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“Yaaba”: Na África-Mãe, o encanto de uma avó

"Yaaba" (1989), de Idrissa Ouédraogo - Divulgação

"Yaaba" (1989), de Idrissa Ouédraogo - Divulgação

É impressionante como “Yaaba” (lançado anteriormente no Brasil com o pavoroso título de “O Amor Silencioso”, que vou solenemente ignorar) consegue estabelecer muito bem, em menos de três minutos, toda a situação dramática que será desenvolvida ao longo do filme. A obra de 1989, roteirizada e dirigida pelo burquinense Idrissa Ouédraogo (1954-2018), e que reúne recursos de Burkina Faso, Suíça, França e Alemanha Ocidental, começa com duas crianças correndo em uma paisagem árida em direção ao horizonte. Fade-out. 

Aparecem os créditos, em meio a uma animada música instrumental. Logo depois, voltamos à aridez de algum lugar em (supõe-se) Burkina Faso. Porém, agora vemos um ambiente mais arborizado, e descobrimos, pelo diálogo, que trata-se de um cemitério. Uma das crianças que havíamos visto joga água no túmulo da mãe. O colega a ajuda. Ao mesmo tempo, vemos, no plano de fundo do quadro, uma figura chegando. Em um  certo momento, corte para ela, e percebemos que trata-se de uma senhora bastante idosa. A menina que aguava o túmulo da mãe percebe a presença da mulher, e pergunta ao colega se a senhora é, de fato, uma bruxa. O menino responde que não sabe, mas que isso é o que todos os moradores dizem na aldeia mossi onde os personagens vivem. Eles saem.

Apenas por este início, já fica claro o que o filme, indicado e premiado em vários festivais de cinema importantes ao redor do mundo ‒ como o de Cannes ‒, está propondo ao espectador. A história gira em torno da amizade entre duas crianças (os primos Bila e Nopoko), atravessada por uma personagem que todos os moradores de uma comunidade rural consideram uma feiticeira, e que é, portanto, uma espécie de pária (a “avó” que deriva da tradução do título original em língua moré, também o idioma do filme).

Formalmente, o começo do longa também indica qual abordagem Ouédraogo trará em sua obra. Em primeiro lugar, abundância de planos gerais e composições que tornam os personagens figuras pequenas no ambiente desértico e destituído de qualquer referência temporal. Trata-se, pois, de uma história em que os habitantes do lugar serão constantemente confrontados com a aspereza dos elementos e eventos naturais da vida. É o fogo que destrói a casa na aldeia logo no início do filme, é a quase-morte de Nopoko (Roukietou Barry), e também os acontecimentos do passado da velha senhora. Isso sem falar nas dificuldades diárias e concretas de se cruzar longas distâncias sob o sol escaldante para, por exemplo, buscar água em jarros de barro. Mais do que apenas belas paisagens, o ambiente em Yaaba é onde os personagens explicitamente encontram o mundo, em toda a sua vivacidade e dureza. E, ao mesmo tempo, o filme investe também em um uso constante da profundidade de campo, de modo a ressaltar as distâncias entre os personagens e tornar mais sensível sua aproximação no decorrer da narrativa. Esta espécie de montagem interna no plano também permite ao diretor se deter mais sobre cada momento, o que impacta na sucessão dos cortes e, por consequência, no ritmo calmo do filme.

Neste primeiro aspecto, da ambientação, a obra se aproxima bastante do fabuloso “A Luz” (Yeelen, 1987), dirigido pelo malinês Souleymane Cissé. Ambos os filmes constroem imagens simples e, ao mesmo tempo, belíssimas das paisagens africanas. Ao contrário de uma tragédia shakespeariana antropomorfizada que se passa em território africano, como em “O Rei Leão” (The Lion King, 1994), de Roger Allers e Rob Minkoff, ou uma história de amor arrebatadora no norte da África em meio à Segunda Guerra Mundial, como em “Casablanca” (1942), de Michael Curtiz, os dois filmes africanos deixam o exotismo de lado e retratam seus respectivos ambientes como locais tão grandiosos quanto singelos. “Yaaba”, em especial, investe em uma aparente trivialidade que vai totalmente de encontro à representação que costuma ser feita dos povos africanos e seus territórios. Afinal, aqui não há grandes acontecimentos, mas há, por certo, grandeza nos mais pequenos momentos, como quando, por exemplo, o garoto Bila (Noufou Ouédraogo, em uma das melhores atuações de intérpretes-mirins que já vi, ao longo de todo o filme) constata junto a Sana (Fatimata Sanga) que ela não tem mais casa, após a cabana da anciã ser queimada, em uma cena profundamente tocante na qual os personagens são emoldurados por vários galhos de um arvoredo, ressaltando sua proximidade em um mundo à parte da vila.

"Yaaba" (1989), de Idrissa Ouédraogo - Divulgação
“Yaaba” (1989), de Idrissa Ouédraogo – Divulgação

Ecoando temática e esteticamente o realizador indiano Satyajit Ray (1921-1992) em seu poderoso longa de estreia, “A Canção da Estrada” (Pather Panchali, 1955), Ouédraogo constrói o enredo de Yaaba a partir da amizade que vai se criando entre Bila e Sana (Fatimata Sanga). A professora e pesquisadora Lúcia Nagib esclarece bem esta proximidade entre os filmes, e também outros aspectos importantes do uso do espaço e da condução das ações dos personagens, em seu ótimo artigo “Yaaba, cinefilia e realismo sem fronteiras“, versão em português de um excerto de seu livro, “World Cinema and the Ethics of Realism“. 

Entretanto, importa aqui citar como Ouédraogo subverte o trabalho de Ray, amenizando o final trágico que o diretor indiano havia estabelecido. E, aqui, é fundamental ressaltar o papel central que as mulheres exercem no filme burquinense. As personagens femininas que ganham mais destaque em “Yaaba” não apenas têm agência frente às situações, mas, mais importante ainda, na maior parte do tempo se valem deste protagonismo para interceder em favor de si mesmas e/ou de outras mulheres. É o caso de Sana, que, em uma passagem lindamente filmada, cruza um longo caminho a pé e atravessa um rio para encontrar o homem que pode ajudar a curar Nopoko quando a garota adoece. É também o que percebemos em relação à mãe de Bila, que, contrariando a decisão do marido e dos outros homens da aldeia, pede ao filho que volte com o ancião capaz de medicar a menina acamada. E é, ainda, o caso de Koudi (Assita Ouédraogo), uma moradora da vila que, em paralelo à ação principal, mantém um relacionamento secreto com o ex-companheiro e, ao final, abandona o marido alcoólatra e sexualmente impotente em busca de uma vida plenamente realizada, ao lado do homem que de fato ama.

Aliás, a impotência aqui não é só deste homem em particular, mas (simbolicamente) de quase todo o elenco masculino, à exceção de Bila e do herbalista Taryam, chamado por Sana. Em um contexto marcado pelo tradicionalismo, Idrissa Ouédraogo faz das mulheres os principais fios condutores da ação e elementos de contestação aos equívocos masculinos. Quando o pai de Bila castiga o garoto, é a mãe do menino que chama a atenção do marido pelo excesso de rigor. No momento em que Bila julga a esposa adúltera, é Sana quem lembra ao garoto que a mulher deve ter suas razões. E, fundamentalmente, quando um grupo de meninos da aldeia tenta machucar o protagonista, é Nopoko quem o defende e, por isso, é ferida com a faca que quase causará sua morte. O próprio título do filme dá destaque à figura de Sana, que é excluída daquela sociedade mas, paradoxalmente, é responsabilizada por todos os infortúnios que ali ocorrem, até ser, por fim, a mulher que empreendeu uma longa peregrinação altruísta em busca da cura para uma criança do vilarejo, salvando-a da morte.

Certamente, é válido argumentar que a amizade entre Bila e Sana não é construída com a devida paciência e progressão dramática, parecendo muito apressada no início, e alguns podem classificar o final do filme como excessivamente óbvio. No entanto, não se pode negar que a obra é encantadora por sua beleza plástica e temática, e por retratar um povo africano de forma humana e afetuosa, mas sem deixar de lado as complexidades inerentes a qualquer sociedade. Não poderia terminar, então, sem citar o próprio realizador: “’Yaaba’ é primeiro de tudo a história de uma amizade que começa e cresce entre dois membros de uma sociedade rural, na qual nós vemos o homem como ele é: bom, mau, generoso, intolerante”. ■

Nota:

YAABA (1989, Burkina Faso, Suíça, França, Alemanha). Direção: Idrissa Ouédraogo; Roteiro: Idrissa Ouédraogo; Produção: Idrissa Ouédraogo, Michel David; Fotografia: Matthias Kälin; Montagem: Loredana Cristelli; Música: Francis Bebey; Com: Fatimata Sanga, Noufou Ouédraogo, Roukietou Barry, Adama Ouédraogo; Estúdio: AZ Celtic Films, BBC Film; Distribuição: Filmicca; Duração: 1 h 42 min.

filme Yaaba dirigido por Idrissa Ouédraogo

filme Yaaba dirigido por Idrissa Ouédraogo

filme Yaaba dirigido por Idrissa Ouédraogo

filme Yaaba dirigido por Idrissa Ouédraogo

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