção, assim como foi em outros trabalhos anteriores a “Nomadland”. Mas é em “Nomadland” que essa fronteira nos provoca frontalmente, em especial pela presença de McDormand como a protagonista, Fern, em meio à comunidade de nômades reais e uma câmera que parece se amalgamar a essa dinâmica, de tão intimista.
Fern é nossa guia, enquanto ela mesma está em plena mudança. O que torna a caminhada imprevisível e, ao mesmo tempo, reflexiva. É através de sua jornada (entre as dificuldades que ela enfrenta como vítima do colapso econômico dos Estados Unidos de 2008, o falecimento do marido e a adoção de um modo de vida alternativo — o nomadismo) que nos é descortinada uma realidade pouco conhecida e retratada (pelo menos cinematograficamente) das terras estadunidenses: as histórias de pessoas, em sua maioria idosas, que o país abandona ou maltrata, pela sua lógica capitalista selvagem. Pessoas como Bob Wells, Swankie e Linda May, que no envelhecimento não podem contar com uma aposentadoria digna mesmo tendo trabalhado durante décadas de suas vidas.
Então, em “Nomadland”, seguir em frente não é uma questão que envolve apenas escolhas pessoais. O filme discute a multifatorialidade do que nos move. E o velho instinto da sobrevivência em sua face moderna. Os nômades não são apenas indivíduos que não se fixam e carregam seus lares em seus corações (como bem diz a letra da canção de Samuel Rosa e Chico Amaral que abre este texto). Há, sim, a poesia da liberdade de uma casa sobre rodas, a beleza do contato com a natureza, das cores do céu na hora mágica e das linhas de horizonte que o olhar pode percorrer sem obstáculos, a riqueza dos encontros e da comunidade, a autonomia construída pela solidariedade, e mais tempo para si. Mas os nômades também respondem a uma sociedade adoecida, onde predomina a precarização do trabalho, a negligência do Estado, o consumismo desenfreado, o crime ambiental… Todo o bolo podre do capitalismo contemporâneo. No contexto geográfico e social da obra, o fracasso do tal sonho americano. Eles carregam dores, cansaço, desilusão. Sem romantismos, sem agredir e sem simplificações, o retrato dessa vida alternativa em “Nomadland” nos convida a pensar sobre contrastes e desigualdades como uma forma de nos sensibilizarmos por uma maior (e melhor) integração humana, que considere, inclusive, o conceito de casa como tudo que nos cerca.
O adiante, não podemos esquecer, também envolve a circularidade da vida. Não à toa o filme começa e termina em um mesmo ponto: o depósito de objetos pessoais de Fern. Afinal, tudo converge na noção de identidade, o diferencial de cada perspectiva. Além disso, percebe-se que, em complemento às imagens de estrada à frente, há imagens onde a câmera abraça um olhar circular diante do deserto e das montanhas. Ou mesmo o olhar da própria paisagem se integra ao nosso. Como na cena em que vemos através de um furo de uma pedra. E ainda, a forma como Zhao filma as pessoas, de uma maneira afetuosa e atenciosa às suas expressões e histórias. Cada trajetória, em particular, é valorizada. Seja contada, meio sem jeito, num canto de um estacionamento, ou ao pé de uma fogueira, cujas faíscas encantam antes de se dissiparem no ar. Não são seres à deriva. Embora transitórias na vida de Fern (e na nossa), deixam sua marca.
Há momentos no filme de metáforas e outros em que percebemos discussões específicas sendo trazidas ao primeiro plano de maneira fluida e natural. Por exemplo, quando aparecem aqueles que veem Fern sob estereótipos, como uma pessoa necessitada, que precisa de caridade. Oferecem assistencialismo, mas não oportunidades de trabalho e escuta sincera. Também chama a atenção a maneira como Fern se divide entre a dimensão das atividades industriais, em seus empregos temporários, e a dimensão das atividades artesanais, nos consertos de sua van (chamada por ela de “vanguarda”), nas máscaras faciais caseiras e no preparo de um café. Essas diferenças são demarcadas esteticamente; a fotografia (belíssima, de Joshua James Richards) e os enquadramentos ressaltam bem a atmosfera e o sentimento de cada um desses momentos e espaços.
E como não poderia deixar de ser, o trabalho de atuação de McDormand é sublime. Vem dela, principalmente, o nosso envolvimento com a solidão da personagem ou com seus momentos de partilha. Sua sensibilidade e entrega nos fazem estar lado a lado com Fern nas interações com outras mulheres nômades, numa rede de apoio mútuo; nos fazem cúmplices de seus titubeios diante da possibilidade de um vínculo com Dave (o ótimo David Strathairn, de “Boa Noite e Boa Sorte”); nos deixam preocupados com seus problemas pelo caminho; e nos emocionam com o afeto de sua irmã, mesmo após um churrasco com parentes detestáveis. Cada momento é verdadeiramente precioso para a experiência consciente da impermanência.
Utilizando-se, refinadamente, tanto das potencialidades do mostrar quanto do dizer, “Nomadland” é um filme que capta o zeitgeist, transitando de maneira confortável entre dualidades, sem a intenção de entregar respostas ou definições para o mundo. Proporciona, assim, um cinema de reflexão crítica ao mesmo tempo que nos faz viajar por belas imagens e histórias afetivas. Chloé Zhao firma sua autoralidade e relevância, merecendo todo o reconhecimento conquistado.