Desde que anunciou que pretendia se aposentar, em 2012, Steven Soderbergh não parou de trabalhar. Nada mais simbólico para os dias de hoje, não é mesmo? Mas no caso do cineasta norte-americano, considerado um dos mais importantes do cinema independente da década de 1990, não parar de trabalhar parece ser uma necessidade quase fisiológica, e não necessariamente financeira. Soderbergh respira cinema e, entre altos e baixos, vez ou outra ele nos presenteia com um bom filme como este “Nem um Passo em Falso”, disponível na HBO Max.
Retornando a um dos seus gêneros favoritos, o cinema policial, Soderbergh nos conta a história de três criminosos (personagens de Don Cheadle, Benicio Del Toro e Kieran Culkin) que se veem juntos sob circunstâncias que nem eles mesmos parecem compreender por inteiro. Contratados para roubar um documento sigiloso, precisam descobrir o que está por trás da missão quando as coisas não saem conforme o planejado.
A trama se passa na Detroit dos anos 1950, época mais do que propícia para homenagear o cinema noir ao mesmo tempo em que se faz um filme neo-noir, ou seja, que promove uma releitura dos temas estéticos e narrativos do gênero. Maior evidência disso é que Soderbergh troca o preto-e-branco clássico por suas tintas carregadas no amarelo, azul e vermelho, ecoando a hiperestilização fotográfica de seus trabalhos anteriores, como o vencedor do Oscar “Traffic” (2000) ou o mais recente “Logan Lucky – Roubo em Família” (2017).
Do mesmo modo, percebe-se o quanto “Nem um Passo em Falso” bebe na fonte do noir quando Soderbergh (adotando novamente seu heterônimo de fotógrafo, Peter Andrews) utiliza planos inclinados e plongées, além de posicionar a câmera de forma a criar angulações expressionistas no quadro.
O uso constante da lente grande angular, deformando as extremidades dos enquadramentos, também contribui para a criação dessa atmosfera de estranhamento, algo onírica e perigosa, típica dos filmes policiais sombrios de outrora. Note também como ele enquadra os dois personagens principais entre portas, paredes ou mesmo entre pessoas no primeiro plano, de modo que eles pareçam encurralados, sem saída.
É bastante oportuno que Soderbergh traga o noir à baila, uma vez que, infelizmente, vivemos tempos similares ao período mais popular do gênero. Afinal, mal acabamos de passar por uma nova grande depressão econômica e já entramos em outra, provocada pela pandemia de Covid-19. Sem falar no pessimismo e obscurantismo que tomaram conta do mundo no campo político em anos recentes.
A trama de “Nem um Passo em Falso” se desenvolve inteira sob esse clima de desconfiança e angústia, já que os dois personagens principais recorrem ao crime vindo de vivências difíceis – em especial Curt Goynes, vivido por Don Cheadle, ator recorrente de Soderbergh. Enquanto seu comparsa Ronald Russo (papel de Benicio Del Toro, outro favorito do diretor) aparece como um gângster mais clássico em suas atitudes e motivações, Goynes tem todo um passado de dificuldades sociais e econômicas, o que é desvelado à medida que ele interage com outras pessoas da comunidade negra.
Aqui, Soderberg se distancia de eventuais maneirismos e clichês em que os filmes noir ou neo-noir inevitavelmente esbarram. Trabalhando com um roteiro original escrito por Ed Solomon (de filmes como “Bill & Ted”, “MIB: Homens de Preto” e “Truque de Mestre”), o diretor se aprofunda na investigação não da trama policial em si (o tal documento confidencial quase vira um MacGuffin), mas da conspiração política que ocorre no nível subterrâneo do enredo e que, quando revelada, também se mostra bastante atualizada em relação a discussões vigentes na nossa sociedade hoje.
Em meio a tudo isso, Soderbergh recorre ao alívio cômico na forma do humor cínico também conhecido de seus filmes. Porém, diferente do que encontramos em “Onze Homens e um Segredo”, por exemplo, em “Nem um Passo em Falso” esse humor é mais pontual e surge em cenas em que os personagens são colocados em situações ridículas, especialmente o contador Matt, vivido por David Harbour, o “homem errado” da vez. Nesse sentido, em parte o filme demonstra ser influenciado também pelo estilo narrativo perspicaz e irônico do escritor Elmore Leonard, um confesso adepto do neo-noir que o próprio Soderbergh já adaptou para o cinema em “Irresistível Paixão” (um de seus melhores e mais subestimados trabalhos, aliás). O jazz na trilha sonora de David Holmes, compositor frequente na obra de Soderbergh, reforça essa noção.
Também assinando a montagem (mas com seu outro famoso heterônimo, Mary Ann Bernard), Soderbergh conduz “Nem um Passo em Falso” de maneira envolvente durante boa parte das quase duas horas de duração do filme, deixando o ritmo cair quando passa a empilhar plot twists a cada novo personagem apresentado. As escolhas para o elenco são formidáveis, sem dúvida, mas a partir de certo ponto fica um pouco cansativo não ter onde se segurar em meio a tantas reviravoltas, ainda que elas façam parte do jogo. Além disso, essa estratégia acaba por diluir a relevância das duas personagens femininas principais, a esposa de Matt e a amante de Russo (interpretadas por Amy Seymetz e Julia Fox, respectivamente). Ambas são abandonadas pelo filme em favor de viradas que devolvem o protagonismo a seus pares masculinos.
Na escalada de surpresas, traições e violência de “Nem um Passo em Falso”, Goynes e Russo avançam na hierarquia das gangues que querem suas cabeças — e o preço que eles e seus algozes cobram aumenta na mesma proporção. Enquanto desembaraça a trama, Soderbergh mostra maturidade como narrador, ainda que não se furte de fazer os exercícios estilísticos que são intrínsecos à sua marca autoral. Talvez seja um sinal de que o ímpeto de se aposentar, na verdade, não tenha passado de uma crise de meia idade já superada. ■
NEM UM PASSO EM FALSO (No Sudden Move, 2021, EUA). Direção: Steven Soderbergh; Roteiro: Ed Solomon; Produção: Casey Silver; Fotografia: Steven Soderbergh (como Peter Andrews); Montagem: Steven Soderbergh (como Mary Ann Bernard); Música: David Holmes; Com: Don Cheadle, Benicio Del Toro, Kieran Culkin, Brendan Fraser, Julia Fox, Amy Seimetz, David Harbour, Ray Liotta, Noah Jupe, Jon Hamm, Bill Duke; Estúdio: Warner Bros.; Distribuição: HBO Max. 115 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.