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Festival de Vilnius: Cinema em tempos de guerra

"Flee" (2021), de Jonas Poher Rasmussen - Diamond/Divulgação

"Flee" (2021), de Jonas Poher Rasmussen - Divulgação

São tempos estranhos – e não muito agradáveis – esses que vivemos. O clima hostil em Vilnius, com um frio intenso, vento cortante e até a neve esporádica, bastante extremo para o fim de março, parece materializar isso na pele e nos ossos de quem visita a cidade. A turbulência política mundo afora implacavelmente transborda para todos os aspectos da vida, e mesmo quem tenta fugir um pouco do caos que nos circunda mergulhando por algumas horas ou dias em um festival de cinema se vê obrigado a encarar seus desdobramentos.

Isso é especialmente inevitável em um evento na Lituânia, localizada bem ao lado do principal conflito armado no mundo hoje. Com pouco mais de 30 anos de independência da ex-URSS, o país vive o risco silencioso de ser o próximo alvo em potencial do ímpeto imperialista de Vladimir Putin, o que resvala até mesmo na 27ª edição do Vilnius International Film Festival – ou “Kino Pavasaris”, “Cinema Primavera”.

Após a invasão da Ucrânia, o festival não se limitou a apenas excluir todos os títulos russos da programação. Abriu as portas do evento – a maior mostra de cinema do país – à grande comunidade de imigrantes ucranianos locais, que ganharam acesso a qualquer uma das sessões sem precisar comprar ingresso, além de acrescentar uma mostra de filmes realizados na Ucrânia à programação. O espírito de solidariedade ecoa ainda nas bandeiras azuis e amarelas penduradas por toda a cidade, em casas, prédios e estabelecimentos comerciais.

Refúgios (im)possíveis

E a política não se restringiu ao extracampo, dando as caras também nas produções em exibição – principalmente na seleção de longas bálticos que fui convidado a avaliar como membro do júri da Fipresci. O mais conhecido deles, e um dos documentários mais premiados do último ano, é “Flee – Nenhum Lugar para Chamar de Lar”, indicado a três categorias no último Oscar e que estreia no Brasil no próximo dia 21 de abril. A produção dirigida pelo dinamarquês Jonas Poher Rasmussen usa o cinema, e especificamente a animação, para encontrar sentido, e transformar em arte, um relato quase intolerável, que revela o lado mais obsceno do mundo hoje.

Além de usar a materialidade da animação, indo do mais pictórico ao mais abstrato, para representar a fragilidade da memória, e o trauma, do protagonista, o filme revela como a arte – seja o cinema, uma música, uma novela – pode ser um refúgio quando a vida deixa de fazer sentido: se somos capazes de imaginar algo para além da realidade abominável que nos circunda, significa que ainda não estamos mortos. E “Flee” não é apenas um dos retratos mais pungentes, sensíveis e fiéis do que é ser um refugiado. Dentre as suas muitas camadas, o longa é ainda uma fábula sombria e realista sobre a parte mais brutal de sair do armário: negar e extinguir toda sua vida até aquele ponto, dando início a uma nova identidade, como única forma de sobreviver.

"Silent Land" (2021), de Agnieszka Woszczynska - Lava Films/Divulgação
“Silent Land” (2021), de Agnieszka Woszczynska – Lava Films/Divulgação

Outra fábula sobre a questão dos refugiados na Europa, porém não tão bem-sucedida, é o polonês “Silent Land”, exibido também no último Festival de Toronto. A produção acompanha um casal extremamente branco, rico e privilegiado que tem suas férias de verão na costa da Itália virada de ponta cabeça por um trágico acidente. Estreando em longas, a diretora Agnieszka Woszczynska parece no início querer tecer um comentário sobre a impassividade quase sociopática da Europa diante do drama dos refugiados, mas o filme gradualmente perde o foco, migrando para a questão da masculinidade frágil, e buscando relativizar a culpa de seus protagonistas numa tentativa de provocar a empatia ou cumplicidade do espectador. Mais fatalmente, no entanto, “Silent Land” peca ao nunca dar uma identidade ou subjetividade à vítima do acidente central, único recurso que permite ao público aceitar passar duas horas com o detestável casal polonês, o que acaba por também absolver o olhar problemático do filme, sem enxergar que ele incorre no mesmo erro que pretende criticar. Curiosamente, a premissa do “casal branco em apuros durante as férias” também esteve presente no dinamarquês “Speak no Evil”, um experimento de terror que não funciona muito bem nem como horror, nem como crítica social.

Diálogos coutinianos

O mesmo misto de confusão e tentativa frustrada de crítica sociopolítica de “Silent Land” se repete em outro longa polonês, “The Wedding Day”. O cineasta Wojciech Smarzowski busca traçar um paralelo entre o atual conservadorismo religioso na Polônia – racista, machista e homofóbico (bastante similar ao Brasil atual) – e a hipocrisia mal resolvida da população do país durante a Segunda Guerra por meio do casamento do título e o conflito de gerações que ele detona. Contudo, o diretor faz uma escolha ousada de trazer o passado para cenas do presente por meio da mise-en-scène, um recurso que não funciona bem e acaba tornando a encenação tão confusa quanto o discurso político do filme.

A melhor incursão – e crônica social – polonesa em Vilnius foi o excelente “The Balcony Movie”. Vencedor do Grande Prêmio da Semana da Crítica no último Festival de Locarno, o documentário é o resultado de um ano que o cineasta Pawel Lozinski passou na varanda de seu apartamento filmando e conversando com as pessoas que caminhavam pela rua em frente ao seu prédio, perguntando a elas qual o sentido da vida.

“The Balcony Movie” (2021), de Pawel Lozinski - HBO Max/Divulgação
“The Balcony Movie” (2021), de Pawel Lozinski – HBO Max/Divulgação

O dispositivo tem um quê eduardocoutiniano, e ainda que Lozinski não seja um conversacionalista tão genial quanto o mestre brasileiro, o filme consegue um feito admirável. Sem jamais trair sua proposta inicial, ele executa um retrato social simples e claro da Polônia atual e, ao mesmo tempo, realiza um comentário humanista e universal sobre questões inerentes a todos nós: divórcio, desilusão, amores perdidos, saudades inconsoláveis, descrença no mundo, esperança. Realizado pré-pandemia, “The Balcony Movie” ainda é marcado pela “sorte” de seu acidente criativo que, ao filmar as pessoas de longe, da varanda do título, acabou se tornando uma alegoria não-intencional dos nossos tempos de distanciamento social e de conversas e tentativas de conexão humana à distância.

Heranças e gerações

Outro longa fortemente marcado por seu dispositivo formal é “Evolution”, novo trabalho do húngaro Kornél Mundruczó. Depois do sucesso de seu filme anterior, “Pedaços de uma Mulher”, especialmente do extravagante plano-sequência do parto da protagonista logo no início, o cineasta parece ter decidido elevar esse virtuosismo técnico e narrativo à última potência em seu novo longa, que retrata o trauma infligido pelo holocausto sobre três gerações de uma família judia húngara: Eva (Lili Monori), sobrevivente de um campo de concentração, sua filha Léna (Annamária Lang), e seu neto Jónás (Goya Rego). Cada um desses personagens protagoniza um dos atos do filme, em três momentos históricos diferentes – cada um deles, por sua vez, encenado num (ou ao menos como um) único plano-sequência.

As semelhanças entre os dois longas não param por aí: ambos foram escritos por Kata Wéber, parceira de Mundruczó, produzidos por Martin Scorsese e montados por Dávid Jancsó. Para além do exercício técnico-formal, “Evolution” funciona como um bom estudo sobre traumas hereditários, especialmente nos dois primeiros atos, que flertam com uma mise-en-scène fortemente teatral. Cada um dos capítulos tem um registro narrativo bastante próprio, e Mundruczó consegue amarrar bem os três, com a ajuda da ótima trilha de Dascha Dauenhauer especialmente, pecando apenas no ato final com uma tentativa bastante simplista de conciliação para a complexa situação atual no Oriente Médio entre Israel e Palestina.

"Evolution" (2022), de Kornél Mundruczó - Match Factory/Divulgação
“Evolution” (2021), de Kornél Mundruczó – Match Factory/Divulgação

Por fim, um dos melhores aspectos de visitar um festival em país novo é a chance de ter um pouco de contato com a filmografia local. A competitiva no Kino Pavasaris incluiu quatro longas lituanos, e se “Pilgrims” é uma ideia de curta esticada por mais de 1h30, e “Songs for a Fox” é um videoclipe de cinco minutos transformado num filme de mais de 2h, “Feature Film About Life” e “Mončys. Samogitian from Paris” apresentaram dois bons exemplares da filmografia do país.

O primeiro introduz uma cineasta promissora em Dovilė Šarutytė, que transforma o luto e a morte do pai em uma declaração de amor a ele e em um retrato de como esse amor deu origem à sua carreira de cineasta, com um ótimo uso de imagens de arquivo familiar registrados em VHS. Já o segundo é um documentário jornalístico, mas interessante e bem feito, sobre Antanas Mončys, um dos maiores escultores lituanos e seus anos vividos em Paris durante a ocupação soviética. Em tempos de terror, medo e descrença na humanidade, é nessas jovens vozes, nessa beleza da arte, que encontramos um reduto capaz de nos convencer de que a humanidade ainda vale a pena, e de que o futuro talvez nos reserve boas surpresas.

Em tempo: Com a trágica morte do documentarista lituano Mantas Kvedaravicius em Mariupol no último sábado, vítima dos ataques russos à região, o festival decidiu exibir seu longa “Mariupol”, realizado em 2016, como o filme de encerramento após a cerimônia de premiação no último domingo.

"Feature Film About Life" (2021), de Dovilė Šarutytė - Studio Uljana Kim/Divulgação
“Feature Film About Life” (2021), de Dovilė Šarutytė – Studio Uljana Kim/Divulgação

O crítico viajou a convite do 28º Vilnius International Film Festival – Kino Pavasaris.

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