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“Tori e Lokita”: Entre a ética e a estética

"Tori e Lokita" (Tori et Lokita, 2022), de Jean-Pierre e Luc Dardenne - Divulgação

"Tori e Lokita" (Tori et Lokita, 2022), de Jean-Pierre e Luc Dardenne - Divulgação

A questão – ou o problema – originária de “Tori e Lokita” é que o pedido de asilo na Bélgica de seus dois protagonistas se assenta sobre uma mentira. Eles afirmam que são irmãos, e sua incapacidade de sustentar essa história, colocando em xeque a permanência de Lokita (Joely Mbundu) no país, é a força-motriz que desencadeará todas as desgraças que enfrentarão durante a 1h30 de filme.

Isso tem algumas implicações – éticas e estéticas. Por um lado, cria uma oposição que estabelece uma tensão igualmente eficiente e problemática no longa: entre Tori (Pablo Schils) e Lokita, dois irmãos falsos e ficcionais que, em certa medida, são maus contadores de história, não têm controle de sua narrativa; e Jean-Pierre e Luc Dardenne, dois irmãos biológicos e reais, absolutamente magistrais na arte de narrar. Por outro, reforça o estereótipo de negros e refugiados na Europa como mentirosos, desonestos e pouco confiáveis, criminosos e sempre ligados a alguma forma de ilegalidade.

Esse cabo de guerra entre o político e o estético vai atormentar o espectador durante toda a projeção de “Tori e Lokita”. Porque o longa é, sim, mais um exemplar do talento e competência com que a dupla de cineastas belgas constrói suas crônicas morais com uma linguagem concisa e inconfundível. Porém, sua narrativa toca em tantas questões problemáticas e espinhosas sem lidar com elas satisfatoriamente que é difícil apreciar o filme apenas por seus méritos artísticos. A querela aqui não é meramente o “lugar de fala”, se os Dardennes têm o direito ou não de narrar essa história – mas as escolhas que eles fazem ao contá-la.

Para sobreviverem enquanto aguardam a decisão sobre a residência de Lokita, os dois protagonistas trabalham como “aviõezinhos”, entregadores de droga, para o cozinheiro Betim (Alban Ukaj). Ou seja, sujeitam-se ao crime, que também é comandado por um imigrante/estrangeiro – Betim fala francês, mas Ukaj é um (bom) ator sérvio, que também esteve no elenco do ótimo “Quo Vadis, Aida?”. Enquanto isso, são aterrorizados pelos traficantes (de gente) que os levaram da Itália à Bélgica e querem receber seu pagamento – que são, ambos, também negros. No meio desse inferno, Lokita ainda sofre ataques de ansiedade e é abusada sexualmente por Betim.

Em suma: a trama é povoada por seres asquerosos e sem escrúpulos, mas nenhum deles é belga. Não há como negar que o filme é um comentário sobre a política de imigração europeia, que deixa dois jovens nessa situação. Só que esse sistema, assim como a entrevistadora que questiona Lokita na cena inicial, sempre permanece fora de campo. Os Dardennes e seu longa nunca ousam olhar para ele diretamente e tratá-lo como o verdadeiro problema ali.

"Tori e Lokita" (Tori et Lokita, 2022), de Jean-Pierre e Luc Dardenne - Divulgação
“Tori e Lokita” (Tori et Lokita, 2022), de Jean-Pierre e Luc Dardenne – Divulgação

Mestres de um subgênero que podemos chamar de “melodrama sociorrealista”, os dois realizadores e seu roteiro estão mais interessados em colocar Tori e Lokita em situações terríveis, de violência física, psicológica e sexual, nas quais eles tomam decisões impensadas que pioram e precarizam cada vez mais sua condição ali – como se autores da própria tragédia. A essa altura de suas carreiras, o talento dos irmãos belgas em extrair o máximo de suspense desses predicamentos é inquestionável, com o plano aparentemente banal de Tori atravessando uma rua com sua bicicleta sendo transformado numa das imagens mais tensas de 2022, capaz de fazer o espectador se agarrar ao braço da poltrona.

O resultado disso, porém, é uma espiral de desgraças, uma série de abjetas indignidades e humilhações a que Tori e, especialmente, Lokita, dois jovens africanos, são submetidos. Uma espiral precisa e sadisticamente orquestrada por dois homens brancos europeus – que se recusam a incluir no quadro a responsabilidade de seus pares naquele cenário – para “entreter” seu público. Some-se a isso um desfecho pouquíssimo satisfatório, com uma cena final calcada em enormes saltos lógicos que deixam uma séries de questões por responder. E “Tori e Lokita” é mais uma crônica social de Jean-Pierre e Luc Dardenne que deve agradar aos fãs da dupla, mas vai deixar um gosto amargo em quem esperar deles um senso maior de responsabilidade e autocrítica que elevem o longa acima de um exercício de estilo repetido. ■

O crítico viajou a convite do 19º Sevilla European Film Festival.

Nota:

TORI E LOKITA (Tori et Lokita, 2022, Bélgica). Direção: Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne; Roteiro: Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne; Produção: Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, Denis Freyd, Delphine Tomson; Fotografia: Benoît Dervaux; Montagem: Marie-Hélène Dozo; Com: Pablo Schils, Joely Mbundu, Alban Ukaj, Tijmen Govaerts, Charlotte De Bruyne; Estúdio: Les Films du Fleuve, Archipel 35, Savage Film; Distribuição: Janus Films (EUA); Duração: 1 h 28 min.

filme Tori e Lokita, dos irmãos Dardenne

filme Tori e Lokita, dos irmãos Dardenne

filme Tori e Lokita, dos irmãos Dardenne

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