Primeiro longa de ficção da diretora Maria Clara Escobar (do premiado documentário “Os Dias com Ele”, de 2013), “Desterro” é um filme difícil de descrever. Também difícil de criticar. Sinto que, se a obra fosse uma sucessão de situações independentes, seria talvez mais fácil falar sobre ela, e quem sabe o resultado poderia ter sido mais interessante. Isso porque é justamente nestas histórias autônomas que intercorrem o enredo principal que o longa-metragem alcança seus pontos altos.
O filme, uma coprodução entre Brasil, Argentina e Portugal, segue um casal de classe média, Laura (Carla Kinzo) e Israel (Otto Jr.), cujo casamento parece não estar nos melhores dias. De repente, um acontecimento surpreendente muda o rumo da história, e acompanhamos, separadamente, as questões que cercam tanto um quanto o outro elo deste relacionamento. “Desterro” teve sua estreia internacional no prestigiado Festival de Roterdã, na Holanda, e depois foi exibido no Festival do Rio, entre outros.
Se o próprio filme não deixa muito clara qual sua proposta (para que direção a obra vai em sua totalidade?), o título já nos ajuda. Me lembro de um professor da faculdade dizendo que títulos não são resumos, mas orientações de leitura. A definição cabe perfeitamente aqui. A palavra “desterro” é muito estranha ao nosso vocabulário comum, mas basta nos lembrarmos que um de seus sinônimos é “exílio”. Por consequência, “desterro” também pode ser “solidão”, “isolamento”. Aqui já temos um caminho possível: “Desterro” é sobre pessoas que não se encontram em lugar algum; que não cabem onde estão; e que, mais profundamente ainda, não têm a mínima perspectiva de acharem algum canto para si.
Daí a fragmentação da história, a apatia das interpretações e a falta de cor que vemos na tela. Laura e Israel levam suas vidas de forma mecânica, fazendo as mesmas coisas todos os dias, discutindo os mesmos assuntos banais. O filme deixa claro que, nem mesmo em um momento traumático, a existência contemporânea se vê livre da automatização e da burocracia das relações, dando enfoque na relação do feminino com as contingências do mundo e as formas que mulheres encontram de viverem fagulhas de felicidade em meio às agressões cotidianas.
É curioso como um filme pode crescer a partir da elaboração, apesar dos problemas. Nenhuma destas questões que trago aqui estavam em minha mente no momento em que assistia à obra. Sentia apenas, e gosto muito disso, uma completa desorientação. E isso o longa consegue muito bem. Apenas mais uma das semelhanças com o franco-alemão “Possessão” (Possession, 1981), de Andrzej Żuławski. Assim como no filme de horror oitentista, em “Desterro” temos uma trama estranha com pessoas estranhas. Em momento algum senti que poderia me apegar a alguém. Maria Clara Escobar escreve uma história principal em que não há portos seguros.
E é aí que o roteiro surpreende quando apresenta um mosaico de histórias narradas por mulheres, contando relacionamentos, desejos, frustrações, tragédias. Algumas das tramas comuns, outras nem tanto. Mas todas muito bem incorporadas pelas atrizes e muito bem introduzidas no filme, principalmente na terceira parte. Este é sem sombra de dúvidas um dispositivo muito interessante. A diretora parece estar querendo nos chamar a atenção para o fato de que, em paralelo àquela história desprovida de cores, outras tantas ficam pelo caminho. E, mais ainda, ressaltar que estamos assistindo a um filme e, dada esta condição, nosso olhar irá para onde a direção nos conduzir. Destaque para o talento da mineira Bárbara Colen, de Isabél Zuaa e de Georgette Fadel. Eu ficaria facilmente ouvindo àquela e muitas outras histórias contadas por essas atrizes, cujas performances trazem brilho e dinamismo à obra.
Na primeira vez que o fluxo da história é cortado por um destes interlúdios, o efeito é de choque. Entramos em um trem e, absolutamente do nada, a câmera enquadra uma mulher (a também mineira Grace Passô) que logo começa a conversar com outra que acabou de entrar no vagão. Elas discutem de forma saudosista a respeito de uma experiência afetiva que tiveram juntas. Só depois percebemos que Laura estava na composição, fora de quadro, e que provavelmente estávamos vendo a cena a partir do ponto de vista dela. De certo modo, é também uma provocação. Acompanhamos aquela história muito envolvente e, de uma hora para a outra, somos puxados de volta para a vida monótona de Laura. Assim como na vida, quando assistimos a um filme muito interessante e logo depois somos trazidos de volta à nossa realidade ordinária. Esta construção narrativa de uma história entrecortada por várias outras talvez seja a principal força e ao mesmo tempo a fraqueza central do filme.
Isso porque, comparada a estes interlúdios, a trama principal parece desinteressante e até mesmo um pouco desorganizada, como se a história não soubesse para onde andar. De fato, em parte o objetivo parece ser provocar desconforto pela apatia e pelo retrato de um cotidiano acinzentado, sem esperança e incerto. É sintomático então que este filme tenha sido feito sob o governo Bolsonaro e lançado em meio à pandemia de Covid-19. Mas existe um fino equilíbrio entre narrar uma existência “sem graça” de forma estimulante e narrar uma existência “sem graça” de forma “sem graça”. A direção parece se perder neste limiar. Cenas como o percurso de moto de Israel depois que ele é exposto à burocracia indiferente ao seu trauma ou o penúltimo plano do filme se estendem tanto que deixam de ser críticas e passam a ser apenas enfadonhas. Nestes momentos, para ficar em um lugar-comum, não me cansei com o filme, mas sim do filme.
Algumas atuações sofrem do mesmo problema. Otto Jr. e Carla Kinzo por diversas vezes soaram apáticos além do ponto, o que é de se surpreender, já que a atriz colaborou no processo de escrita do roteiro e por isso, supostamente, ela conhecia a história profundamente. Mesmo uma interpretação que se pretende ser minimalista precisa apresentar nuances, quebras na voz, movimentos faciais discretos. Na contramão disso, as performances parecem forçar ao máximo um cansaço e um peso que parece arrastado, artificial e momentâneo, arrefecendo toda a carga dramática que o projeto exige.
O personagem de Otto Jr., aliás, parece extremamente deslocado na trama. Todo o segundo ato é levado apenas por ele, e é neste momento que o enredo se torna mais frio e menos inventivo. No trecho menos convencional desta segunda parte do filme, vemos o personagem correr desesperadamente enquanto ouvimos na trilha uma música que critica a influência da religião na vida das pessoas. Visualmente é uma boa solução para mostrar o estado perdido do personagem (neste sentido, a metáfora da dificuldade para refazer a carteira de identidade também é certeira). A cineasta vai fechando cada vez mais a lente, como se fazia no cinema silencioso, e percebemos o quão restrito está se tornando o mundo daquele homem após o evento que lhe aconteceu. Mas, ao contrário da bem-sucedida visualidade, a canção entra de modo totalmente arbitrário, e a crítica parece vir de lugar algum para lugar nenhum, destoando totalmente do tom soturno estabelecido até então. E notem, se o filme fosse repleto de esquisitices deste tipo, o problema estaria resolvido. Mas, inserir uma cena rápida ao som de punk rock em um filme majoritariamente sóbrio apenas depõe contra a coesão da obra.
Mas, para além destes problemas, o longa ainda consegue construir instantes muito interessantes, principalmente a partir do uso de simbolismos nas imagens. Me lembro especificamente de dois planos específicos. No primeiro, o enquadramento de Laura na parede de vidro de sua casa mescla a face da mulher à floresta que cerca sua casa, sugerindo que a cabeça da personagem, presa àquelas paredes e àquela rotina estafante, está em outro lugar, talvez até mesmo em algum ponto “selvagem”, ainda inexplorado de sua consciência. Bem mais à frente, os rostos de Israel e Lucas são escondidos pelo reflexo das folhagens e copas de árvores, quase como se a direção estivesse tentando poupar o espectador de testemunhar a conversa difícil que pai e filho têm dentro do carro.
Outras ideias notáveis vêm da composição das imagens, que, não por acaso (a diretora é também poeta), trazem uma carga poética bastante intensa. A começar pelos diversos enquadramentos de pessoas sem cabeça, traduzindo visualmente a desorientação psíquica que vemos ser regra nos personagens. Outros casos também são emblemáticos. Laura, especialmente, aparece algumas vezes na estação esperando o trem, exatamente no meio da plataforma, diminuída no centro do enquadramento. Será ela uma nova versão da igualmente perdida Macabéa, de “A Hora da Estrela” (1985), de Suzana Amaral? Do mesmo modo, nas várias vezes em que Israel e Laura tomam café, na primeira parte do filme, um dos intérpretes quase sempre está de costas para o público, enquanto o outro está de frente. Ambos, separados por uma pequena distância, raramente se olham nos olhos. É uma forma econômica e eficaz de demonstrar quão distantes os dois estão, e como para o espectador é difícil ver aquele relacionamento em sua completude. Afinal, sempre que vemos o rosto de Laura, estamos vendo as costas de Israel, e vice-versa. Não por acaso, os outros dois atos vão trazer os personagens em jornadas separadas.
Também é importante mencionar o quanto a montagem ajuda a construir o mundo disperso e poético que Maria Clara Escobar retrata, principalmente no início do filme. Me recordo de ver Israel perguntando algo a Laura e, antes da resposta dela, o que vemos é um plano da personagem enchendo uma xícara que transborda cada vez mais. Qualquer que seja a resposta verbal à pergunta, o que fica de fato é o simbolismo de alguém cujas inquietações estão vertendo e escapando dos limites em velocidade cada vez mais acelerada. Em outra cenas, vemos a comemoração de uma festa de aniversário se mesclar na mixagem de som a uma notícia de rádio que narra um incêndio provocado por uma mulher. Novamente, o filme encoraja a audiência a prestar atenção em algo (figurativo) que diz mais sobre a real natureza da cena do que as próprias imagens que estamos vendo na diegese.
E, claro, eu não poderia deixar de citar as ótimas cenas que mostram personagens cantando ou recitando poemas. Maria Clara Escobar deixa claro que, muitas vezes, o lirismo de versos lentos e introspectivos diz mais do que a concretude de falas e acontecimentos, principalmente na potente interpretação de Bárbara Colen para “Uma Mulher Limpa”, de Angélica Freitas, que reforça de forma muito sensível a tentativa do filme de falar sobre o feminino e a questões que o atravessam.
“Desterro” é, no final das contas, um mistério. Difícil. Curioso. O filme acerta muito nas tangentes, mas não se sustenta como uma obra coesa, principalmente por sua trama principal o que é um pesar. Mas a direção criativa e corajosa de Maria Clara Escobar torna sem dúvida este um exemplar muito interessante de um cinema urgente, que fala sobre as questões de agora. Podemos até exilá-las de nossa mente, mas elas continuam voltando e nos requerendo uma tomada de posição. ■
Filme Desterro
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DESTERRO (2020, Brasil). Direção: Maria Clara Escobar; Roteiro: Maria Clara Escobar; Produção: Paula Pripas, João Matos, Ivan Eibuszyc; Fotografia: Bruno Risas; Montagem: Patrícia Saramago; Com: Carla Kinzo, Otto Jr., Bárbara Colen, Isabél Zuaa, Georgette Fadel, Grace Passô, Maria José Novais Oliveira; Estúdio: Filmes de Abril, Terratreme Filmes, Frutacine; Distribuição: Embaúba Filmes. 123 min
Filme Desterro
Jornalista formado pela UFMG e crítico de cinema, aproveita qualquer oportunidade para falar sobre sua paixão, a sétima arte. Com passagem pelo Curso Técnico em Química do CEFET-MG, iniciou os estudos de forma bem parecida com o começo do próprio cinema: em um laboratório manipulando substâncias químicas. Por quase dois anos, foi estagiário na RecordTV Minas, tendo uma rotina quase tão louca quanto a dos protagonistas de “Rede de Intrigas”. Participou do 6º Talent Press Rio e integrou a Assessoria de Comunicação da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte.