De todos os nossos sentidos, a audição talvez seja um dos mais importantes e ao mesmo tempo um dos mais negligenciados no nosso dia a dia, por termos uma noção equivocada de que escutar serve apenas como suporte na realização de atividades corriqueiras, como caminhar na rua, cozinhar, praticar um esporte. Pense no próprio ato de assistir a um filme. A visão está sempre em primeiro lugar e com razão: cinema é imagem. Mas também é som, embora música, ambiência, sonoplastia e demais elementos sonoros, na maioria das vezes, sirvam à imagem, e não o contrário. Você já ouviu um filme? É uma experiência bem diferente de apenas ver. Do lugar de quem escreve e fala sobre cinema, eu também posso afirmar que o som é muitas vezes negligenciado em muitas das análises eu e meus colegas fazemos. Como espectadores e como sociedade, “O Som do Silêncio” nos leva a essa autocrítica.
Ruben, interpretado por Riz Ahmed (da série “The Night Of”), é um baterista que perde a maior parte da audição por ter ficado exposto a sons muito altos e intensos durante os shows e ensaios da dupla que ele forma com sua namorada Lou, vivida por Olivia Cooke (“Jogador Nº 1”). Ao receber a notícia de que nunca mais irá recuperar a capacidade de ouvir como antes, Ruben fica confuso e nervoso, já que acredita depender da audição para trabalhar com o que mais gosta.
Revoltado com essa mudança drástica em sua vida, ele coloca na cabeça que irá juntar dinheiro para conseguir pagar uma cirurgia de implante coclear, na esperança de que assim poderá voltar a ouvir como antes e dar continuidade à sua carreira musical. Demonstrando uma postura arrogante (“É só dinheiro, Lou! Eu vou resolver!”), Ruben não aceita a condição em que agora terá que viver e resiste o quanto pode para aprender a ser surdo. A alternativa mais imediata para que ele se adapte à realidade sem audição é ingressar em uma comunidade para surdos. Será que Ruben consegue vencer a negação e adotar um novo estilo de vida, sendo agora uma pessoa com deficiência?
Em seu primeiro longa de ficção como diretor, Darius Marder vai além de percorrer o trajeto do dilema do protagonista. Ao lado da equipe de som do filme, supervisionada por Nicolas Becker, Marder nos coloca no lugar de Ruben, utilizando a subjetividade do personagem através de seu ponto de escuta. Assim, nós, enquanto espectadores, podemos ter uma noção de como Ruben passa a ouvir o mundo.
A arquitetura de som do filme é particularmente eficaz e criativa, não só pela reprodução dos ruídos graves e vozes abafadas que Ruben passa a escutar, mas também por alternar entre as perspectivas para que o público ouvinte note a diferença entre o antes e o depois do desgaste da audição do personagem. Os barulhos são amplificados nos planos de detalhe, quando alguém serve um café, por exemplo. Ao mesmo tempo, também é interessante notar como o som captado nos ambientes parecem mais realistas, como se não tivessem sido tratados na pós-produção, dando assim uma noção mais natural de como os sons são percebidos diegeticamente, ou seja, pelos personagens do filme, e também por nós em nossas rotinas. Note isso enquanto Ruben e Lou conversam dentro de seu home trailer em movimento ou quando estão nos bastidores de uma de suas apresentações.
Outro elemento que enriquece o trabalho sonoro do filme, merecidamente reconhecido pela Academia no Oscar, é a integração da trilha sonora aos zumbidos que Ruben escuta, com os acordes se misturando aos sons graves usados para representar a audição do protagonista. Não é à toa que Becker é também creditado como autor da trilha sonora original ao lado de Abraham Marder, que por sua vez também assina o roteiro ao lado do irmão, Darius, e a canção original “Green”, junto com o pianista e produtor musical Thomas Bartlett.
Se o filme chama a nossa atenção para o som como elemento cinematográfico e narrativo, ele também mostra ao público ouvinte a importância de ser empático com quem é privado de ouvir. Da mesma forma como reconhecemos o quanto tendemos a não perceber as nuances sonoras de um filme, constatamos que a surdez também é habitualmente negligenciada pela sociedade. Recursos de acessibilidade e tecnologia assistiva ainda são pouco integrados à vida urbana, assim como o ensino da língua de sinais, o que deixa as pessoas surdas (e pessoas com outras deficiências) à margem de um possível e necessário convívio mútuo com quem não enfrenta as mesmas dificuldades.
Algo muito importante que “O Som do Silêncio” faz nesse sentido é colocar os surdos em primeiro plano nas cenas que se passam na comunidade que acolhe Ruben. Ali, “nada precisa de conserto”, usando as palavras de Joe, o líder e mentor da comunidade, interpretado com a serenidade cativante de um sábio pelo veterano Paul Raci. O trabalho dele e dos professores do local é oferecer meios e formas de adaptação que mostrem que uma mudança de perspectiva pode revelar um caminho viável. Citando novamente Joe, a reabilitação que eles oferecem não é para os ouvidos, mas para a mente.
Daí tomarmos como nossa também a dor de Joe a cada obstáculo que ele encontra na relação com Ruben. Enquanto estamos na comunidade com eles, nós temos a chance de aprender pequenas e valiosas lições que Ruben pode não estar assimilando. Você torce por ele, quer que ele cresça como pessoa, mas a teimosia de sua recusa e o anseio por uma solução rápida se tornam um conflito que nós, como Joe, mal conseguimos suportar, ainda que se entenda o quanto é difícil passar por uma mudança de vida dessa maneira.
A quietude sugerida por Joe é um conceito simples em sua definição, mas para alcançá-la é necessário empenho e disposição pessoal. No caso de Ruben, tão mal acostumado ao excesso e à catarse dos sons de percussão e guitarra de seus shows, o silêncio parece fisicamente excruciante por também obrigá-lo a notar que seus demônios internos não param de gritar. Seu vício pode não ser mais em heroína, mas passou a ser em um modo de vida egoísta, extremo e unilateral, sem preparo para enfrentar adversidades e sem abertura para mudanças de rumo. O que Ruben precisa para “aprender a ser surdo” é aprender que escutar não é uma questão de capacidade fisiológica, mas uma virtude — e tal como tocar um instrumento, requer prática constante. ■
O SOM DO SILÊNCIO (Sound of Metal, 2019, EUA). Direção: Darius Marder; Roteiro: Darius Marder, Abraham Marder, Derek Cianfrance (argumento); Produção: Sacha Ben Harroche, Kathy Benz, Bert Hamelinck; Fotografia: Daniël Bouquet; Montagem: Mikkel E.G. Nielsen; Música: Nicolas Becker, Abraham Marder; Som: Nicolas Becker, Jaime Baksht, Michelle Couttolenc, Carlos Cortés, Phillip Bladh; Com: Riz Ahmed, Olivia Cooke, Paul Raci, Lauren Ridloff, Mathieu Amalric, Chelsea Lee; Estúdio: Caviar; Distribuição: Sony Pictures, Amazon Studios. 120 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.