Qualquer pessoa que goste de cinema ou que costuma ver filmes em momentos de lazer às vezes se depara com obras de qualidade tão duvidosa que a apreciação se torna um momento no mínimo desafiador. “Spiderhead” é um destes casos. O filme, uma estreia da Netflix e que tem na direção o americano Joseph Kosinski (o mesmo do recente “Top Gun: Maverick”), é tão questionável do ponto de vista da realização que é difícil entender como alguém leu e liberou aquele roteiro e, mais ainda, como o corte final foi aprovado para lançamento. Mas vejamos o porquê de uma proposta verdadeiramente interessante ter dado tão errado.
No longa, seguimos a rotina de vários criminosos que estão em uma espécie de prisão experimental, onde são submetidos a testes recorrentes com substâncias químicas que têm o poder de condicionar seu comportamento, suas reações e emoções. Entre eles, o protagonismo fica com Jeff e Lizzy, que começam a desenvolver um romance e têm de lidar com as constantes experiências do administrador do lugar, um cientista brilhante que supostamente está subordinado a um comitê governamental. A premissa parece de fato muito boa, e poderia ser usada de diversas maneiras diferentes, com questionamentos éticos e reflexões filosóficas acerca das relações humanas. Stanley Kubrick, por exemplo, adentrou neste universo de forma maravilhosamente provocativa e densa em seu “Laranja Mecânica” (A Clockwork Orange, 1971). E não me entendam mal. Não quero aqui defender que todo filme deve trazer alguma proposição metafísica sobre a condição humana. Pelo contrário, há ótimos filmes que não propõem discussões sobre coisa alguma. E tudo bem.
Mas o que vemos em “Spiderhead” parece ser uma tentativa de tematizar questões da existência humana que nunca consegue de fato sair da superfície. Embora os crimes cometidos e consequentemente a culpa carregada por cada interno da instituição sejam relevantes em si mesmos, nada é exatamente desenvolvido. Não bastasse isso, o roteiro ainda tem a ousadia de tentar manipular o espectador de forma absolutamente desonesta.
Na primeira vez em que isso acontece, o filme apresenta ao público um flashback que depois é mostrado como incompleto (não em questão de duração, mas de composição do plano). Até aí, perdoável. Em que pese que os internos estão constantemente sob efeito de drogas, até faria sentido que suas lembranças não fossem sempre compatíveis com a realidade. O problema aqui é que o acréscimo feito no segundo flashback, além de parecer preguiçoso, acrescenta quase nada à narrativa, já que depende de uma relação fracamente trabalhada. Em outro momento, mais para o final da obra, uma segunda “grande revelação” é feita. Porém, a informação, que é de fato chocante, perde muito da força quando é revelado que a na realidade não foi uma ação criminosa deliberada, como havia sido explicitamente sugerido antes. Resta então o impacto pelo impacto e logo depois um balde de água fria.
Aliás, é difícil elucidar quais as reais intenções do filme. É uma grande piada com o gênero da ficção científica? Talvez sim, haja vista o efeito por vezes cômico (talvez não-intencional) de algumas das drogas aplicadas nos pacientes/detentos. Mas o filme pode ser também um drama sobre livre arbítrio, responsabilidade e ressocialização. Nesse caso, porém, falha miseravelmente, pois, como já dito, nada tem ressonância e substância real, seja nos personagens ou no enredo.
Aliás, nota-se aí também um grande problema de tom. Há cenas de um humor bastante escrachado e até escatológico, quase no nível da série “Todo Mundo em Pânico”, e outras em que os atores declamam monólogos ou choram intensamente perante a câmera. Aliás, vamos lá. Os atores…
Chris Hemsworth (também produtor do filme) aparentemente nem se dá ao trabalho de tentar passar alguma nuance ou complexidade em seu personagem, o pesquisador Steve Anesti, que tem uma história trágica por trás e motivação passível de ser mais explorada. Não há inflexão na voz, interpretação através do olhar, fisicalidade… Basicamente é Chris Hemsworth fazendo Chris Hemsworth com falas memorizadas.
Já entre o trio Miles Teller, Jurnee Smollett (que formam um casal no filme) e Tess Haubrich, é possível dizer que as coisas melhoram. Os três conseguem transitar em meio às diversas emoções que os alucinógenos provocam, transmitindo sensações como medo, desejo e dúvida de forma muito orgânica. No entanto, os dois primeiros sofrem com o caráter expositivo do roteiro e com frases de efeito que, pretendendo a abstração, tornam-se apenas risíveis. Por exemplo, em dado instante Jeff diz para Lizzy que está cansado e que já testaram diferentes substâncias nele. Ocorre que esta fala é completamente desnecessária, haja vista que a audiência já viu isso e ambos os personagens igualmente sabem. Em outro ponto da história, Lizzy questiona Jeff com a seguinte frase: “Se todos são maus, onde está o mal verdadeiro?” E pronto. A cena acaba aí, e talvez a intenção seja deixar no ar este “profundo” questionamento antropológico. No entanto, fica latente apenas o quanto o filme não sabe para onde ir, e corre por todos os lados tentando, à semelhança do próprio cientista interpretado por Hemsworth, condicionar as reações das pessoas jogando várias sementes infecundas.
A propósito, é preciso também falar sobre a falta de lógica do roteiro. Como um cientista consegue recrutar (muitos) presidiários que cometeram crimes (muito) graves sem a anuência do Estado, unicamente para fins pessoais? Isso não faz sentido algum. Também totalmente arbitrária é a descoberta da real natureza dos experimentos. Como um cientista supostamente brilhante deixa anotações fundamentais em uma caderneta numa gaveta, perto de onde vários dos internos passam? Sem contar que Jeff toma consciência de tudo após justamente a chave que abre a gaveta cair acidentalmente (e convenientemente) do bolso de Abnesti. Ou seja, não fosse este acontecimento fortuito, uma virada de roteiro imprescindível simplesmente não ocorreria. Crédito para os roteiristas (e também produtores), Paul Wernick e Rhett Reese, que aqui adaptam um conto do autor americano George Saunders.
Nesse sentido, há que se falar também da resolução do filme. A bem da verdade, tudo é tão previsível que não há muitas surpresas reais e muito menos criação de suspense. Mas o movimento do herói redimido é tão óbvio que fica difícil ter qualquer tipo de catarse. E, após este momento, o filme só vira um desfile de esquisitices, no sentido ruim da palavra. Em uma conclusão que deveria despertar adrenalina e expectativa no espectador, meu único reflexo foi rir diante do carrossel de nonsense tirado do nada. Até poderia ser levantada a possibilidade de que aquelas parvoíces não passam de algum tipo de alucinação dos personagens, mas não. É aquilo mesmo. E é muito ruim.
Mas o filme não é só ladeira abaixo. Algumas escolhas, principalmente visuais, são competentes e ajudam a estabelecer o caráter dos personagens. Destaque para o momento em que uma morte acontece e o personagem de Hemsworth encosta, com as mãos cheias de sangue, no ombro de Jeff, deixando uma marca vermelha. É uma forma interessante, literal e simbólica de dizer que o cientista está com as “mãos sujas de sangue”. Logo depois, uma conversa entre o pesquisador e seu assistente é gravada na contraluz, e vemos apenas as silhuetas dos personagens, acentuando a natureza obscura dos testes que estão sendo feitos ali.
Também é notável o uso de cortes rápidos nos momentos de flashback. Exemplo: um personagem é confrontado por uma informação ou lembrança e, em um átimo de segundo, vemos um flash do que ele rememorou. Trata-se de um modo eficaz de adentrar a consciência do personagem, no momento em que ele é atravessado rapidamente por uma memória. Contudo, até este virtuosismo pontual da montagem é quebrado quando utilizado à exaustão, mostrando insistentemente coisas que já vimos acontecer.
Por fim, não posso deixar de mencionar os efeitos visuais e a trilha musical do filme. No caso dos primeiros, há que se dizer que são eficientes na maior parte. Mas, em uma sequência específica, a tensão desaparece completamente quando constatamos o péssimo CGI que recria o movimento de um corpo humano. E para piorar, a sequência é repetida mais à frente no longa. Além de todo o absurdo do roteiro, um uso tão ruim de computação gráfica só torna o acontecimento menos impactante e o filme como um todo menos crível.
Já as músicas usadas no filme transitam entre comentários irônicos sobre a história e uma sonoridade pop saudosista que não dialoga em nada com os acontecimentos (seja por reforço ou oposição). Exemplos de músicas integradas ao enredo são “She Blinded Me with Science”, na voz de Thomas Dolby, e “The Logical Song”, da banda Supertramp. Por outro lado, canções como “What a Fool Believes”, performada pelo grupo The Doobie Brothers, e “More Than This”, cantada por Roxy Music, parecem ter entrado na trilha musical do filmes simplesmente por terem uma batida envolvente e estarem no imaginário popular, tendo pouco ou nada a ver com o que está sendo mostrado na tela.
No final das contas, “Spiderhead” é um filme de ficção científica que poderia ter ido muito além em diversas direções, mas o roteiro mal escrito e a direção errática de Joseph Kosinski tornam o longa-metragem uma experiência apenas entediante e constrangedora, daquelas que fazem com que o espectador (pelo menos no meu caso) sinta pesar pelos atores e demais profissionais que entraram no projeto. O filme não é nem tão ruim a ponto de ficar bom. Mas, na pior das hipóteses, pelo menos ainda é possível comemorar as centenas de empregos e os milhões de dólares injetados na economia local de Queensland, na Austrália, onde o filme foi filmado. ■
SPIDERHEAD (2022, EUA). Direção: Joseph Kosinski; Roteiro: Rhett Reese, Paul Wernick (baseado no conto de George Saunders); Produção: Tommy Harper, Eric Newman, Chris Hemsworth; Fotografia: Claudio Miranda; Montagem: Stephen Mirrione; Música: Joseph Trapanese; Com: Chris Hemsworth, Miles Teller, Jurnee Smollett, Tess Haubrich, Mark Paguio, Angie Milliken; Estúdio: Screen Arcade, The New Yorker; Distribuição: Netflix. 106 min