Ao todo, sete produções realizadas por brasileiros estão na programação do 72º Festival de Berlim. O filme “Fogaréu”, primeiro longa da diretora Flávia Neves, foi selecionado para a seção Panorama, uma das mais prestigiadas da Berlinale.
Coescrito com a experiente Melanie Dimantas (“Carlota Joaquina”, “Nome Próprio”, “Olhos Azuis”), “Fogaréu” tem fundo autobiográfico e a história se passa na Cidade de Goiás, onde Fernanda volta para a casa de seu tio abastado, após a morte de sua mãe adotiva. Com essa viagem na fronteira entre o real e o fantástico, ela pretende investigar a dolorosa verdade sobre sua origem. Dois atores mineiros estão nos papéis principais: Bárbara Colen, de “Bacurau”, e Eucir de Souza, de “Meu Mundo em Perigo”.
O cinema brasileiro também está representando na seção Fórum do Festival de Berlim com dois títulos brasileiros: “Mato Seco em Chamas”, coprodução entre Brasil e Portugal dirigida por Adirley Queirós e Joana Pimenta; e “Três Tigres Tristes”, de Gustavo Vinagre. No Fórum Expandido, será apresentado “O Dente do Dragão”, do diretor goiano Rafael Castanheira Parrode. E na mostra Geração, o festival exibe “O Caminhão do Meu Pai”, longa que o cineasta Maurício Osaki realizou a partir do curta de mesmo nome que ele também dirigiu e exibiu em Berlim, na edição de 2013. Por falar em curtas, o filme “Manhã de Domingo”, dirigido por Bruno Ribeiro, disputa a competição principal do formato. Por fim, a cineasta, fotógrafa e artista plástica Paula Gaitán apresenta a instalação “O Caminho se Faz Caminhando”, na qual o curta de mesmo nome está inserido.
O 72º Festival de Berlim acontece de 10 a 20 de fevereiro, na capital alemã, em formato presencial. Confira, a seguir, uma entrevista com a diretora de “Fogaréu”, Flávia Neves.
“Fogaréu” é inspirado em uma história real ou é totalmente ficcional? Qual foi o ponto de partida para o roteiro do filme?
Sim, o filme é inspirado em uma história real. Mas mesmo tendo nascido e vivido em Goiânia, a atual capital do Estado de Goiás, eu não conhecia essa realidade. Foi quando cheguei na UFF, em Niterói, que um professor que havia morado em Goiânia, me questionou sobre isso. Daí pesquisei e descobri que durante 100 anos, se estabeleceu na histórica Cidade de Goiás, antiga capital do Estado, um tipo de relação social com pessoas neurodiversas denominadas de “bobas” que, embora em processo de desaparecimento, ainda moram na comunidade até hoje. Essas pessoas, oriundas de regiões vizinhas ou das próprias famílias do lugar, eram adotadas e criadas para prestar toda sorte de serviços domésticos. Hoje em dia encontramos ainda reminiscências desse passado. Essa história me perturbou durante anos até decidir fazer um filme sobre ela e filmar com essas pessoas sobreviventes, muitas delas centenárias.
Quando e como foi a decisão de contar a história de suas origens?
Foi quando eu fiz o treinamento da Técnica Meisner, na EICTV em Cuba, a partir do lugar do ator, que compreendi que necessitava buscar o que me era mais pessoal para contar essa história. Inicialmente, o roteiro não tinha esse caráter pessoal. Mas ao longo do processo de desenvolvimento, fui entendendo que minha perturbação tinha a ver com uma memória familiar recalcada. Pois, a questão da “adoção” de pessoas em condições de vulnerabilidade para submetê-las, é uma prática, infelizmente, comum no interior do Brasil até hoje. Minha mãe foi uma dessas pessoas “adotadas” para ser uma criada. Quando minha avó morreu de parto, minha mãe tinha uns nove anos, e meu avô deprimiu e não conseguiu criar os oito filhos, a maioria mulheres. Minha mãe ficou passando de casa em casa fazendo pequenos serviços domésticos, até chegar, com 12 anos, na casa da família do prefeito, que também é um latifundiário da região. Nessa casa, ela trabalhava pela comida e pelo teto e era chamada de filha e irmã. Cuidava ainda da criança mais nova da família, que hoje é meu padrinho. Levei um tempo para querer encarar o processo dolorido de deixar emergir toda essa dor e me colocar de maneira tão pessoal e vulnerável no filme. Mas entendi que fazer o filme só tinha sentido se fosse a partir dessa perspectiva.
De algum modo você se identifica com a protagonista do filme?
A trajetória da personagem é bastante parecida com a minha trajetória emocional durante o processo de desenvolvimento do filme. Fernanda está em busca de entender a sua verdadeira origem e identidade e o que descobre é bastante doloroso. Acreditou durante toda a vida que ocupava um lugar naquela família, quando na verdade ocupava outro. Isso ocorreu comigo também ao longo do processo.
Você realizou seu primeiro curta aos 16 anos. Como se deu sua aproximação com o cinema e quais foram/são suas influências?
Lembro de uma projeção em 16 mm de um desenho animado na escola onde eu estudava quando tinha 4 anos. Alí o fascínio pelo cinema foi despertado de forma determinante. Via escondido o festival do Charles Chaplin que passava na TV domingo de madrugada. A cinefilia começou na infância, mas foi na adolescência que se tornou mais sistemática. Os filmes eram meus únicos companheiros nessa fase, que foi bastante conturbada. Goiânia não oferecia muitas opções de lazer, mas tinha uma locadora de VHS com um acervo bem completo. Com 16 anos, eu já queria ser cineasta e quando uma professora de português pediu para fazer um trabalho em grupo, decidi fazer um filme com os meus amigos. Um deles trabalhava numa produtora de vídeos de casamento e o filme acabou sendo exibido em vários lugares e foi selecionado para a primeira edição do Festival Internacional de Cinema Ambiental, o FICA, que acontece na Cidade de Goiás, onde “Fogaréu” foi filmado. Em relação a “Fogaréu”, um filme que me impressionou bastante e que considero talvez a primeira influência é “Os Anões Também Começaram Pequenos” (Auch Zwerge haben klein angefangen, 1970), do Werner Herzog. Houve ainda uma masterclass com esse diretor no Rio, em 2012, e lembro que foi muito importante para eu me reconectar com tudo aquilo que eu acreditava e queria fazer. Saí da masterclass decidida a largar tudo que estava fazendo para me aventurar no primeiro longa-metragem.
“Fogaréu” é um longa com equipe majoritariamente feminina — direção, roteiro, produção, fotografia. Como você vê a participação das mulheres no cinema brasileiro?
O que vejo ocorrendo no Brasil e no mundo hoje é muito importante para criar concessões nessa indústria tão elitista e dominada pelos homens, como ocorre em qualquer lugar de poder e prestígio em uma sociedade criada para eles. Mas o que é mais importante ainda é que essa luta por equidade está resultando, embora que ainda timidamente, em reconhecimento aos filmes. Quando “Fogaréu” participou do Ventana Sur 2020, o mercado mais importante da América latina, junto com outros filmes dirigidos por uma nova geração de realizadoras brasileiras, a Variety escreveu um artigo sobre a surpreendente participação feminina do país em um momento tão difícil, o que a revista chamou de “nova onda do cinema feminino brasileiro”. O que me parece já uma resposta a um movimento de afirmação que vem ocorrendo nos últimos anos, mas mais do que isso, me arrisco a dizer que o cinema feito por mulheres pode ser sim o que o país tem de melhor para oferecer hoje. Nós mulheres, temos que nos preparar muito mais para disputar um lugar num mercado hostil, altamente complexo, que não foi pensado para nós. Temos que provar a todo instante nosso talento, temos que ter projetos melhores que a maioria, para se destacar. Não nos é permitido errar e nem fazer o esperado, temos que surpreender e superar as expectativas sempre. É muito mais desgastante e difícil? É. Como conseguimos fazer bons filmes remando contra a maré? Só tenho uma resposta: estamos melhor preparadas, pois historicamente tivemos que sorrir para um mundo que nos violenta, nos sobrecarrega e nos esgota e que nos delega apenas o papel de servir, procriar e criar condições para os homens brilharem. Se podemos criar as condições, também podemos brilhar.
Entrevista e fotos gentilmente cedidas pelas produtoras Bananeira Filmes e Mymama Entertainment.