"The Eternal Daughter" (2022), de Joanna Hogg - Foto: A24/Divulgação
Foto: A24/Divulgação

“The Eternal Daughter”: Retrato da artista enquanto filha

“The Eternal Daughter” é uma continuação direta da narrativa autobiográfica que a diretora britânica Joanna Hogg estabeleceu nos excelentes “The Souvenir” e “The Souvenir: Part II”. É importante dizer isso não só porque assistir a este longa sem ter visto os outros dois é perder muito de suas nuances – especialmente da relação entre mãe e filha já estabelecida nas produções anteriores. Mas porque, juntos, os três filmes constituem provavelmente a melhor trilogia sobre o processo criativo já realizada no cinema.

A trama é muito simples e acompanha uma viagem da cineasta Julie Hart (Tilda Swinton) com sua mãe Rosalind (Swinton, mais uma vez), em que as duas se hospedam em um hotel no campo, onde a matriarca havia vivido anos atrás, quando criança. Além da pior recepcionista da história do cinema (Carly-Sophia Davies, maravilhosamente escrota) e o faz-tudo Bill (Joseph Mydell), não parece haver mais ninguém ali. E resta a Julie tentar escrever seu próximo longa e passear com seu cachorro, Louis; e a Rosalind ocupar-se com suas pílulas – em meio à onipresença da neblina e dos acordes sinistros da trilha de Ciara Elwis e Maggie Rodford.

Esses dois últimos elementos dão a “The Eternal Daughter” um ar de filme de terror, no estilo casa abandonada. E o longa é, sim, uma história de assombrações – desde os barulhos estranhos que impedem Julie de dormir à noite, as aparições etéreas que ela parece ver nas janelas, até os fantasmas do passado de Rosalind que ainda habitam no local, e que sua filha pretende trazer à tona para usar como matéria-prima de seu novo roteiro.



Porque, sim, os anos se passaram, mas Julie continua absolutamente egocêntrica, neurótica e autocentrada na sua arte e em seu processo de criação. E a essa altura, Rosalind já sabe que tudo que ela disser ou revelar ali poderá ser usado contra ela num futuro filme da filha. Metalinguisticamente, esse roubo da vida real praticado pela protagonista (típico de qualquer grande artista) se manifesta no design de produção de Stéphane Collonge e na direção de arte de Byron Broadbent, desde a caixinha de pílulas da matriarca até o papel de parede dos quartos, revelando uma riqueza de detalhes de memórias potencialmente vividas por Hogg.

É nessa tensão entre o afeto verdadeiro entre mãe e filha e as artimanhas de Julie para extrair de Rosalind e daquele hotel um próximo filme que se encontra a razão para a escalação de Swinton nos dois papéis. Mais do que uma estratégia de marketing ou publicidade, ou mera economia orçamentária, o que essa escolha revela é como, ao escrever sobre alguém (seja pai, mãe, amante ou desconhecido), estamos sempre escrevendo sobre nós mesmos – e nossa relação com essa pessoa.

"The Eternal Daughter" (2022), de Joanna Hogg - Foto: A24/Divulgação
“The Eternal Daughter” (2022), de Joanna Hogg – Foto: A24/Divulgação

E é claro que Swinton, essa mulher que carrega cinema em cada gesto de seu corpo e em cada expressão de seu rosto, é o grande trunfo do filme. A atriz não só constrói duas personagens absolutamente distintas e independentes, reproduzindo com perfeição os maneirismos e a trepidação neurótica e passiva-agressiva com que (sua filha) Honor Swinton Byrne construiu Julie nos dois longas anteriores, assim como a elegância britânica e afetuosa de Rosalind, mas é capaz de tornar a mera ação de passear com Louis (seu cachorro na vida real, diga-se de passagem) uma cena fascinante.

Momentos como esses passeios com o cão, o jantar entre mãe e filha, as preparações para a cama e a noite de sono são recorrentes, dando à produção um caráter intencionalmente repetitivo, como ensaios e tentativas de Julie de conseguir encenar esse momento que vá lhe render um filme. Nessa estrutura reside a chave para decodificar a revelação final do longa, que ressignifica todos os elementos sonoros e visuais de “The Eternal Daughter” e faz do filme – assim como “The Souvenir” e sua continuação – mais um retrato fascinante dos aspectos perversos, levemente insanos e perturbadores do processo criativo. Uma viagem aos recônditos mais secretos e pungentes da vida interior de um artista. ■

O crítico viajou a convite do 19º Sevilla European Film Festival.

Nota:

THE ETERNAL DAUGHTER (2022, Reino Unido, EUA). Direção: Joanna Hogg; Roteiro: Joanna Hogg; Produção: Joanna Hogg, Ed Guiney, Andrew Lowe, Emma Norton; Fotografia: Ed Rutherford; Montagem: Helle le Fevre; Com: Tilda Swinton, Joseph Mydell, Carly-Sophia Davies, Alfie Sankey-Green; Estúdio: Element Pictures, A24, BBC Film; Distribuição: A24; Duração: 1 h 36 min.

filme The Eternal Daughter dirigido por Joanna Hogg

filme The Eternal Daughter dirigido por Joanna Hogg

filme The Eternal Daughter dirigido por Joanna Hogg

filme The Eternal Daughter dirigido por Joanna Hogg