Vingança ancestral: diretor Ignacio Rogers fala sobre a inspiração por trás de “O Diabo Branco”

Quem assistir a “O Diabo Branco”, primeiro longa-metragem dirigido pelo argentino Ignacio Rogers, deverá se sentir “em casa” se for fã de filmes de terror. Afinal, a história de amigos que se hospedam em uma casa perto da floresta e lá se deparam com uma figura macabra já serviu como base para vários clássicos do gênero. Mas Rogers trabalha em uma chave que pode surpreender até mesmo os mais escolados no horror, deslocando os clichês para um estilo mais próximo de filmes contemporâneos como “A Bruxa” e “Corrente do Mal”.

A trama de “O Diabo Branco” reúne um quarteto de amigos em viagem pelo interior da Argentina, onde encontram um homem misterioso e se deparam com uma antiga lenda que assombra o local. O elenco é formado por Ezequiel Díaz (“Tenho Medo Toureiro”), Violeta Urtizberea (“Um Namorado para Minha Esposa”), Julián Tello (“Paulina”), Martina Juncadella (“Habi, a Estrangeira”), William Prociuk (“O Anjo”) e Nicola Siri (“A Voz do Silêncio”).

Coproduzido pelo cineasta brasileiro André Ristum (“Meu País”), o longa estreou no BAFICI de 2019 e foi programado em diversos festivais internacionais, ganhando uma menção especial no Festival do Insólito, em Lima (Peru), e melhor roteiro no BAM, Colômbia, e em Havana, Cuba.



Em entrevista ao cinematório, Rogers — que também é ator e trabalhou em filmes como “O Crítico” e “Estuários” — fala sobre a inspiração por trás do roteiro e como foi trabalhar com estilos praticamente opostos de filmes de terror. Ele também nos conta sobre suas preferências no gênero e a atual cena do cinema de horror argentino.

O filme está em cartaz nos cinemas brasileiros e tem distribuição da Pandora Filmes.

 

Como surgiu a ideia de fazer “O Diabo Branco” e contar essa história? Ela é baseada em algum mito ou figura folclórica argentina que aqui no Brasil podemos não conhecer?

Comecei a escrever um curta-metragem em que queria trabalhar com sonhos. Originalmente, era a história de um casal que foi acampar e era narrada metade sonhando/metade acordado. Aos poucos e quase sem perceber, o curta se tornou um longa, o casal se transformou em um grupo de amigos e os sonhos viraram pesadelos. E assim virou um filme de terror, um gênero pelo qual sempre fui apaixonado.

Acho que tudo aconteceu de forma muito natural graças à fantasia que o gênero desperta em mim. Além de eu escrever ou dirigir obras de diferentes gêneros, o terror é uma espécie de tendência natural muito marcada. Talvez uma forma de destilar toda a escuridão e violência que percebo no mundo e em mim mesmo. Nesse sentido, a ideia de ir de férias à natureza, essa tendência “natural” que a gente tem, estava relacionada com a ideia de voltar às raízes, à terra, ao que sempre esteve lá, e a como aquela terra está banhada em sangue. No fato de a habitarmos como resultado de um massacre e de uma tragédia, algo que hoje se omite, que está escondido, e que fazemos todo o possível para ignorar.

No filme, aquele passado escondido e esquecido ressurge com força, ampliado, em um contexto do mais cotidiano e banal. Por outro lado, para dar estrutura à lenda (que na verdade é totalmente apócrifa, uma invenção), li crônicas da conquista da América e fiz uma pequena pesquisa em torno das lendas do campo argentino. E a certa altura me deparei com a informação de que, às vezes, algumas tribos de habitantes originários lutaram na guerra contra os conquistadores não com armas físicas, mas com rituais religiosos. Então, cheguei à ideia de que eles capturam o espírito de um conquistador para habitar o corpo de outras pessoas e, usando aquele veículo físico, matam pessoas da mesma raça até que paguem com suas mortes por todos os seus crimes contra os nativos. De certa forma, é dizer que a ferida da conquista do continente ainda está aberta, não curada, façamos o que fizermos para ignorá-la.

Quem gosta de cinema de horror e já viu muitos filmes certamente identifica referências em “O Diabo Branco”, em especial filmes de assassinos como Freddy Krueger, Jason, Michael Myers… No entanto, você combina isso com um estilo mais próprio do cinema independente e não tanto dos filmes de horror mainstream, comerciais. Como é trabalhar nesse limiar?

Trabalhar nesse limiar é exatamente o que eu queria fazer com “O Diabo Branco”, aproximando esses dois mundos para me manter bem naquele ponto. Como eu disse, sempre fui um grande fã de filmes de terror e os que vi na minha infância, nos anos 90, foram uma forte influência e praticamente todos são norte-americanos. Por outro lado, quase toda a minha experiência e formação como ator e diretor vem do cinema e do teatro independente argentino, área que conheço e que me é natural e que lida com outros códigos totalmente diferentes.

O filme é uma espécie de casamento entre esses dois estilos totalmente opostos, que são totalmente diferentes em ritmos, tom de ação, fotografia. A minha intenção com “O Diabo Branco”, para além de trazer para o presente o sentimento de fascínio que aqueles filmes me causavam na infância, foi dar um contexto local e um sentimento de proximidade e naturalidade à história, às locações e às atuações. Em suma, torne o gênero seu. De alguma forma (e exagerando) ser uma espécie de conquistador do gênero, apropriando-se de um terreno já existente e moldando-o de acordo com minhas próprias regras pessoais, que também, de certa forma, são regras locais, latino-americanas.

"O Diabo Branco" (El Diabo Blanco, 2019), de Ignacio Rogers - Divulgação/Pandora Filmes
“O Diabo Branco” (El Diabo Blanco, 2019), de Ignacio Rogers – Divulgação/Pandora Filmes

O seu filme tem cenas de assassinato, mas a violência não é muito gráfica. Se eu não me engano, há somente duas cenas em que você mostra personagens sendo degolados, e nas demais tudo acontece fora de quadro. Pode falar um pouco sobre essa escolha?

Tenho tendência a gostar mais da fantasia e do suspense gerado em torno do terror do que do explícito ou da explicação desse terror. Acho que muitas vezes quando o terror é explicado ou quando a fonte do terror é mostrada diretamente, o mistério que lhe dá força se perde em grande parte, além de perder algo da fantasia, da imaginação do espectador, que, ao não encontrar uma forma definitiva, torna-se maior, mais ameaçadora, como um combustível para o medo.

Por outro lado, as limitações orçamentárias de um filme independente como este me obrigaram a pensar nestes termos, tinha que escolher com muito cuidado cada efeito especial, cada movimento de câmera, cada cena, porque não tínhamos muitas possibilidades de repetir. Por isso muitas vezes “não mostrar” era melhor, e acho que essa forma de planejar e filmar favoreceu o filme, deu-lhe um caráter tenso, onde nada é em excesso e há sempre uma ameaça constante, dramaticamente construída, que paira sobre os protagonistas. Tratou-se de criar a sensação de que algo terrível vai acontecer e que é um caminho que não tem volta.

E como é a sua relação pessoal com o cinema de horror? O que você via na juventude e que mais te impactou e ajudou na sua formação como cineasta? E do cinema de horror contemporâneo, quais diretores você mais admira no gênero? Algum brasileiro?

Ignacio Rogers - Foto: Divulgação
Ignacio Rogers – Foto: Divulgação

Quando eu tinha cinco anos, sempre alugava o mesmo filme em uma locadora, a gravação de uma adaptação teatral de uma obra infantil chamada “Frutillitas” [no Brasil, “Moranguinho”]. Um dia, as capas de VHS de filmes de terror começaram a me chamar a atenção. Aluguei “Brinquedo Assassino” e a partir daí passei a assistir a filmes desse gênero somente: “A Hora do Pesadelo”, “Candyman”, “Sexta-Feira 13”, “Poltergeist” etc. Obviamente, depois disso, comecei a assistir a todos os tipos de filmes. Devo esclarecer que sou um espectador um tanto preguiçoso, não sou um grande cinéfilo, mas estou interessado em ver a maior variedade possível de filmes e acho que não tenho muitos preconceitos nessa área, tanto para ver e ser influenciado. A certa altura da minha adolescência, assisti muito ao cinema independente argentino, do qual de alguma forma fiz parte como ator, e a algum cinema autoral europeu. Quanto ao cinema de terror contemporâneo, sem chegar ao ponto da admiração, alguns filmes me deixaram uma certa marca quando fiz “O Diabo Branco”, como “A Bruxa”, “Corrente do Mal” ou “Corra!”. Tenho vergonha de admitir que não sou um grande conhecedor do cinema de terror brasileiro, nem do cinema brasileiro em geral. Porém, nos últimos tempos pude ver “O Lobo Atrás da Porta” e “As Boas Maneiras”, e eu gostei e me interessei por ambos.

Aqui no Brasil nós não temos acesso fácil a filmes de horror argentinos. A maior parte chega apenas através de festivais de cinema fantástico, como o Fantaspoa e o Cinefantasy. Pode nos dizer um pouco sobre como tem sido a produção de filmes de horror no seu país nos últimos anos? Há um grande interesse como no Brasil, onde temos hoje um boom do gênero, inclusive com filmes selecionados para Cannes e outros grandes festivais?

Nos últimos anos, como acredito que aconteceu no restante da América Latina e na verdade em todo o mundo, aqui na Argentina também houve um ressurgimento do gênero. Porém, especialmente na minha região, e apesar da abundância de ideias, talentos e competência profissional, é um movimento que está apenas começando, que tem muito a crescer. E, ultimamente, como a cultura de modo geral, ele tem se debilitado enormemente, a ponto de praticamente parar com a pandemia e as más políticas dos governos de direita que veem a arte como desnecessária, inútil. Mas os tempos mudam e, quando isso acontecer, haverá uma grande oportunidade de unirmos os latino-americanos para impulsionar novas propostas e formas de desenvolver as maneiras de realizar, ver e distribuir cinema na nossa região e no mundo. É um assunto pendente e um grande desafio pela frente. Sempre sonhei com uma academia de cinema que reúna todos os países da América Latina, do México à Argentina, um lugar de criação e resistência.

"O Diabo Branco" (El Diabo Blanco, 2019), de Ignacio Rogers - Divulgação/Pandora Filmes
“O Diabo Branco” (El Diabo Blanco, 2019), de Ignacio Rogers – Divulgação/Pandora Filmes