"Não! Não Olhe!" (Nope, 2022), de Jordan Peele - Foto: Universal Pictures/Divulgação
Foto: Universal Pictures/Divulgação

“Não! Não Olhe!”: Os monstros que nos veem

“Existem espaços de agência para pessoas negras, onde podemos ao mesmo tempo interrogar o olhar do Outro e também olhar de volta, um para o outro, dando nome ao que vemos. O ‘olhar’ tem sido e permanece, globalmente, um lugar de resistência para o povo negro colonizado”. As palavras de bell hooks em seu clássico texto “O olhar opositivo: a espectadora negra” não poderiam ser melhores para falar sobre “Não! Não Olhe!” (Nope, 2022), novo e aguardado filme de Jordan Peele.

O diretor provou em seu primeiro filme, Corra! (Get Out!, 2017), sua capacidade de transitar magistralmente entre a comédia e o horror social. Nós (Us, 2019) demonstrou que o sucesso anterior foi tudo, menos sorte de principiante. E em seu terceiro trabalho, ele mostra que não é refém do que deu certo. Em uma obra inventiva na abordagem, ganhamos exatamente o que esperávamos e somos, porém, levados muito mais além pelo realizador, de forma corajosa e segura.

“Não! Não Olhe!” (o título brasileiro parece demasiado esdrúxulo, mas é justificável) não é o tipo de filme sobre o qual se pode falar exatamente de spoilers. A trama já está dada desde o início, e Peele propositalmente passa ao largo de qualquer grande reviravolta, marcas de seus filmes anteriores. De todo modo, tentarei não entrar em detalhes acerca de cenas-chaves, pois sempre é bom ter o impacto da primeira apreciação. O que tentarei aqui é argumentar como, após falar sobre o racismo e a desigualdade social em seus trabalhos anteriores, o roteirista e realizador se volta agora para o próprio cinema e, por extensão, para o audiovisual como um todo.



Não que a história, que combina terror e ficção científica, não tenha importância. Há uma narrativa de gênero se desenvolvendo ao longo do filme. A trama acontece em um rancho de criação de cavalos para produções de cinema e televisão no interior da Califórnia, onde, certa noite, uma estranha e ameaçadora aparição no céu provoca fascínio e pânico entre os moradores. Mas essa sequência de acontecimentos não é, pelo menos sob minha perspectiva, a preocupação central do projeto, o que nunca se torna um problema neste caso. Diferente de “Corra!” e “Nós”, por exemplo, o filme não guarda uma virada surpreendente para o final. Existe um enredo, mas ele parece, mais do que nunca, uma justificativa para que o diretor teça seu comentário, agora sobre o fazer artístico a partir das imagens.

Isto já fica claro na citação que abre o filme: “I will cast abominable filth upon you, make you vile and make you a spectacle”. Traduzindo, algo como: “Vou lançar sujeira abominável sobre você, torná-lo vil e torná-lo um espetáculo”. Trata-se de um excerto retirado do livro de Naum, profeta do Antigo Testamento da Bíblia. Sem entrar no mérito do contexto histórico e religioso que cerca o livro (daí sairia um sem-número de conjecturas), o que chama a atenção à primeira vista é a presença do verbo to cast no início da frase. O sentido mais comum e amplamente atribuído à palavra hoje tem a ver justamente com o cinema. Mais especificamente com a escolha de elenco de um filme (ou qualquer outro produto audiovisual). É verdade que a frase original em hebraico não necessariamente guarda esta mesma significação. Mas Peele faz seu filme em inglês, e certamente não é à toa que ele retira esta citação em específico do texto bíblico.

Saindo de sua significação profética, a frase é reapropriada e parece querer apontar para o próprio cinema hollywoodiano, que durante décadas tornou vis diversas pessoas e fez delas espetáculo perante a audiência, por vezes manchando suas vidas e trajetórias profissionais. Em suma, ditando o olhar que seria lançado a estes grupos. Mas que pessoas foram essas? As mesmas que o diretor estadunidense coloca sempre como protagonistas. E outras mais.

"Não! Não Olhe!" (Nope, 2022), de Jordan Peele - Foto: Universal Pictures/Divulgação
Foto: Universal Pictures/Divulgação

Várias das teorias formuladas antes da estreia do filme apostavam que o roteiro era uma entrada de Peele no subgênero de invasão alienígena. A casa no meio do nada é um cenário clássico para este tipo de horror. E as previsões estavam corretas. Os próprios trailers não fazem questão de esconder isso, e o filme revela a que veio bem cedo. Os protagonistas OJ (Daniel Kaluuya, reprisando sua parceria com Peele) e Em Haywood (Keke Palmer, em uma ótima performance que ainda destacarei à frente) atendem às expectativas contemporâneas depositadas no terror, tendo consciência e agência face à ameaça. Também o diretor é consciente do quão explorado já foi o subgênero de invasão alienígena. E também das concessões que o espectador precisa fazer para dar crédito a este tipo de enredo.

Com o que se parecem os alienígenas? O que fariam caso chegassem à terra? Por que viriam? O cinema já tentou tantas vezes responder a essas perguntas que a quantidade de filmes sobre invasão extraterrestre é abundante. Sabendo que ser original e crível neste tipo de história é tarefa muito difícil, Peele é categórico. Não há uma concepção revolucionária de como seria uma invasão alienígena. E o que é apresentado não procura ser exatamente factível, se é que isto seria possível. Afinal, colegas espectadores/as, como uma nuvem fica seis meses no mesmo lugar e isso não desperta a atenção de meteorologistas, por exemplo? Sabendo que está no subgênero da fabulação absoluta, o diretor assume que, no final das contas, tudo aquilo não faz sentido. Não por acaso, o personagem do diretor de fotografia (Michael Wincott, em um personagem tão enigmático quanto o filme) que se junta aos protagonistas fala explicitamente sobre como tudo aquilo “é tão ridículo”. Ele está falando sobre o plano elaborado para registrar a presença do ser de outro planeta, mas também (metalinguisticamente) sobre o caráter excêntrico e por vezes histriônico que advém da mistura entre terror e ficção científica.

Isso fica claro sobretudo em um dos momentos mais assustadores do filme, construído de forma magistral através do movimento de câmera fluido, e que termina de maneira absolutamente singular. Não vou revelar do que se trata, porque a cena merece ser experienciada em toda a sua dimensão aterrorizante. Mas basta dizer que, em uma alusão aos filmes de aliens dos anos 1950, o roteiro brinca com convenções da criação do horror alienígena e com a presença humana por trás dos monstros. Mais uma vez, acenando para o fato de que o filme está ciente de que tudo aquilo já foi feito antes de muitas formas. Voltamos então ao ponto central da discussão, em direção a uma das tantas chaves possíveis para interpretação do que Peele quer comunicar à audiência: o monstro, na verdade, é Hollywood, ou a indústria do entretenimento, gerados e abastecidos pela sociedade.

A começar pela própria conformação da ameaça alienígena, o longa trabalha a questão do próprio cinema e sua relação com o olhar. A forma que mais aparece da criatura é, literalmente, um olho, que observa a todos. Quem, porém, direciona o olhar para ela, morre. Em termos metafóricos, pode-se pensar no cinema hollywoodiano, que sempre olhou para negros, mulheres, latinos. Estes e outros grupos, no entanto, foram sistematicamente impedidos de construir olhares sobre si e sobre o mundo até muito recentemente dentro do cinema mainstream americano.

É neste sentido que o filme apresenta vários tipos de olhares tipicamente hegemônicos dentro da cultura norte-americana, extrapolando o próprio cinema: temos então o olhar que retrata o asiático no programa de TV, o que recai sobre os animais (aqui como símbolos, e não puramente seres irracionais), o que é direcionado às pessoas pretas, o olhar da mídia sobre os acontecimentos. Daí é possível destacar vários caminhos.

A esta altura, talvez umas das marcas autorais mais distintas que se pode associar a Peele é o uso que ele faz de animais para construir suas metáforas. Em todos os seus filmes existe uma associação entre estes seres e os humanos. Em “Corra!”, um cervo é equiparado ao protagonista. Já em “Nós”, coelhos representam os duplos que emergem do submundo. Em “Não! Não Olhe!”, cavalos e um chimpanzé dividem este papel de signo atrelado a grupos de personagens.

Aí talvez tenhamos um comentário sobre os traumas que podem advir da impossibilidade de olhar cinematograficamente para si mesmo. No caso dos cavalos, Lucky (“Sortudo”, um nome que não parece ter sido colocado à toa) fica atônito quando se vê na bola prateada no set de filmagem. Mais interessante, porém, é a subtrama do chimpanzé Gordy. A tragédia que acontece no palco do programa “Gordy’s Home” nada mais é do que o sintoma de uma criatura cansada de ser vista e utilizada pela mídia. Algo semelhante à catarse mostrada em “Coringa” (Joker, 2019), de Todd Phillips. No final das contas, o chimpanzé Gordy é nivelado ao Jupe criança (dois objetos de olhar, e não-agentes de suas representações, distinguidos visualmente em meio à branquitude que protagoniza o seriado).

Aliás, é justamente a cena apoteótica protagonizada por Gordy que fornece ao público outro ponto alto do filme, desta vez em questão do uso de som. Sem revelar muito, digamos que o diretor nos mostra que ruídos podem ser mais sugestivos e viscerais do que imagens explícitas. Isso, em um filme que transita em torno do olhar, é sintomático. Jordan Peele está nos chamando a atenção para o fato de que o cinema deliberadamente escolhe o que nos mostrar e o que esconder, e que inúmeras vezes o que não é mostrado em frente à câmera segue latente. Mas também é justamente no quesito “som” que fica mais evidente aquele que considero o único defeito do filme: o uso clichê de sustos falsos e/ou jumpscares, sempre precedidos por um aumento repentino da trilha sonora. Espectadores identificarão, mas é suficiente dizer que em pelo menos dois momentos o longa usa desses expedientes para dar sustos gratuitos no público, na contramão de toda a ótima construção de suspense e dos instantes de tensão real que a direção consegue estabelecer.

"Não! Não Olhe!" (Nope, 2022), de Jordan Peele - Foto: Universal Pictures/Divulgação
Foto: Universal Pictures/Divulgação

Retornando à discussão sobre o olhar, o filme se debruça também, como seria de se esperar de Peele, sobre a imagem construída dos negros no cinema americano. Em uma recuperação histórica à la Spike Lee em seu “Infiltrado na Klan” (BlacKkKlansman, 2018), Peele resgata uma das primeiras séries de imagens a trazer a noção de movimento, ainda no final do século XIX. Os protagonistas do filme se dizem tataranetos do homem negro que cavalga na sequência de fotos, mas o cinema americano se encarregou de tornar efêmera aquela experiência pioneira de protagonismo negro no cinema. Corrigindo esse erro histórico, o final do filme coloca o personagem de Daniel Kaluuya em um enquadramento que faz referência direta ao homem da primeira filmagem, fechando tanto um ciclo familiar explícito no filme quanto um movimento simbólico do próprio cinema, que aqui volta à suas origens como forma de se reencontrar e reinventar a si mesmo, desta vez de forma justa.

A propósito, Kaluuya está, como sempre, muito bem. Sua atuação contida passa muito bem o estado desorientado no qual OJ se encontra após a morte do pai (papel de Keith David). O ator, mesmo com o rosto estático, tem muita expressividade no olhar, transitando de forma muito sutil entre o medo e dúvida que se alternam na mente do personagem. Mas quem rouba a cena no filme é de fato Keke Palmer, como a extrovertida Em. Expansiva na medida certa, a atriz exibe um trabalho corporal muito interessante, com movimentos das mãos e pernas que transmitem fisicamente o ímpeto da personagem de querer construir uma carreira no show business, além de funcionar muito bem em oposição à interpretação mais comedida de Kaluuya. Ambos têm em cena, vale destacar, uma química muito forte, e realmente passam a impressão de serem irmãos.

É dessa interação e da presença do coadjuvante Angel (Brandon Perea, se divertindo no papel) que vêm os momentos cômicos que não poderiam faltar em um filme de Jordan Peele, vindo da comédia. O humor está mais dosado nesse filme e, assim como em “Nós”, aparece em momentos pontuais e mais integrado à ação principal. Novamente, o filme e seus personagens são muito autoconscientes. Não me esqueço, por exemplo, das altas risadas que ouvi na sala de cinema (algumas das quais minhas) no momento em que OJ abre um pouco a porta do carro e se nega a sair quando vê a ameaça, fazendo o que qualquer pessoa racional (e cínica) faria naquela situação. E o filme combina muito bem estes momentos como outros, genuinamente assustadores ou nos quais o espectador não tem ideia de para onde a narrativa está indo, mantendo continuamente uma atmosfera de estranheza e de que algo está por acontecer.

Por exemplo, por que os personagens insistem tanto em fotografar a ameaça ao invés de efetivamente combatê-la? Por que o repórter do TMZ prefere se colocar em risco para conseguir um registro do alien? [O próprio nome do personagem principal, OJ, já é um apontamento crítico deliberado à espetacularização da mídia.] E, mais importante, por que o personagem principal se recusa a sair do rancho? Estas são perguntas que emergem nos momentos em que o roteiro foge do óbvio e também reforçam a noção de que o filme se estrutura não em torno da concretude dos acontecimentos e sua dimensão prática, mas usa aquele microcosmo para falar sobre o cinema e audiovisual americanos e sua necessidade de marcar território. Neste sentido, ter o controle do olhar é combater a ameaça, e permanecer ali é, metaforicamente, a possibilidade de tentar agir sobre as imagens produzidas.

Imagens estas que são muito bem utilizadas por Peele. O filme trabalha em diversos momentos com códigos de vários gêneros cinematográficos. Da cena em que os personagens estão dentro da casa enquanto o monstro ataca e permanecemos com eles até a própria forma principal da criatura extraterrestre, terror e ficção científica são os mais evidentes. Possíveis referências a “Os Pássaros” (The Birds, 1963), de Alfred Hitchcock, e “A Ameaça que Veio do Espaço” (It Came from Outer Space, 1953) de Jack Arnold, entre tantos outros.

"Não! Não Olhe!" (Nope, 2022), de Jordan Peele - Foto: Universal Pictures/Divulgação
Foto: Universal Pictures/Divulgação

Mas, fugindo à obviedade, o longa recupera também muitos códigos do western, gênero tipicamente americano e principal responsável pela criação de uma passado mítico tendo o homem branco como protagonista. Desde as referências temáticas mais óbvias, como o parque de diversões de Jupe (como não gostar de Steven Yeun?) e o pôster do faroeste protagonizado e dirigido por Sidney Poitier em 1972, às alusões visuais mais específicas, tal qual o plano em que personagens aparecem enquadrados entre os batentes de uma porta de modo muito similar ao início e ao fim de “Rastros de Ódio” (The Searchers, 1956), de John Ford. De forma mais geral, são muito interessantes também os planos gerais próprios do western, em que os personagens aparecem pequenos em meio à natureza gigante e impiedosa, ecoando o caráter ameaçador do mundo (real e simbólico) que os circunda.

E parece ser justamente a referência ao western que se sobressai no fim do filme. O monstro alienígena é destruído justamente quando Em dá a ele o caubói branco. Talvez uma lembrança de que esta indústria só tem a perder enquanto continuar se alimentando e absorvendo narrativas já ultrapassadas e que representam apenas uma fração do público.

Há alguns meses, escrevi que certamente este novo filme de Jordan Peele seria uma obra que, apenas ele, com sua visão de mundo, poderia pensar e executar. Também esta expectativa se provou correta para mim. Novamente o cineasta reveste seu trabalho com uma camada de elementos conhecidos e estruturas canônicas, mas nos convida a olhar bem fundo. O filme nos entretém e, sobretudo, fica conosco. As temáticas e questões que permeavam a mente de Peele agora são minhas também. Ele me fez olhar para outros lugares. Mais do que nunca, o vejo como um autêntico autor de cinema. 

Nota:

filme não não olhe

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Confira também o nosso podcast sobre “Não! Não Olhe!”

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NÃO! NÃO OLHE! (Nope, 2022, EUA). Direção: Jordan Peele; Roteiro: Jordan Peele; Produção: Jordan Peele, Ian Cooper; Fotografia: Hoyte van Hoytema; Montagem: Nicholas Monsour; Música: Michael Abels; Com: Daniel Kaluuya, Keke Palmer, Steven Yeun, Michael Wincott, Brandon Perea, Wrenn Schmidt, Barbie Ferreira, Keith David; Estúdio: Universal Pictures, Monkeypaw Productions; Distribuição: Universal Pictures; Duração: 2 h 10 min.

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