Nunca havia assistido a “Jeanne Dielman” (1975), coprodução franco-belga dirigida pela cineasta Chantal Akerman. Imagino que muitos dos leitores e leitoras que acompanham esta crítica também nunca tenham, ou, pelo menos, nunca tinham visto o longa-metragem até um passado recente. Fato é que sendo escolhido como o maior filme de todos os tempos pela prestigiada Revista Sight & Sound, do British Film Institute (ocupando o topo de uma lista com outros 99 títulos), a obra com certeza se tornará mais conhecida e, espero eu, mais vista.
Em que pese o absurdo de hierarquizar filmes tão diferentes quanto maravilhosos, a colocação de “Jeanne Dielman” no primeiro lugar da lista britânica desbanca obras canônicas da sétima arte. Ao longo dos 70 anos de existência desta seleção, realizada a cada 10 anos desde 1952, ocuparam a posição: o neorrealista “Ladrões de Bicicleta” (1948), de Vittorio De Sica, o marco clássico e moderno “Cidadão Kane” (1941), de Orson Welles, e o perturbador estudo sobre voyeurismo “Um Corpo que Cai” (1958), de Alfred Hitchcock. Pela primeira vez um filme dirigido por uma mulher é alçado ao posto de maior obra cinematográfica da história.
Mas é possível dizer que “Jeanne Dielman” condensa, de forma imensamente mais radical e realista, alguns dos aspectos que a lista prestigiou ao longo de suas sete décadas. O filme de Akerman carrega consigo a urgência do filme de De Sica, a natureza disruptiva e divisora de águas da obra de Welles, e a confluência entre discurso fílmico e linguagem cinematográfica do longa de Hitchcock. Tudo isso em extensão muito maior, literalmente.
Porém, ao invés de “Um Corpo que Cai”, talvez seja mais interessante olhar “Jeanne Dielman” à luz de outra obra-prima do Mestre do Suspense: “Festim Diabólico” (1948). Ambos os filmes não poderiam ser mais elucidativos acerca dos diversos caminhos radicais que um realizador ou realizadora pode escolher para narrar sua história. Se em seu primeiro filme colorido o diretor inglês resolveu construir uma obra praticamente sem cortes, e, por isso, teve de recorrer a uma montagem interna baseada nos movimentos de câmera, Akerman vai pelo caminho oposto: em seu filme, não há um movimento de câmera sequer, e toda a trajetória da personagem-título é contada a partir de uma profusão de cortes que narram, paulatinamente, seu cotidiano estafante.
Jeanne Dielman (Delphine Seyrig) é uma viúva na casa dos quarenta anos e passa os dias executando as repetitivas e maçantes tarefas domésticas. Com a mesma frequência diária que limpa a casa e prepara a comida para o filho adolescente, Sylvain (Jan Decorte), a dona-de-casa recebe clientes para encontros sexuais que sustentam a vida burguesa dela e do jovem. Entretanto, um acontecimento aparentemente pequeno começa a desencadear uma série de instabilidades na vida de Jeanne, até o final implacável que acompanhamos nos últimos dois planos do filme.
Caso os leitores e leitoras ainda não saibam, é preciso tirar o elefante da sala e dizer que “Jeanne Dielman” tem quase três horas e meia de duração. Algumas pessoas poderiam argumentar, e essa era minha perspectiva há pouco tempo, que o filme não precisaria ser tão longo, pois passada 1 hora de “Jeanne Dielman” eu já havia, supostamente, entendido e sentido a proposta da cineasta ao distender tanto a obra. Não a duração no geral ou a lentidão, meu pequeno “incômodo” com o filme a princípio era que alguns planos pareciam demorar para além de uma dilatação já muito grande. Havia ficado com a impressão de que estava esquentando uma água e já tinha chegado aos 100 °C, mas o fogo continuava aceso, e a água não tinha mais como esquentar; apenas evaporava e se dispersava.
No entanto – e essa é a parte incrível da crítica de cinema e do debate sobre filmes – uma provocação da Kel Gomes, aqui do Cinematório, me ajudou a pensar que isso não é um “defeito”, mas sim uma grande qualidade do filme, qual seja, fazer com que o público sinta essa inclemência de achar que já é suficiente mas ter que continuar. Por exemplo, o plano no qual Jeanne faz um bolo de carne: certamente não há tanto a ser tirado desta ação, em termos dramáticos, mas o plano continua, e continua, e continua, e chega um ponto em que comecei a sentir uma profunda inércia. Este plano certamente poderia ser menor, com efeito similar. Porém, se fizesse isso, a montadora Patricia Canino e a diretora estariam nos poupando de ver e sentir a vida da protagonista em sua completude. Jeanne seguramente está cansada daquela vida, mas ela se vê forçada a seguir, assim como nós também o somos, quase que em solidariedade a ela.
“Jeanne Dielman” é, portanto, uma obra-prima em todos os sentidos que o termo pode compreender. Poucas vezes assisti a um filme no qual o (irretocável) rigor formal estivesse tão em sintonia com a proposição temática do trabalho. Jeanne é uma mulher completamente acossada, despersonalizada e envolvida pela rotina esmagadora que o capitalismo e o patriarcalismo impõem às mulheres. E a perfeita plasticidade com a qual Chantal Akerman e sua equipe majoritariamente feminina expressam essa ideia tornaria a célebre simetria de Stanley Kubrick em “O Iluminado” (1980) uma desordem sem fim.
Todo o filme é apresentado a partir de planos absolutamente estáticos, que acompanham a duração integral das ações mais comezinhas: a limpeza da banheira, a arrumação da cama, o cozimento das batatas, a preparação de um café, a limpeza dos sapatos do filho, e por aí vai. Momentos que jamais entrariam no corte final de filmes como o também crítico “Tudo que o Céu Permite” (1955), de Douglas Sirk, e outros melodramas “de mulheres” das décadas anteriores, mas cuja representação asperamente fidedigna é capaz de ecoar em qualquer um que conhece a dureza do trabalho doméstico. Em “Jeanne Dielman”, a câmera se limita a enquadrar os poucos personagens em planos médios e, em momentos ocasionais, temos planos gerais nas igualmente protocolares saídas de Jeanne para ir ao mercado, ao banco ou ao açougue. Se “Era Uma Vez em Tóquio” (1953), de Yasujiro Ozu, é recorrentemente lembrado por ter um único e sutil movimento de câmera, Chantal Akerman eleva o minimalismo à enésima potência.
O corte, convencionalmente usado para fins de elipse (para cortar “o que não é interessante” ao drama), aqui assume um lugar curioso. Um sem-número de vezes, vemos cortes que apenas dão prosseguimento à ação, quando Jeanne sai de um cômodo e vai para o outro ‒ sempre findando a presença no recinto com o apagar das luzes ‒, executando alguma de suas ações já automatizadas. No entanto, o filme ainda consegue o feito de se construir em torno de uma síntese dramática admirável, já que seguimos, em três horas, três dias. Este talvez seja um dos maiores triunfos da obra, já que Akerman consegue simultaneamente dilatar e compactar o tempo, fazendo-nos sentir, pesadamente, a dureza da vida de uma dona-de-casa. O filme é só isso, assim como a vida de Jeanne.
Mas, certamente, o que mais me impressiona em “Jeanne Dielman” é a construção plástica quase obsessiva da mise en scène que a realizadora mantém, com a ajuda valiosa de sua diretora de fotografia, Babette Mangolte, e de forma bem-sucedida, até o final do tour de force que caracteriza o longa-metragem. Cada frame do filme é cuidadosamente ocupado por diversas linhas retas ou formas geométricas que lembram quadrados ou retângulos e que estão perfeitamente alinhadas ao limite do enquadramento, seja em paralelo ou perpendicularmente. Chantal Akerman incorpora à gramática fílmica, de forma habilidosa, o discurso temático que procura trazer. A vida de Jeanne Dielman e a própria protagonista são tão retos, fechados e imutáveis quanto a composição que a cineasta faz tomar a tela. Jeanne procura tanto alinhar tudo em sua vida que sua obsessão escorre por entre os frames, tornando o filme tão rigorosamente controlado quanto ela própria.
Para além da maestria da diretora, “Jeanne Dielman” funciona muito em função da atuação magistral de Delphine Seyrig. O filme e a personagem estão em perfeita consonância com seu tempo histórico e com o estágio sócio cultural da humanidade nos idos dos anos 1970. O filme tanto pode ser lido à luz da segunda onda feminista, que problematizou o trabalho doméstico, como também se encaixa perfeitamente ao ano de 1975, quando foi declarado pela ONU o Ano Internacional da Mulher, em virtude das diversas mobilizações de mulheres que sacudiam o mundo. Já a personagem, associando-se a outras de sua época, tem algo da impassividade controladora da vilanesca enfermeira Ratched, eternizada por Louise Fletcher em “Um Estranho no Ninho” (1975), de Milos Forman. E, ainda, o desfile de ações domésticas protagonizado por Delphine Seyrig é uma versão (muito) estendida e (bem) mais fria do importante trabalho “Semiotics of the Kitchen” (EUA), dirigido, escrito e estrelado por Martha Rosler, também no ano de 1975.
Seyrig, que os mais atentos reconhecerão de trabalhos como “O Ano Passado em Marienbad” (1961), de Alain Resnais, e de “O Discreto Charme da Burguesia” (1972), de Luis Buñuel, entrega uma performance que corporifica o “problema sem nome” descrito pela ativista e escritora feminista Betty Friedan, no primeiro capítulo de seu livro seminal, “A Mística Feminina”, publicado em 1963. A interpretação inquietantemente física e pautada em micro expressões e singelos movimentos da atriz transparece, ao longo de todo o filme, uma questão mais desconcertante ainda, que Friedan também referencia em sua obra: “É só isto?”. Assim como nós, espectadores e espectadoras, nos perguntamos, o filme o faz através de sua estrutura repetitiva, lânguida e austera. A própria personagem parece guardar esta inquirição silenciosa no fundo de sua mente. Dezoito anos depois, Jane Campion também viria a abordar o silenciamento, por meio da mudez de sua protagonista em “O Piano”(1993). Chantal Akerman e Delphine Seyrig fazem, contudo, um filme em que pequenos gestos (da câmera e da atriz principal) indicam uma potência tal qual ou ainda maior do que a história grandiloquente da diretora neozelandesa.
Alguns dos filmes citados aqui acompanham “Jeanne Dielman” na lista dos 100 maiores filmes da história organizada pela Sight & Sound. Outros não têm esta distinção, mas poderiam facilmente ser considerados para a seleção. É chegada, todavia, a vez de Chantal Akerman, de “Jeanne Dielman” e do cinema feminista. Já não era sem tempo. Finalmente assisti ao filme e espero, sinceramente, que cinéfilos, cinéfilas ou quaisquer pessoas, de todo o mundo, se juntem a mim e descubram esta que é uma obra exemplar, e, seguramente, o cinema em seu mais alto nível.
P.S: Para acompanhar esta (re)descoberta, segue abaixo uma relação de textos escritos por teóricas, pesquisadoras e professoras sobre “Jeanne Dielman” e Chantal Akerman. São sugestões para o aprofundamento nas temáticas e construções audiovisuais presentes no filme e na obra da cineasta como um todo:
“O maior filme de todos os tempos: Jeanne Dielman”, por Laura Mulvey | Revista Sight and Sound
“Jeanne Dielman” e a travessia visual da espectadora, por Roberta Veiga | Catálogo do Forumdoc 2012
“A estética do confinamento em Chantal Akerman”, por Roberta Veiga | Revista Cinética
“O diário como dispositivo e o efeito de eu no cinema: Akernam e Perlov”, por Roberta Veiga e Carla Italiano | Revista Contemporânea
“Notas sobre o tempo (na e a partir da imagem)”, por Joana Pereira | Revista Pós-Limiar
Jeanne Dielman, por Janet Bergstrom | Revista Devires – Dossiê Chantal Akerman
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JEANNE DIELMAN (Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles , 1975, Bélgica, França). Direção: Chantal Akerman; Roteiro: Chantal Akerman; Produção: Corinne Jénart, Evelyne Paul; Fotografia: Babette Mangolte; Montagem: Patricia Canino; Com: Delphine Seyrig, Jan Decorte, Henri Storck, Jacques Doniol-Valcroze, Yves Bical; Estúdio: Paradise Films, Unité Trois; Distribuição: Filmicca; Duração: 3 h 21 min.
filme Jeanne Dielman de Chantal Akerman
filme Jeanne Dielman de Chantal Akerman
filme Jeanne Dielman de Chantal Akerman
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