“Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” é um filme roteirizado e dirigido por Daniel Kwan e Daniel Scheinert, diretores relativamente novos nas telas do cinema, cuja obra mais conhecida, até então, era a comédia “Um Cadáver Para Sobreviver” (Swiss Army Man, 2016). Agora, com esta nova produção da A24, pode-se considerar que a dupla saltou alguns níveis de reconhecimento, batendo o recorde financeiro da produtora.
Na obra, um casamento formado por duas personalidades opostas que se equilibra pelas bordas. Evelyn (Michelle Yeoh), a esposa, precisa por à prova sua competência e retém uma síndrome de incapacidade que é reflexo da falta de aprovação do próprio pai (James Hong) durante toda a vida. No outro extremo, Waymond (Ke Huy Quan), seu marido, sequer consegue a atenção de Evelyn para conversar sobre um pedido de divórcio. Ele vivencia a vida em outros parâmetros. Se para Evelyn as soluções desabrocham no contínuo stress, Waymond exibe uma maneira lúdica e pouco incisiva de lidar com as questões da vida. Para Evelyn o comportamento do marido é tradução de fraqueza, de um adulto que não cresceu, de uma infantilidade ingênua que mais o atrapalha do que ajuda.
Um yin-yang – e desculpe o trocadilho cultural – que se equilibra de forma ruidosa. Dessa relação nasceu Joy (Stephanie Hsu). A filha do casal é, desde o início, apresentada na presença da namorada. Há uma tensão corrente, pois Joy quer convencer a mãe a contar para o avô sobre sua relação lésbica. A garota é o oposto da tradução do seu nome: se em inglês representa prazer, Joy é absolutamente apagada dentro de si e perante os próximos. É nítida a dependência da personagem com relação a seu par romântico; a mãe não tem tempo para ouvi-la e o pai é de uma leveza que não compatibiliza com o intenso desencontro da filha perante o mundo.
Eis a apresentação da família, proprietária de uma lavanderia nos Estados Unidos. Tal condição é responsável por pitadas de humor crítico a respeito da imigração, como as dificuldades com o idioma e a manutenção de uma vida digna perante a burocracia de um estado estrangeiro. O momento em que a família vai à Receita resolver a questão da acusação de “fraude” em seus impostos é um grande turning point para o filme. Nesse momento, Evelyn começa a ter contato com o Waymond Alfa, a personagem que lhe apresenta o multiverso. Waymond Alfa busca a versão perfeita de Evelyn para salvar a humanidade do “mal” Jobu Tupaki e julga tê-la encontrado.
Economizando a descrição do roteiro, desse ponto em diante há uma intensa mudança de tom: do drama cômico adentramos um escorregador sem fim que perpassa aventura e fantasia. Evelyn começa a absorver habilidades que encontra em suas diferentes versões, visitando cada realidade paralela. A ideia de criar uma ficção pautada no multiverso, pressupondo que cada escolha é uma renúncia responsável por alterar completamente os resultados do universo, não é inovadora – vide “De Volta Para o Futuro” (1985) e “Questão de Tempo” (2013), para citar só dois exemplos. Há alguma criatividade, talvez, em mostrar como produtos da ficção podem intermediar saltos no multiverso (o fone de ouvido, a constelação de realidades vigiada por um aparelho similar a um celular).
Aliás, a forma como essas realidades paralelas são criadas, imaginadas e escritas é interessantíssima. Introduz humor com muita originalidade e agrada a quem simpatiza com o nonsense. As ações improváveis utilizadas pelas personagens para pular entre universos são exemplos da escolha deste tipo de comédia. Além disso, a possibilidade de multiversos alcançada é fora da caixa: do humano a, literalmente, o pré-humano. Os roteiristas miraram por segundos na mecânica de “2001: Uma Odisseia no Espaço”, principalmente nas cenas com as pedras, e acertaram na canção de Monty Python, “Always Look on The Bright Side of Life”.
O filme tinha a receita pronta para debruçar no clichê do amor familiar, mas conseguiu contorná-lo. Ele causa emoção verdadeira seguida de risos e de um sentimento de vergonha, afinal, é nítida a intenção do filme de ser mais imersivo pela arte gráfica. Lembrando que as técnicas de efeitos visuais para este filme foram feitas por pessoas amadoras, incluindo os diretores. Todos aprenderam a pós-produção em tutoriais online.
A abordagem filosófica, niilista, do “nada importa” é fulcral para a moral do filme. Mas, ao contrário do que se espera, ele não morre em si. Apresenta-se uma alternativa: ainda que na vida nada importe, existem duas opções: cair no Donut (metáfora da depressão, revolta) ou usar o vazio a favor da gentileza. Por esse último aspecto é possível dar abertura à criatividade desmedida e compreender as escolhas de cada ser humano – as quais, por vezes, podem parecer ilógicas, como a de manter a própria família mesmo diante dos inúmeros problemas.
É muito confortável quando as ideias do “nada” e da nula importância humana no universo são postas no prisma da aceitação positiva: a realidade é essa, mas onde a vida demandar atitudes, que a opção seja a gentileza, dando prioridade aos pequenos momentos de euforia subjetivos, os quais tornam o indiferente importante. A personalidade de cada um definirá a luta e as armas utilizadas para suportar e contornar a vivência do mistério humano. Nada importa, mas, ainda assim, viver demanda escolher entre a perspectiva de googly eyes e da munição de uma arma (ou do Kung Fu). ■
— Confira também o nosso podcast sobre o filme
TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO (Everything Everywhere All at Once, 2022, EUA). Direção: Daniel Kwan, Daniel Scheinert; Roteiro: Daniel Kwan, Daniel Scheinert; Produção: Daniel Kwan, Daniel Scheinert, Jonathan Wang, Anthony Russo, Joe Russo, Mike Larocca; Fotografia: Larkin Seiple; Montagem: Paul Rogers; Música: Son Lux; Com: Michelle Yeoh, Stephanie Hsu, Ke Huy Quan, James Hong, Jamie Lee Curtis; Estúdio: A24; Distribuição: Diamond Films. 139 min
Acadêmica de Direito na Universidade de São Paulo. Cinéfila, fez das salas de exibição sua segunda casa. O cinema é, junto da fotografia, a arte responsável por ensiná-la a olhar o mundo nos seus traços gerais e específicos. Em sua vivência acadêmica busca aperfeiçoar o entrelaçamento das duas áreas do conhecimento.