Uma tela branca ofuscante. Nela descem os créditos do filme em letras pretas. Logo depois, a brancura vai se desvanecendo e entramos em um ambiente aparentemente futurista, com pessoas vestindo roupas similares a trajes espaciais. Um destes prováveis astronautas observa a mão com uma luva de superfície áspera. No centro da proteção, há um pequeno rasgo que se abre para um buraco negro, que parece queimar com um filete residual de fumaça. Apenas os créditos e este início mostram que a intenção de “Casa de Antiguidades” é logo “tirar o boi da sala” (espectadores entenderão) para falar sobre temas como racismo e xenofobia no Brasil.
No filme, seguimos Cristovam, não um astronauta, mas na verdade um homem negro já em idade avançada e natural de Goiás. Ele busca melhores condições de trabalho no Sul do Brasil, depois que a companhia de produção de leite para a qual trabalhava fecha a filial no Centro-Oeste. No entanto, o contraste cultural e étnico da nova morada em relação à sua terra natal provoca no vaqueiro um processo de solidão, isolamento e perda de identidade. E é aí que o homem descobre uma casa abandonada, cheia de objetos e recordações que o lembram de suas origens. Ele se instala nela e, pouco a pouco, vai se reconectando com suas raízes. Mas, à medida que a narrativa avança, a casa se torna quase um ente vivo, e mais objetos começam a aparecer, fazendo-o entrar em uma espiral de perda da razão em meio ao conservadorismo e à xenofobia do lugar onde está vivendo.
Este é o primeiro longa-metragem dirigido pelo brasileiro João Paulo Miranda Maria, e foi lançado mundialmente em 2020 no prestigiado Festival de Toronto, no Canadá. O filme, coproduzido por Brasil e França e estrelado por Antônio Pitanga, foi o único latinoamericano a ser incluído na seleção oficial do Festival de Cannes daquele ano, que, mesmo não acontecendo por conta da pandemia de COVID-19, divulgou a lista das obras que estariam em competição. Além destas duas seleções, a obra foi exibida também no Festival de San Sebastián, tradicional evento de cinema na Espanha.
Outro aspecto que chama a atenção antes mesmo do início da projeção é o nome que assina a direção de fotografia, o francês Benjamín Echazarreta, que trabalhou no incrível longa chileno “Uma Mulher Fantástica” (2017), de Sebastián Lelio. Ele aqui repete a paleta de cores em diálogo com uma mise en scène mais realista (que, na maior parte do tempo, preza por cores, figurinos e cenários que não chamam atenção para si e não destoam uns dos outros), abusando pontualmente de cores quentes e filtros saturados, mas sem a mesma potência do filme de Lelio. No lugar desse trabalho com as cores, no filme de João Paulo Miranda Maria há uma aposta mais voltada para a iluminação, no sentido de criar o clima de fantasmagoria da casa que intitula a obra.
Tudo isto de que o filme trata já está, na verdade, dado desde o início, quando simbolicamente vemos elementos negros cercados, acuados e dominados pela brancura, seja nos créditos ou na primeira cena. Aqui, o cineasta usa uma estratégia que o diretor senegalês Ousmane Sembène também empregou para mostrar o estado opressivo que circunda a vida negra em seu filme “A Negra de…” (1966). Além disso, outro plano que me chamou muita atenção e se conecta muito com o filme de Sembène é aquele no qual o protagonista é assombrado por uma criança branca de máscara, em uma inversão do final arrebatador do filme senegalês. Não é de se espantar, já que o cineasta paulista vem do ambiente acadêmico e da pesquisa sobre cinema. “Casa de Antiguidades” é um filme em que ficam claros os pensamentos por trás de diversas utilizações da linguagem cinematográfica.
É digno de nota, por exemplo, como o diretor utiliza zoom-ins para reduzir gradativamente o espaço em torno do protagonista, sugerindo um ambiente que se fecha cada vez mais ao redor de Cristovam. Embora este recurso vá se tornando repetitivo a cada plano em que é usado, não deixa de ser um modo interessante de explicitar, visualmente, o sufocamento social e psíquico do personagem.
Aqui convém destacar a conjuntura que o filme apresenta. O longa se passa em uma colônia austríaca no Sul do país, onde se organiza um núcleo separatista do restante da federação. Há quase que somente pessoas brancas, que por vezes conversam em alemão. A própria empresa de laticínios vem de fora do Brasil, e há uma cena particularmente significativa na qual a companhia promove este projeto de separação do Sul.
E talvez este seja o principal defeito do filme. Tudo que concerne à crítica política que a obra traz é literal demais, expositivo demais. Não basta que o dono da empresa instalada no Sul fale frases repletas de preconceito e em alemão com o funcionário. Ele precisa patrocinar uma cerimônia na qual um orador discursa de forma caricata sobre como os estados sulistas sustentam a nação em contraste com o que chama de “pessoas preguiçosas do Norte”. Também não é suficiente que inúmeros personagens demonstrem um comportamento extremamente reacionário. O filme tem de jogar na cara do espectador inscrições como “BRASIL ASSIMA TODOS” (com esta grafia incorreta) na moldura de uma janela ou o número 17 em uma porta, ambos na casa que o protagonista começa a visitar. Esta falta de sutileza beira a subestimação da audiência, como se os espectadores não fossem capazes de identificar no filme claros apontamentos críticos ao bolsonarismo.
Não que este tipo de exagero não seja bem-vindo. Em filmes como “Bacurau” (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, os estereótipos e exageros dos vilões cabem muito bem no que se propõe como uma contra-narrativa à imagem que o cinema ajudou a construir acerca da cultura popular do Brasil e do ser brasileiro. Mas, em “Casa de Antiguidades”, o registro sério e dramático não combina nem um pouco com essa overdose de exposição.
Mas se tem algo que aproxima positivamente “Bacurau” do filme de João Paulo Miranda Maria, talvez seja o bom uso de planos-detalhes e close-ups. Destaque para o plano fechado combinado a um movimento de câmera que, à la cinema clássico, mostra apenas ao espectador o momento em que a personagem Jennifer segura a mão de Cristovam quando ele faz menção de agredir um homem que a assediou. Já no caso dos close-ups, a câmera enquadra por longos segundos os rostos dos personagens, seja para imergir a audiência em um discurso que está sendo entregue, seja para evidenciar a reação de alguém a um evento que está em curso ou acabou de acontecer.
Nesse sentido, vale um destaque para Antônio Pitanga, que consegue sustentar diversos planos longos e fechados apenas com o olhar. É verdade que a expressão facial do ator parece impávida além da conta durante quase o filme todo, mas se pensarmos que este é o rosto de um homem idoso já embrutecido pela vida e que se encontra em um lugar de total desamparo, a performance do intérprete é seguramente a melhor do filme. As coadjuvantes Ana Flávia Cavalcanti e Aline Marta Maia, por outro lado, entregam atuações excessivamente mecanizadas, e se saem melhor nas expressões faciais e no trabalho corporal do que quando precisam expor algo no diálogo.
Já as outras interpretações são mais um ponto fraco do filme. Ora afetadas demais, ora artificiais além do limite, algumas falas parecem ter sido simplesmente decoradas e são jogadas sem organicidade alguma, como é o caso dos jovens brancos que ofendem o protagonista dentro da casa que ele está ocupando.
Entretanto, é justamente daí que vem, pouco antes, um ótimo momento do filme. Cristovam entra mais uma vez na casa e encontra um quadro de seus pais com um desenho obsceno atrás. Ele é então atraído por ruídos para um quarto e lá dentro encontra dois rapazes transando de forma apática. O ato em si não é mostrado, mas o enquadramento e o zoom-out deixam claro o que está acontecendo. Os rostos perturbadoramente cínicos (aqui sim existe uma atuação verdadeiramente desconcertante) demonstram um tom de deboche e a hipocrisia de uma sexualidade reprimida combinada a um conservadorismo xenófobo.
Outra passagem do filme também faz um excelente uso da relação sexual de forma a deixar claro o estado psicológico do personagem principal. Em uma cena pouco comum de sexo entre duas pessoas negras e mais velhas, a obra expõe a degeneração da consciência de Cristovam, que enxerga na parceira não uma mulher, mas sim a fêmea de um animal. Essa utilização me lembrou muito, aliás, uma cena do premiado “A Forma da Água” (2017), de Guillermo del Toro, na qual o diretor também se vale do sexo para reforçar a caracterização de um determinado personagem.
O longa-metragem também se sai muito bem quando não quer (ou não pode mostrar por uma eventual falta de recursos) cenas que seriam muito gráficas. Seja recorrendo ao som da faca cortando a pele, seja mostrando a morte de um animal e um acidente na estrada fora de campo, ou ainda no reflexo embaçado de um espelho de capacete, percebe-se que o filme está mais preocupado em mostrar as consequências da violência simbólica e da perda da identidade cultural de um homem negro do interior do que em apresentar planos fechados mostrando sangue e vísceras.
Mas é aí que a obra entra em um terreno que particularmente considero perigoso. Toda a discussão e a simbologia em torno do vaqueiro que volta a se conectar com sua terra e seu ser através de objetos é muito instigante, mas a pergunta que fica é: até que ponto construir um personagem negro que vai sendo paulatinamente animalizado só reforça um estereótipo há muito existente de selvageria associado às pessoas pretas? A questão aqui não é que Cristovam reage à violência e tem postura ativa. Este tipo de representação da resistência negra é muito bem-vindo e necessário. Mas o protagonista embarca em um labirinto de comportamentos abusivos e misóginos que chega até mesmo ao nível da agressão física.
O final do filme assume então um caráter dúbio. O homem termina por ser transformado em um boi. A proposta de trazer literalmente a desumanização provocada pelo racismo é pertinente, mas um enredo que evolui e finaliza em um estereótipo profundamente negativo certamente precisaria tratar isso com um pouco mais de cuidado. Sem contar o plano final, que, pretendendo manter-se em aberto, parece apenas um fim inconclusivo, escolhido na falta de uma ideia melhor. Fica sugerido que a criança sente empatia pelo vaqueiro? Ela vai reproduzir os passos dele? Isso poderia acontecer, mas não faz sentido dentro do que o filme construiu. O mais provável é que o menino atire em Cristovam, confirmando um ciclo de violência da branquitude já estabelecido e que vai se perpetuar. Mas então qual a razão da omissão? O barulho do tiro poderia ser usado como indicativo desse desfecho, assim como em outros momentos o som é usado em substituição à imagem explícita. Escondendo um fim condizente com a proposta, o filme acaba criando uma abertura no vazio
“Casa de Antiguidades” é um filme muito bem feito e que traz questões fundamentais sobre o Brasil contemporâneo. O longa, no entanto, é prejudicado por um didatismo excessivo, por atuações irregulares e uma conclusão que fica bastante aquém da complexidade das problemáticas apresentadas. Com um início promissor, o final deixa um gosto agridoce, e uma sensação de que o filme se inspirou demais na desordem da casa que o protagonista encontra. ■
CASA DE ANTIGUIDADES (2020, Brasil). Direção: João Paulo Miranda Maria; Roteiro: João Paulo Miranda Maria, Felipe Sholl; Produção: Denise Gomes, Paula Cosenza, Didar Domehri; Fotografia: Benjamín Echazarreta; Montagem: Benjamin Mirguet; Música: Nicolas Becker; Com: Antônio Pitanga, Ana Flávia Cavalcanti, Sam Louwyck, Aline Marta Maia, Gilda Nomacce; Estúdio: BeBossa; Distribuição: Pandora Filmes. 87 min
Jornalista formado pela UFMG e crítico de cinema, aproveita qualquer oportunidade para falar sobre sua paixão, a sétima arte. Com passagem pelo Curso Técnico em Química do CEFET-MG, iniciou os estudos de forma bem parecida com o começo do próprio cinema: em um laboratório manipulando substâncias químicas. Por quase dois anos, foi estagiário na RecordTV Minas, tendo uma rotina quase tão louca quanto a dos protagonistas de “Rede de Intrigas”. Participou do 6º Talent Press Rio e integrou a Assessoria de Comunicação da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte.