O documentário talvez seja o terreno que mais dá visibilidade aos recursos da linguagem cinematográfica. Em filmes de ficção, o apelo geralmente está na história. Por mais que uma ficção possa dramatizar acontecimentos reais, existe muito espaço para modificações e para uma construção de enredo que fuja à realidade das situações e personagens. Ou seja, a história contada ocupa um papel principal. Já no documentário, a história já existe. O questionamento central não é o que será contado (já que isto pode ser descoberto a partir de qualquer pesquisa simples), mas como aqueles fatos e pessoas serão apresentados ao público.
E é justamente por este caminho que Spike Lee envereda em “Quatro Meninas ‒ Uma História Real” (4 Little Girls, 1997). O filme, indicado ao Oscar de Melhor Documentário em Longa-Metragem em 1998, relembra um dos piores crimes raciais da história estadunidense, ocorrido em um domingo, 15 de setembro de 1963. Em pleno apogeu dos movimentos por direitos civis, uma bomba colocada por membros da organização racista Ku Klux Klan explodiu em uma igreja da intensamente segregada cidade de Birmingham, Alabama, ferindo várias pessoas e matando quatro meninas negras: Addie Mae Collins, Carole Robertson e Cynthia Wesley, de 14 anos, e Denise McNair, de apenas 11.
Spike Lee constrói um filme de estilo menos ostensivo do que aquele presente em algumas de suas melhores ficções, como “Faça a Coisa Certa” (Do the Right Thing, 1989) ou “Infiltrado na Klan” (BlacKkKlansman, 2018) ‒ provavelmente por conta da gravidade do assunto. Em grande parte, o documentário se vale de numerosas imagens de arquivo e de entrevistas com familiares, parentes, amigos e conhecidos das vítimas, além de líderes políticos e dos movimentos de luta pelos direitos civis e outros personagens notáveis da época, como jornalistas, celebridades e autoridades. O próprio diretor não aparece. Entretanto, isso não quer dizer que o cineasta não seja criativo na forma de narrar a história. O longa começa com uma espécie de prólogo, no qual a câmera passa pelos túmulos das vítimas do atentado, em uma montagem que intercala essas filmagens no presente do filme às imagens de arquivo dos acontecimentos ocorridos décadas antes. Na trilha, a tocante canção “Birmingham Sunday”, na voz inconfundível de Joan Baez. É interessante o aproveitamento que o cineasta faz da música, que toca na íntegra (algo por si só não tão comum) e ajuda a construir um preâmbulo delicado e poético para a história terrível e verídica que virá a seguir.
No entanto, e isto é um grandioso mérito da obra, em momento algum o roteiro, a montagem e a direção permitem que o filme se torne uma peça de exploração apenas da tristeza e do luto. Estes elementos estão presentes, é claro, mas não são o foco da história. Como um dos entrevistados declara em certo ponto, acerca da missa fúnebre celebrada pelo Reverendo Martin Luther King Jr. em memória a três das vítimas, há tristeza, mas não morbidez.
Ao contrário, Spike Lee mostra que a vida das quatro crianças assassinadas não começou no dia do ataque. Elas tiveram uma infância, família, amigos/as, sonhos, talentos, qualidades e defeitos. Ao não restringir quem eram aquelas meninas apenas pelo evento criminoso que as vitimou, o cineasta na verdade está deixando clara toda a trajetória roubada das crianças. Como outro entrevistado fala em dado momento, as quatro poderiam ter estudado, se tornado profissionais brilhantes e figuras fundamentais em suas comunidades. Tudo isso ficou, no entanto, sob os escombros da Igreja Batista da Rua 16, naquela manhã de domingo.
Esta ideia que o filme procura passar já fica bastante evidente no próprio título, que chama a atenção para a pouca idade das vítimas. A infância, aliás, ou a destruição dela, é responsável por um dos momentos mais assustadores da obra, o qual, surpreendentemente, não tem relação direta com a história principal que está sendo contada. Logo no início do filme, Spike Lee introduz uma entrevista com o advogado de defesa do primeiro supremacista a ser preso pelas mortes. Enquanto o entrevistado descreve uma irreal situação de paz social em Birmingham nos anos que precederam o ataque, o diretor insere, por meio da montagem e de modo muito eloquente, inúmeras imagens da violenta segregação racial presente na cidade e no estado do Alabama como um todo.
Uma imagem em especial me chocou. Em uma passeata da Ku Klux Klan, vemos uma menina muito pequena, trajada de forma idêntica aos adultos racistas. É evidente que, em um filme que narra um atentado que matou quatro crianças negras, o sentimento de revolta vem em solidariedade às vidas negras perdidas e às famílias. Mas, devo confessar que também me causou perplexidade a imagem de uma criança iniciada no racismo assassino da KKK. Uma única imagem, que dura alguns poucos segundos, prenuncia toda uma trajetória de culto ao ódio. Aquela criança, tão inocente quanto qualquer outra, estava sendo criada para se tornar a próxima assassina de qualquer pessoa que não fosse branca, anglo-saxã e protestante..
A citação à montagem (crédito também para o montador Sam Pollard) me obriga a discorrer um pouco mais sobre o quão bem utilizado é este recurso, essencialmente fílmico, no documentário de Spike Lee. O cineasta não depende de recursos como narração ou de trechos didaticamente expositivos de entrevista para evidenciar as contradições postas naquele contexto (embora haja reforços verbais necessários em certos momentos). A simples (mas ao mesmo tempo complexa) organização dos planos já cumpre este papel.
Além do já referido momento em que o discurso revisionista da segregação é confrontado com as imagens inegáveis do racismo sulista, um outro instante também é exemplar da extrema habilidade narrativa do diretor, tanto no que diz respeito à montagem, quanto ao próprio uso do enquadramento. Quando o ex-governador segregacionista George Wallace é entrevistado, Spike Lee primeiro o filma mais de perto, inclusive no momento em que ele apresenta um homem negro como seu amigo ‒ tentando justificar seu racismo com esta desculpa já pateticamente desgastada e com outras ainda menos dignas. O diretor então volta para os parentes das vítimas, para que eles expliquem, sob seu ponto de vista, de quem teve a vida indiretamente destruída pelas ações (e omissões) políticas de Wallace, o comportamento do ex-governador. Depois disso, Spike Lee retorna ao exato mesmo plano de George Wallace, mas desta vez o filma em um enquadramento mais aberto. Assim como a câmera de Lee, nós, enquanto espectadores, expandimos nosso campo de visão em relação àquele homem após o depoimento que intermediou as duas filmagens, idênticas em conteúdo.
E com isso chegamos ao enquadramento. Este talvez seja o recurso usado de maneira mais funcional durante todo o filme. Aliás, é espantoso o modo como Spike Lee e a diretora de fotografia Ellen Kuras contam um aspecto absolutamente primordial da história se valendo apenas da delimitação oferecida pelos quadros. Em várias partes do filme, me peguei questionando: por qual motivo os depoimentos (principalmente) dos familiares, parentes, amigos e conhecidos das quatro meninas são gravados a uma distância tão próxima, por vezes chegando a cortar parte da face dos entrevistados? Evidentemente, pode-se argumentar que esta proximidade traz o espectador para mais perto dos rostos e, por consequência, promove um maior envolvimento emocional para com as histórias. Sem dúvida. Mas, me parece muito sintomático que, em um filme sobre a ausência de quatro crianças, os planos deixem pedaços do rosto dos entrevistados para fora. Ou seja, não apenas a partir da história em si ou do que os personagens estão falando, mas a própria forma do filme incorpora de modo concreto a falta das quatro garotas.
Porém, é justamente uma das aparições de Addie, Carole, Cynthia e Denise que traz ao documentário seu momento mais controverso. Spike Lee mostra, em alguns instantes, e se prolongando uma única vez, os corpos das quatro meninas após a explosão das bananas de dinamite. Devo confessar que, a princípio, considerei esta exposição uma atitude bastante questionável, ou no mínimo um excesso por parte do diretor. Entretanto, depois de refletir um pouco, e considerando que obviamente as fotos foram incluídas com a permissão dos familiares das vítimas, cheguei à conclusão de que Spike Lee toma uma decisão ética de extrema importância ao fazer também o público tomar parte daquelas imagens, por dois motivos.
Em primeiro lugar, embora possa parecer suficiente, dizer “simplesmente” que um atentado à bomba matou quatro garotas não dá a dimensão concreta do ocorrido. A não ser que o espectador reflita muito sobre o crime, a imagem que ficará é a das meninas como eram enquanto vivas, de modo que a morte assumirá um caráter abstrato, quase etéreo. Semelhante, por exemplo, àquele de certos filmes ficcionais, quando alguém é baleado e esfaqueado e não vemos sangue ou corte algum. E isso, querendo ou não, atenua o impacto, o que aqui é a última coisa que poderíamos desejar. Cabe destacar que o diretor faz este mesmo movimento em outros trechos do filmes, quando deixa no corte final relatos dos entrevistados sobre aspectos práticos da segregação racial, como estar sedento e não poder beber água em um bebedouro apenas para brancos, ou da luta por direitos civis, como o impacto da água disparada pelas mangueiras dos bombeiros contra os manifestantes. São questões que certamente já ouvimos, mas que sempre ficam em um plano muito especulativo. Entender a dimensão física e psicológica específica destas experiências ajuda a reforçá-las e tornar a narrativa menos genérica e, consequentemente, mais humana.
Segundo ponto: Spike Lee costura muito bem o atentado ao pano de fundo histórico fortemente relacionado a ele, mostrando como a explosão da igreja e a morte das adolescentes foi, ao mesmo tempo, produto de uma sociedade profundamente racista, mas também um trágico catalisador para a expansão da luta pelos direitos civis da população negra estadunidense; por que então deixar que só os pais e parentes das quatro crianças assassinadas tenham de encarar a manifestação mais profunda e sensível do ódio? A morte daquelas meninas é uma questão de todos e, assim como as atrocidades cometidas pelos nazistas, por exemplo, deve ser vista por todos, por mais terríveis que sejam as imagens.
“Quatro Meninas” é um exemplo de como se fazer documentário, com coragem, sensibilidade e exímia competência cinematográfica. Meu único senão ao filme é que Spike Lee por vezes parece se apressar muito para cortar as entrevistas, e com isso o público perde um pouco da oportunidade de acompanhar pausas, olhares, respirações e expressões faciais dos entrevistados, o que poderia tornar ainda mais potentes os depoimentos dados ao cineasta. Entretanto, o filme supera facilmente essa carência em seu valor tanto como documentação histórica quanto como obra artística contundente. Sem perder sua energia habitual, Spike Lee altivamente se dedica a representar um evento profundamente traumático, e imprime delicadeza a uma história de absoluto horror. Um grande filme, que não deixa a memória de quatro pequenas garotas ser esquecida. Infelizmente, naquele domingo, os escombros sepultaram quatro futuros. Eis a arte do cinema, e especialmente do cinema de Spike Lee: tirar a História dos escombros. ■
QUATRO MENINAS (4 Little Girls, 1997, EUA). Direção: Spike Lee; Roteiro: Spike Lee; Produção: Spike Lee, Sam Pollard, Daphne A McWilliams; Fotografia: Ellen Kuras; Montagem:Sam Pollard; Estúdio: 40 Acres, A Mule Filmworks, HBO; Distribuição: HBO; Duração: 1 h 42 min.
filme Quatro Meninas de Spike Lee
filme Quatro Meninas de Spike Lee
filme Quatro Meninas de Spike Lee
filme Quatro Meninas de Spike Lee