"Gritos e Sussurros" (Viskningar och rop, 1972), de Ingmar Bergman - Foto: Reprodução

“Gritos e Sussurros”: Inexplicável

O título deste texto reflete da maneira mais acabada a melhor definição que pude encontrar para sintetizar este filme. É 1h57min da madrugada enquanto escrevo estas palavras em meu quarto e, nestas condições de baixa temperatura e alta pressão em tempos de peste, ouso dizer que “Gritos e Sussurros” é meu filme preferido até então do diretor sueco Ingmar Bergman. Vou ainda mais além. Agora, mesmo depois de meses do dia em que o assisti, encontro-me tão inebriado pela aparente perfeição da película que por ora penso seriamente em considerá-la a melhor que já vi na vida. Por enquanto, logicamente.

Sim.

Eu sei.



Provavelmente amanhã mudarei de opinião. Mas como ainda estamos no hoje, esta colocação ainda faz sentido. E, diferentemente da temperatura ambiente de meu quarto, Viskningar och rop, no título original, não é de todo frio. O filme intercala, em suas quase duas horas, uma tristeza mórbida e gélida na abordagem de seus temas combinada a um excessivo calor e à ostensiva visualidade provocados pela monumental fotografia abrasada em saturação de Sven Nykvist e pelos cenários, figurinos e maquiagem em tons predominantemente vermelhos ou muito contrastantes entre si.

Ao contrário dos demais textos que venho publicando até o presente momento, não farei questão de manter neste uma linha argumentativa concatenada ou uma progressão convencional de ideias. “Gritos e Sussurros” não é (definitivamente, absolutamente, decididamente) assim. É o tipo de filme que eu defino, com total ausência de originalidade, como uma pura experiência sensorial.

E, em que pese que todo filme pode ser assim referenciado, alguns demandam e provocam uma imersão tão grande a ponto de nos sentirmos parte da fita, esquecendo-nos de nossa dimensão espectatorial. A entrada na diegese cinematográfica nestes casos é tão forte, tão intensa, que os aspectos narrativos passam ao largo, para o segundo plano. São percebidos apenas a posteriori. Nos preocupamos, pois, muito mais com a identificação que os personagens e situações nos despertam, com suas dores, angústias e sofrimento. A estética e as performances assumem então um papel principal, na medida em que são fundamentais, na ausência de um enredo propriamente dito ou suficientemente protagonista, para que ocorra a relação quase simbiótica entre o público e os dramas vividos.

Mas, afinal, sobre o que é “Gritos e Sussurros”?

Basicamente, o longa-metragem se concentra em uma mulher assistida pelas duas irmãs, pela cuidadora e por nós.

O verbo assistir pode assumir pelo menos dois sentidos mais comuns. Um deles, o de presenciar, está abarcado nas ações das irmãs de Agnes (Harriet Andersson). Karin (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullmann) observam a irmã morrer lentamente, acometida por um câncer terminal. Embora presentes, as duas estão recorrentemente enclausuradas em seus dilemas e questões pessoais. Já nós, enquanto público, embora compartilhando desta observação, estamos paradoxalmente fora do filme (em termos concretos), mas mais dentro dele (simbolicamente) do que as irmãs da enferma, dada a já falada imersão absoluta proporcionada pela obra-prima do realizador escandinavo. Eis aí o poder do cinema!

Já à criada Anna (Kari Sylwan) recai a tarefa de cuidar, o outro sentido para assistir. Uma das imagens mais impactantes e atemporais (das muitas) deste filme é aquela em que Anna e Agnes reproduzem a Pietá, símbolo do cuidado de Maria com seu filho Jesus e imortalizada na escultura de Michelangelo.

Especialmente potente para qualquer pessoa que já conviveu com alguém enfermo, Gritos e Sussurros abusa de rubros flashbacks para trazer à tona também os dramas de quem assiste. E estes clarões para trás (em uma terrível tradução livre) têm justamente a função de jogar luz ao passado das quatro mulheres que protagonizam o filme. Afinal, porque chegamos a este estado chocante de coisas?

O protesto de Karin (Ingrid Thulin) em “Gritos e Sussurros” (Viskningar och rop, 1972), de Ingmar Bergman – Foto: IMDb

Em um certo momento, a mutilação de Karin é uma resposta à indiferença do marido. É uma sequência que choca pelo desconforto absurdo.

Por sua vez, a indiferença de Maria é uma resposta ao abandono que sofre em seu casamento. É uma sequência que choca pela crueza dilacerante.

O abandono maternal foi, no passado, involuntariamente gerador de imensos traumas em Maria. É uma sequência que choca pela melancolia saudosista.

O trauma de Anna é o que impulsiona sua tocante relação com Agnes. É uma sequência que choca pela tristeza inimaginável.

O toque foi a ponte que sempre separou a traumática Maria da agora mutilada Karin. É uma sequência que choca pelo ressentimento gritante.

Maria (Liv Ullmann) no limiar de emoções em “Gritos e Sussurros” (Viskningar och rop, 1972), de Ingmar Bergman – Foto: Reprodução

O ciclo de dramas extremamente humanos reflete as questões caras às mulheres na burguesia sueca do final do século XIX. E essa reflexão, poética, fluida e contundente é o que nos guia e prende neste filme parcimonioso, mas ininterruptamente intenso.

Absolutamente impecáveis, todas as atrizes conferem uma verdade seminal a cada performance. Mas, sem dúvida, Liv Ullmann e Ingrid Thulin transcendem o nível de entrega que um intérprete pode apresentar. Seus olhares e expressões faciais quase conseguem materializar os sentimentos e emoções. Ullmann, especificamente, tem um momento de brilhantismo assombroso, quando passa da confiança e equilíbrio aos mais absolutos desespero e pavor em questão de segundos.

A tentação de Maria (Liv Ullmann) em “Gritos e Sussurros” (Viskningar och rop, 1972), de Ingmar Bergman – Foto: IMDb

Minutos. Horas. Relógios ocupam um espaço muito especial na película. Não bastasse a já torturantemente assombrosa atuação de Harriet Andersson como uma moribunda acometida por intensas dores físicas e emocionais (emulando um pouco sua persona em “Através de um Espelho”¸ de 1961, também de Bergman), os relógios estão lá para nos lembrar da dilatação do tempo e, por extensão, da total falta de controle humano sobre o momento de chegada da morte.

E essa dilatação comporta também a função das irmãs de Agnes, que, no limite, é igual à nossa: assistir, observar. Mais que apenas nos aproximar da doente, Bergman procura também nos posicionar ao lado de suas irmãs. Afinal, quem de nós, enquanto passou por uma situação difícil, não estava às voltas com dramas particulares? Poderíamos então julgar Karin e Maria? Os relógios nos remetem ao tempo, e o tempo, em seu constante vaivém, nos informa a alma. Não das personagens. A alma de suas relações. Suas relações duram pouco. Se esvaem nos sonhos e memórias. O toque de Maria e Karin é efêmero. De nada adianta para as unir. A misericórdia de Anna para com Agnes de nada adianta para postergar a morte. O tempo sempre cobra. O relógio é sempre impiedoso, em seu cego fatalismo.

A epifania de Karin (Ingrid Thulin) em “Gritos e Sussurros” (Viskningar och rop, 1972), de Ingmar Bergman – Foto: Reprodução

E ele me diz, agora mesmo, que são 3h10min. A madrugada avançou impiedosamente na enfermidade de Agnes. A madrugada avançou impiedosamente em paralelo às minhas palavras.

Dos sonhos de “Gritos e Sussurros”, passo então aos meus sonhos banais. Nem tão surrealistas. Nem tão formais. Nem tão puramente artísticos. Mas, com toda a certeza, nunca os mesmos depois desta minha mais nova experiência sensorial.

O calor de outros tempos em “Gritos e Sussurros” (Viskningar och rop, 1972), de Ingmar Bergman – Foto: IMDb

 

Nota:

GRITOS E SUSSURROS (Viskningar och rop,1972, Suécia). Direção: Ingmar Bergman; Roteiro: Ingmar Bergman; Produção: Ingmar Bergman e Lars-Owe Carlberg ; Fotografia: Sven Nykvist; Montagem: Siv Lundgren; Direção de arte e figurino: Marik Vos-Lundh; Com: Harriet Andersson, Liv Ullmann, Kari Sylwan, Ingrid Thulin, Anders Ek, Inga Gill, Erland Josephson, Henning Moritzen, Georg Årlin; Empresas produtoras: Cinematograph AB, Instituto Sueco do Cinema (Svenska Filminstitutet -SFI); Distribuição: Filmicca (streaming). 91 min