"Carvão" (2022), de Carolina Markowicz - Foto: Pandora Filmes/Divulgação
"Carvão" (2022), de Carolina Markowicz - Foto: Pandora Filmes/Divulgação

“Carvão”: As cinzas da sociedade brasileira

É o início da tarde do dia 30 de outubro de 2022 quando redijo estas palavras. Em poucas horas, o Brasil saberá o resultado de uma das eleições mais importantes da história do país. Seguramente, a mais importante para o futuro da democracia, a preservação do meio ambiente, a diminuição das desigualdades sociais e o combate ao ódio. Em suma, uma escolha crucial para as próximas gerações. A função da crítica de cinema, para mim, é não apenas oferecer leituras e considerações sobre as obras da sétima arte, mas também promover a reflexão acerca da realidade, através dos filmes. A disputa que se coloca é um embate entre Brasis. De um lado, o país de “Marte Um”, de Gabriel Martins. Do outro, aquele levado às telas por Carolina Markowicz em “Carvão”.

Este não é um texto sobre “Marte Um“. Mas basta dizer que o longa da produtora mineira Filmes de Plástico pensa um Brasil de afeto. Um país que, apesar das dificuldades, sonha, aprende, perdoa e tem esperança. É extremamente curioso e sintomático que ambos os filmes tenham estreado no mesmo ano, e ambos se refiram a um mesmo Brasil.

Na contramão do filme mineiro, “Carvão” é um retrato ácido de um país onde impera a naturalização do absurdo, como brilhantemente define a sinopse da obra. Sua primeira sessão mundial aconteceu no Festival Internacional de Toronto, no Canadá, e depois o filme foi exibido no Festival de Cinema de San Sebastián, na Espanha. Meu primeiro contato com a obra aconteceu no Festival do Rio deste ano, quando o filme fez parte da Mostra Competitiva de Longas de Ficção da Première Brasil e Carolina Markowicz ganhou o prêmio de roteiro. Dentre todos os filmes a que assisti no Rio de Janeiro, “Carvão” sem dúvida foi um dos mais interessantes, pela provocação que apresenta ao público em um momento tão dramático da história política brasileira.



Primeiro longa da premiada diretora de curtas, o enredo narra a história de uma família que mora em uma cidade do interior e cujo sustento vem de uma pequena carvoaria no quintal de casa. Irene (Maeve Jinkings) e o marido Jairo (Rômulo Braga) vivem com o filho pequeno, Jean (Jean Costa), e o avô materno da criança, que está acamado, não fala, e nem ouve. Tudo muda quando o casal aceita a oferta de hospedar em sua casa, em troca de uma boa quantidade de dinheiro e da eliminação do idoso que compõe a família, um estrangeiro misterioso (César Bordón). A chegada do homem argentino transforma profundamente a dinâmica de vida da família de Irene. É neste contexto que vêm à tona tudo aquilo de mais secreto que é guardado pelas pessoas daquela comunidade.

Esta entrada no subterrâneo recôndito de um Brasil obscuro já fica clara no plano inicial do filme. A partir de um travelling para frente, mergulhamos, por entre as grades de um portão, no universo daqueles personagens. Markowicz deixa clara uma extrema coragem. Afinal, representar uma família pobre do interior com a crueza que a diretora traz é pisar em um terreno muito pedregoso. Uma colega da crítica que muito admiro não gostou do filme justamente por isso, pois, segundo ela, a obra brutaliza personagens já em vulnerabilidade social e econômica. Entendo o raciocínio, mas julgo que, olhando de outro modo, esse pode ser justamente o ativo do longa.

Percebam, a roteirista e diretora tem o cuidado de demonstrar que a perversidade que toma conta daquele lugar não é, em absoluto, intrínseca aos personagens e/ou à sua classe social. Muito pelo contrário, aliás. A corrupção vem de fora, na figura da funcionária do posto de saúde (Aline Marta) que faz a proposta desconcertante aos protagonistas. Ao mesmo tempo, os personagens são suficientemente bem construídos, de modo que não parecem apenas caricaturas maniqueístas. É o caso de Irene, que é apresentada como uma mulher frustrada com o caminho que sua vida tomou, tanto em termos de relações amorosas e da família que ela tem, quanto no que se refere à situação econômica em que se encontra. Da mesma forma, Jairo também esconde sua verdadeira orientação sexual, e as atitudes que direciona à família e ao hóspede parecem vir, sobretudo, da repressão que o homem impõe a si próprio. Frustrações e repressões que estão todo o tempo em disputa.

O que o filme traz é, então, uma incursão pelo Brasil que alguns de nós se recusam a crer que existe, tal o nível de descolamento com os pressupostos mais básicos da vida em sociedade. Após séculos de escravidão, décadas de supressão de liberdades e torturas na ditadura civil-militar e uma total ausência de memória e responsabilização sobre esses e outros traumas sociais que marcam a história do Brasil, não é nenhuma surpresa que o ódio, a violência e o cinismo estejam presentes nos meandros da sociedade em que vivemos. É incômodo, mas também necessário constatar isso, pois implica admitir que muitas pessoas não deixam de ter agência quando aderem à estupidez. Um país não passa incólume por anos de injustiças brutais.

Carvão (2022), de Carolina Markowicz - Foto: Pandora Filmes/Divulgação
Carvão (2022), de Carolina Markowicz – Foto: Pandora Filmes/Divulgação

Volto aqui com a palavra corrupção. Tão em voga nos últimos anos para se referir meramente a crimes financeiros, é fundamental que nos lembremos do sentido original do termo: a de deterioração das relações e valores humanos. Tudo começa pela própria família protagonista do longa, cujo relacionamento parece não envolver mais nenhum traço de amor e empatia. Mas “Carvão” eleva esta corrupção ao paroxismo, quando demonstra que parte da sociedade brasileira, conscientemente ou não, aderiu a lógicas reacionárias e por vezes fascistas de vida em sociedade. Não à toa, aqueles considerados empecilhos para a família de Irene são submetidos ao forno da carvoaria, em uma alusão inequívoca e assustadora à solução final empreendida pelo regime nazista ao longo da Segunda Guerra Mundial. O filme parece dizer, e com razão, que vivemos em um país cujo propósito é queimar e reduzir a cinzas qualquer elemento de instabilidade dentro da engrenagem de manutenção das injustiças e desigualdades sociais.

E este talvez seja o maior acerto do filme. Isto é, mostrar que, embora o autoritarismo se estruture em torno da violência capitaneada pelo Estado, é preciso que exista toda uma base social que legitime a escalada de absurdos. Mesmo se passando em 2017, antes, portanto, do governo Bolsonaro, é impossível não associar a obra ao bolsonarismo. Não existiria Jair Bolsonaro sem que existissem Irenes e Jairos.

Mas a obra não se detém apenas na decomposição do núcleo familiar. Acho profundamente simbólica uma relação estabelecida pela montagem, ainda no início do longa, com um agente muito maior e especialmente importante na correlação de forças atualmente posta. Irene está na igreja e, após uma conversa com o padre, menciona que a família vai conseguir contribuir mais com a instituição, ao que o religioso responde, de forma receptiva, que a igreja está, de fato, precisando de mais recursos. Até aí, a cena é gravada em plano médio dos dois. Mas, tão logo o padre ressalta a suposta necessidade de dinheiro, um corte leva a uma plano geral mostrando um templo enorme e bem decorado. Através da sucessão de planos e da contraposição entre discurso e realidade, a diretora mostra que a Igreja não raro cumpre um papel de tirar o pouco que aquelas pessoas têm, alimentando um círculo vicioso que as impele a buscar qualquer outra forma, ética ou não, de sobreviver.

Ao mesmo tempo, esta mesma cena demonstra como a religião pode ser usada como uma espécie de álibi para as maiores atrocidades. Irene joga o próprio pai dentro de um forno, mas antes disso procura no padre um salvo-conduto para a própria atitude, como se a palavra da autoridade religiosa a eximisse de qualquer juízo crítico sobre o que pretende fazer e a livrasse da culpa de estar cometendo um assassinato essencialmente por dinheiro, e não pensando em primeiro lugar no bem-estar e descanso do pai, como ela tenta fazer parecer.

Carvão (2022), de Carolina Markowicz - Foto: Pandora Filmes/Divulgação
Carvão (2022), de Carolina Markowicz – Foto: Pandora Filmes/Divulgação

A comunidade de “Carvão” é como tantas outras espalhadas pelo Brasil. Contravenções e crimes de família, consumo de drogas, traições e formas de existência que contrariam a norma do trabalho (o pai acamado de Irene) e são consideradas inadmissíveis (a homossexualidade de Jairo) são colocados em um mesmo pacote. E a vida segue, sem que ninguém fale abertamente sobre coisa alguma, e como se absolutamente nada estivesse acontecendo. Por isso a cena final do filme é tão emblemática. A amiga de Irene, Luciana (a sempre ótima Camila Márdila), repreende Jean quando ele faz menção de olhar pela janela do quarto onde sua mãe idosa e também acamada está. A mensagem é absolutamente clara. A corrupção já contaminou mais uma família naquela região, e provavelmente a mãe de Luciana teve o mesmo destino cruel reservado ao pai de Irene, em troca de alguma soma de dinheiro. O filme termina efetivamente logo depois, com o filho da protagonista brincando com uma arma de fogo e fingindo atirar no amigo. Uma imagem que não é nova no cinema brasileiro, mas que ganha contornos muito mais assustadores no momento presente do país.

Porém, a menção ao filho de Irene não pode passar em branco. Este personagem é talvez a maior falha do filme. Além de ser excessivamente antipático e caricatural, a habilidade de atuação do intérprete mirim se aproxima da nulidade, e algumas cenas são simplesmente constrangedoras, tamanho a falta de carisma e talento do ator, além do sotaque exageradamente carregado e da má dicção, que tornam algumas frases totalmente incompreensíveis.

Apesar disso, “Carvão” termina sendo um ótimo filme sobre a encruzilhada política na qual o Brasil se encontra. Como prosseguir enquanto uma parte considerável do país que tanto amamos abraça a barbárie? O que fazer depois da constatação de que, para mais da metade do eleitorado, tudo que passamos nestes quatro anos não teve ressonância alguma? Fechar os olhos, como se fez por tanto tempo, e acreditar no mito do “brasileiro cordial” é a melhor solução? Temos um longo caminho pela frente para reconstruir os laços de fraternidade, empatia e afeto entre os cidadãos brasileiros, e recuperar o humanismo que deve ser o norte de um país grandioso como o Brasil.

Fato é que agora, no início da tarde do dia 31 de outubro de 2022, minhas considerações finais coincidem com o momento em que a decisão já está tomada. Felizmente, o país de “Marte Um” triunfou. Por outro lado, é sobre as cinzas muito bem representadas em “Carvão” que a nação precisará se reerguer. Mas, se o país seguir a trajetória de seu novo estadista, este percurso de fênix não será surpresa alguma. 

Nota:

Carvão (2022), de Carolina Markowicz - Foto: Pandora Filmes/Divulgação
Carvão (2022), de Carolina Markowicz – Foto: Pandora Filmes/Divulgação

CARVÃO (2022, Brasil). Direção: Carolina Markowicz; Roteiro: Carolina Markowicz; Produção: Zita Carvalhosa; Fotografia: Pepe Mendes; Montagem: Lautaro Colace; Música: Filipe Derado, Alejandro Kauderer; Com: Maeve Jinkings, César Bordón, Jean Costa, Camila Márdila, Romulo Braga, Pedro Wagner, Aline Marta; Estúdio: Cinematográfica Superfilmes, Biônica Filmes, Ajimolido Filmes; Distribuição: Pandora Filmes; Duração: 1 h 47 min.

filme carvão

filme carvão

filme carvão

filme carvão