Ao abrir o envelope contendo o nome do filme escolhido na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira (agora Melhor Filme Internacional) na 90ª edição do Oscar, a veterana atriz Rita Moreno teve uma reação que deixou clara sua felicidade com o resultado. “Uma Mulher Fantástica”, produção chilena lançada em 2017 e dirigida por Sebastián Lelio, já vinha com um prêmio importante, de Melhor Roteiro para Lelio e Gonzalo Maza no Festival de Berlim do mesmo ano. Ao ganhar o Oscar em 2018, tornou-se o primeiro filme protagonizado por uma pessoa transgênero a levar um prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.
Apesar do título, o longa estrelado por Daniela Vega parte de uma premissa bem pé no chão. Acompanhamos Marina Vidal, uma mulher trans que está em um relacionamento com um homem mais velho, Orlando. Depois que ele morre de repente, logo no início da trama, Marina é colocada frente a frente com a família do ex-namorado e com toda uma estrutura social que a trata de forma extremamente preconceituosa. Ou seja, o enredo lida com temas comuns (ainda que difíceis) que afetam a humanidade ou segmentos sociais específicos: o luto, a transfobia, a empatia (ou falta dela), a violência, a resistência, dentre outros.
E talvez este seja o maior mérito do filme. O fato de uma história aparentemente ordinária ser potencializada e elevada a um nível fantástico, literal e figurativamente.
De fantasia mesmo há poucas cenas, mas marcantes. Em um certo momento, ao voltar para casa, Marina precisa lutar contra uma ventania forte que quase a tira do chão, e a força física demonstrada pela personagem, que arqueia o corpo a quase 45 graus da calçada, é uma metáfora muito potente e poética para a resiliência que Marina mostra ao longo do filme.
Em outra cena, após sofrer uma agressão de um grupo de homens (incluindo o filho de Orlando, Bruno, que já havia intimidado a namorada do pai antes), a personagem de Daniela Vega é alçada aos ares em um clube. Essa cena funciona como um momento de alívio para Marina. É em um ambiente de música, dança e interação com outras pessoas da comunidade LGBTQIA+ que ela está, concreta e simbolicamente, livre para voar e ser quem realmente é, sem perigo, sem medo.
No decorrer do restante do filme, o outro elemento que confere à obra esta aura fantástica é a direção de fotografia do francês Benjamín Echazarreta. A paleta de cores geral está em diálogo com uma mise en scène mais realista, que, na maior parte do tempo, preza por cores, figurinos e cenários que não chamam atenção para si e não destoam uns dos outros.
Porém, em momentos pontuais, o filme abusa de cores quentes e filtros saturados. E é aí que a cinematografia imerge os personagens e, consequentemente, o próprio público, na intensidade de momentos dramaticamente importantes, seja no já citado passeio de Marina pela casa noturna, na dança romântica entre ela e Orlando no início do filme, ou ainda no momento em que o espírito do amado a guia até o forno crematório. Em todos estes segmentos, o uso de um vermelho ou de um roxo saturados não está ali à toa, apenas pela beleza plástica (embora sejam planos lindamente fotografados), mas para acentuar, de forma quase expressionista, o estado emocional dos personagens – principalmente de Marina, tanto em momentos de contentamento quanto e instantes de incerteza ou apreensão.
Essa profusão de cores está presente também no pôster oficial do filme, banhando o rosto de Daniela Vega. Ao mesmo tempo que a miríade de tons de azul, amarelo, vermelho e rosa acaba por formar um arco-íris, figura cuja simbologia é muito importante dentro do movimento LGBTQIA+, a composição do cartaz aponta também para uma mulher e um ser humano multifacetados.
Mas não apenas as cores servem para indicar a profundidade dramática de Marina Vidal e seu entorno. Sebastián Lelio também utiliza com eficácia a música para tecer comentários sobre a trajetória da mulher, o que faz muito sentido, já que Marina é uma garçonete que estuda para ser cantora lírica. Sendo assim, “Time”, do grupo The Alan Parsons Project, e “(You Make Me Feel Like) A Natural Woman”, de Aretha Franklin, reforçam os dois temas principais do longa: luto e identidade. Sim, são escolhas muito óbvias, mas as canções cumprem seu papel e se sobressaem em meio a uma trilha instrumental pouco marcante.
O que é mesmo notável, contudo, é como o cineasta utiliza o reflexo da personagem em espelhos ao longo de todo o filme para adensar as camadas da protagonista, ora mostrando diversas cópias virtuais dela em várias superfícies conjugadas no cenário, ora transmitindo visualmente a instabilidade da vida de Marina após a morte de Orlando, a partir do enquadramento no plano de um espelho que balança e, por consequência, chacoalha a personagem no espaço. Mas talvez o uso mais acertado de um espelho e uma das imagens mais poderosas do filme seja aquele que está em um dos últimos planos do longa. Marina está em sua pequena casa nova, deitada na cama, nua, ao lado da cachorra Diabla, dada a ela de presente por Orlando. Abaixo de seu abdômen, entre as pernas, a protagonista colocou um espelho, que cobre seu órgão sexual. Enquanto se olha no espelho, Marina exibe um semblante perdido diante de seu próprio reflexo.
Após inúmeras demonstrações de transfobia sofridas pela protagonista, o filme explica, de forma literal, simples e muito didática, que nem sempre a identidade biológica corresponde à identidade de gênero assumida por um indivíduo, e que não há problema algum nisso, já que o reflexo que se vê no espelho escancara a humanidade inerente a todos nós, compreendendo muito mais do que a conformação biológica. Em termos práticos, o enquadramento mostra que, para além da estrutura reprodutiva, socialmente tão cultuada, aspectos psicológicos e emocionais são fundamentos para a construção de uma identidade que é única, só disputável por quem a possui. Poucas imagens que vi no cinema conseguiram conter tanta complexidade a partir de uma composição aparentemente tão singela.
E essa densidade dos personagens não fica apenas na instância visual. O roteiro é muito bem amarrado e trabalha com situações e personalidades progressivamente construídas como respostas lógicas ao próprio movimento da trama. O ato de violência física sofrido por Marina, por exemplo, não acontece aleatoriamente, a título de vã exposição e choque, mas sim a partir de um crescendo de agressões verbais e simbólicas que servem para evidenciar o preconceito que sempre ronda a personagem naquela sociedade. Ou seja, ficamos o tempo todo tensos, na expectativa de que algo ainda pior pode acontecer, porque sabemos previamente o comportamento dos antagonistas.
Ao mesmo tempo, tais antagonistas não são caracterizados como vilões caricaturais. Não se pode nem chegar a dizer que são seres totalmente individualizados, pois fica bem claro que a transfobia é algo estrutural dentro daquele contexto. Há “o policial que conversa com Marina no hospital”, “o filho e a ex-esposa de Orlando”, “a detetive” e “o médico”… Nenhum deles é retratado como “a pessoa sádica e cruel”, mas como seres humanos em posição de relativo poder compondo uma estrutura sistemicamente desigual e que, em sua ignorância, falta de empatia e julgamento prévio, não conseguem lidar com a agência de alguém cujo próprio direito à existência lhes parece inconcebível. Em certo momento Sônia, ex-esposa de Orlando, usa o eufemismo “quimera” para definir Marina, tratando-a como algo grotesco, e logo depois pedindo desculpas. Nenhum desses personagens está muito longe, por vezes, de pessoas que amamos e com as quais convivemos, mas que se sentem no direito de explicitar seu ódio sob o disfarce de sinceridade ou liberdade de expressão.
Mas, contra tudo isso, o filme consegue trabalhar uma personagem principal única. Forte em suas vulnerabilidades, frágil em sua potência, Daniela Vega imprime múltiplas dimensões a Marina apenas com olhares e movimentos faciais, como na cena em que ela reage silenciosamente às demonstrações de transfobia de Sônia. Não que ela não consiga ser efusiva e enérgica quando necessário, mas a atriz se impõe e domina completamente todas as cenas nas quais aparece, muitas vezes apenas com a modulação de sua voz ou com um gesto que desnuda seu estado mental, entregando uma performance sensível, cativante e inesquecível, que dialoga completamente com a ternura e o encanto do filme em si.
Segundo o próprio Sebastián Lelio, esse diálogo entre protagonista e filme emergiu no processo de escrita, com a ideia de se fazer um filme transgênero, no sentido de gêneros cinematográficos, sobre uma personagem transgênero, no sentido da identidade sexual. O diretor contou em uma introdução à publicação do roteiro do filme que a própria identidade da película estaria em fluxo, resistindo a ser reduzida a uma só etiqueta, e que a obra flertaria com elementos do melodrama, romance, thriller. A proposta então era fazer um filme de fantasmas, um estudo de personagem, um filme sobre uma mulher e, de algum modo, a fluidez de gênero do próprio filme estaria visceralmente conectada a seu sujeito de estudo: Marina Vidal. E o mais interessante dentre o que foi revelado pelo cineasta: a pergunta “O que é uma mulher?” foi dando lugar à questão “O que é um filme?”, com todas as implicações poéticas, estéticas e políticas que essa intercambialidade traz.
Fato é que todos já passaram ou vão passar pelo luto. Todo indivíduo transgênero, infelizmente, passa por experiências de questionamento e violência contra sua identidade. Mas a forma como Sebastián Lelio narra a trajetória de Marina Vidal nos mostra, em última instância, o quão fantástica ainda pode ser a existência humana. As fantasias que almejamos. As fantasias que criamos. As fantasias que são destruídas. Qualquer que seja, a fantasia de estar no mundo. ■
UMA MULHER FANTÁSTICA (Una mujer fantástica, 2017, Chile, Espanha, Alemanha). Direção: Sebastián Lelio; Roteiro: Sebastián Lelio, Gonzalo Maza; Produção: Pablo Larraín, Juan de Dios Larraín, Sebastián Lelio, Gonzalo Maza; Fotografia: Benjamín Echazarreta; Montagem: Soledad Salfate; Música: Nani García, Matthew Herbert; Com: Daniela Vega, Francisco Reyes, Luis Gnecco, Aline Küppenheim, Nicolás Saavedra, Amparo Noguera; Distribuição: Imovision. 104 min
Jornalista formado pela UFMG e crítico de cinema, aproveita qualquer oportunidade para falar sobre sua paixão, a sétima arte. Com passagem pelo Curso Técnico em Química do CEFET-MG, iniciou os estudos de forma bem parecida com o começo do próprio cinema: em um laboratório manipulando substâncias químicas. Por quase dois anos, foi estagiário na RecordTV Minas, tendo uma rotina quase tão louca quanto a dos protagonistas de “Rede de Intrigas”. Participou do 6º Talent Press Rio e integrou a Assessoria de Comunicação da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte.