A edição 2020 do Festival de Berlim significou o fim de uma época que foi linda, enquanto durou. Dez dias depois, a Alemanha entrava em lockdown. Foi o último grande evento de massa antes do marco civilizatório que se vislumbraria dias depois, chegar e zerar todas as atividades culturais. Tornar um amontoado de gente em perigo de vida.
Na realidade, a mudança programática da Berlinale havia iniciado um ano antes, com a troca de diretores. Saia o espaçoso e extrovertido Dieter Kosslick que, ao longo de muitos anos, com seu inseparável cachecol vermelho, havia se tornado o “Mr. Berlinale”. Em 2020, chegou Carlo Chatrian, durante longos anos, diretor do Festival de Locarno.
Para ser diretor da Berlinale é preciso mais do que capacidade de escolher filmes, mas entender o espírito de uma cidade cheia de viezes, de defeitos, muitas esquinas convulsivas, mas também muito instigante.
Já no último dia da edição 2020, passeando pelos corredores do Mercado Europeu de Filmes (EFM, na sigla), vislumbrei um cartaz abandonado no stand de uma distribuidora, no qual estava escrito: “No Hugs, no Kisses. Don’t take it personally.” Por achar aquela folha de papel inusitada, levei comigo. O que veio depois, foram dois anos sem abraços, sem beijos e com o sorriso escondido pelas máscaras. As duas últimas edições (2021 & 2022) foram sobre efeitos do marco civilizatório, foram adaptações capengas, impostas pelo então Zeitgeist e, exatemente por isso, só merecem o esquecimento.
A expectativa para a Berlinale-Normalidade era imensa, até hoje! Finalmente ter aquelas conversas inadiáveis sobre filmes de milhões, mesmo quando seu orçamento é super espremido. Finalmente encontrar rostos antigos e sempre naquela correria para a próxima sessão e para pegar o melhor lugar na sala onde acontece a coletiva de imprensa para obter o melhor ângulo para tirar fotos dos stars.
A notícia de Kristen Stewart como presidente do júri e que tem como antecessoras de peso como Isabella Rossellini, Meryl Streep, Juliete Binoche, instigou a esperança da Berlinale voltar a ter coragem de correr riscos, tendo como carro-chefe um dos mais jovens talentos de Hollywood. Mas esse DNA ficou pra trás, especialmente depois da chegada de Carlo Chatrian. Juntamente com a holandesa Rissenbeek, a dinâmica é verticalmente outra, da época de Kosslick e da época pré-pandemia.
Chatrian ainda está longe de lacrar sua assinatura na Berlinale. Não se constata mais um denominador comum que atravessa as diferentes mostras.
A Mostra Competitiva já exibia sérios problemas na Era Kosslick e, sob Chatrian, a principal vitrine do festival ainda continua confusa, parecendo um balcão de ofertas aleatórias ou filmes que vão obrigatoriamente ao encontro do Zeitgeist, como a Revolucão no Irã e a Guerra na Ucrânia. Onde ficam, pois, os fatores determinantes para uma obra de cinema? A dinâmica dos fatos atravessa na escolha?
Chatrian é obcecado pelo cinema europeu. Até aí, nada de mais. Entretanto, a diversidade da programação fica devendo em flexibilidade territorial: falta muito do cinema africano, dos povos indígenas, por exemplo.
Coletiva de Imprensa
Numa manhã gélida de segunda-feira, organizadores convidaram jornalistas para a coletiva de imprensa, na qual é anunciada a lista acompleta dos filmes que concorrem aos Ursos. Mesmo na pós-era da pandemia, o evento foi morno, com poucos jornalistas presentes no salão onde acontecem eventos culturais, mas que é um dos mais frios de Berlim.
Uma jornalista indagou porque a Berlinale sempre traz os mesmos diretores. Visivelmente supreendido com o teor da pergunta, o diretor tentou sair pela tangente, mas ficou devendo na resposta.
Uma escolha infeliz, foi a coletiva de imprensa quase 21 dias antes do início do festival. Tudo está muito distante e as pautas da Guerra na Ucrânia dominam todos os veículos de comunicação. Para não parecer supérfulo ou superficial, a CEO e o diretor ratificaram o foco político em filmes e cineastas da Ucrânia e do Irã.
O DNA da Berlinale é o cunho político. O festival foi criado durante a Guerra Fria por Alfred Bauer, com o intuito de transformar a cidade isolada numa janela para o mundo através dos filmes. Décadas depois, foi descoberto que ele era “um nazista convicto” e o prêmio, que tinha seu nome e era entregue para condecorar “novas linguagens cinematográficas”, deixou de existir.
Como podemos ver, a Berlinale procura a sua identidade desde o início da sua história. Hoje, com a Europa em guerra e o mundo em polvorosa, Berlim precisa justificar seu DNA folheando o programa com uma dimensão política ainda maior do que nos anos anteriores.
Para 24 de fevereiro, dia em que completa um ano do ataque da Rússia na Ucrânia, o festival fará evento assim como durante todo o percurso que dura 10 dias. Os detalhes serão divulgados a partir do dia 7, explicou a CEO, Mariette Rissenbeek.
Os filmes de cunho especialmente políticos sobre a Ucrânia e o Irã, e de acordo com o Zeitgeist estão espalhados por diversas Mostras:
Encounters:
“Eastern Front” | Direção: Vitaly Mansky & Yevehen Titarenko (Lituania/República Checa/Ucrânia/EUA)
Berlinale Special:
“Superpower” | Direção: Sean Penn & Aaron Kaufmann (EUA)
Berlinale Shorts:
“It’s a date” | Direção: Nadia Parfan (Ucrânia )
Panorama:
“Iron Butterflies” | Direção: Roman Liubyi (Ucrânia-Suécia)
“Ty mene lybysh?” (Do you love me?) | Direção: Tonia Noyabrova (Ucrânia-Suécia)
Forum:
“In Ukraine” | Direção: Tomasz Wolski (Polônia)
Generation:
“We Will Not Fade Away” | Direção: Alisa Kovalenko (Ucrânia-Polônia-Frana)
“Waking up in Silence” | Direção: Mila Zhluktenko, Daniel Asadi Faezi
Filmes brasileiros em escassez
A edição de 2020, a super querida jornalista Flávia Guerra apelidou o festival de “BRAsinale”, devido à vasta presença de filmes brasileiros. Na época, o estragulamento do setor cultural como um todo, mas especificamente no Setor de Artes Visuais, ainda não reverberava na lista de filmes brasileiros.
Em 2023, o Ministério da Cultura foi reestabelecido, orçamentos para projetos e os editais estão sendo publicados, e em dois ou três anos o efeito será o contrário, e o cinema brasileiro irá voltar a ter o lugar que já teve e que merece, voltando a brilhar com sua diversidade: de norte a sul.
As poucas exceções são:
Panorama:
“Propriedade” | Direção: Daniel Bandeira
Forum:
“O Estranho” | Direção: Flora Dias, Juruna Mallon
Forum Special:
“A Rainha Diaba” (1973) | Direção: Antonio Carlos da Fontoura
Forum Expanded:
“A Árvore” | Direção: Ana Vaz (Co-produção Brasil e Espanha)
Berlinale Shorts:
“Miçangas” | Direção: Emanuel Lavor e Rafaela Camelo
Generation 14plus
“Infantaria” | Direção: Laís Santos Araújo
Uma presença inusitada do cinema brasileiro é onde se menos esperava: na mostra “Perspectiva do Cinema Alemão” (PDK, na sigla), há o média-metragem “Ash Wednesday” (ou “Quarta-Feira de Cinzas”, na tradução literal), um musical produzido em Berlim e financiado com verbas alemãs, mas dirigido por Bárbara Santos e João Pedro Prado e todo falado em português. Seria isso um despreendimento de uma arraigada percepção que somente filmes em língua alemã representam o cinema do país ou simplesmente uma decorrência da origem do financiamento do filme?
Bárbara, radicada há muitos anos em Berlim, atuou no filme “A Vida Invisível,” de Karim Aïnouz, que, desde 2004, escolheu Berlim para viver.
Musicalidade
Uma tradição vem se mantendo nos últimos anos e nem mesmo o terremoto civilizatório parece desmontá-la. Alguns poucos nomes da música marcam presença na Berlinale 2023.
Em 2008, o melhor festival até hoje e não “só” pelo cinema brasileiro ter levado o Urso de Ouro por “Tropa de Elite”, estiveram de uma vez só: Madonna, Rolling Stones, Patti Smith e Neil Young, para o contentamento dos adeptos da dobradinha música-cinema.
Neste ano, a nata da música pop, o U2, estará desfilando pelo tapete vermelho em frente ao Berlinale Palast, principal cinema do festival. O motivo é “Kiss the Future”, um filme sobre a Guerra na Bósnia, motivo nada alegre, mas, se os irlandeses dão uma canja incógnitos no metrô de Nova York, em Berlim, eles não podem decepcionar.
Homenagem de Milhões
Steven Spielberg, diretor e produtor e detentor das nossas memórias afetivas da telinha, é membro emérito da ala graúda de Hollywood. Ele irá receber o Urso pela sua contribuição à Sétima Arte “Ehrenbär”.
Na coletiva de hoje, a CEO Rissenbeek foi perguntada sobre a “agenda” do diretor de “E.T.: O Extraterrestre” e sobre as atividades em Berlim: “Ele terá uma agenda muito apertada”, declarou, dizimando de imediato expectativas de eventos paralelos, ou seja, ele vem, faz uma coletiva e na mesma noite vai ao cinema Berlinale Palast, desfila pelo tapete vermelho e presenteia Berlim com um flair de Oscar-Night, recebe o prêmio, agradece e no dia seguinte, bem cedo, parte.
Fora Spielberg e U2, Cate Blanchett vem apresentar seu mais novo filme, rodado em Berlim. “Tár“ conta a história da dirigente da Filarmônica de Berlim. Para a personagem, Frau Blanchett até aprendeu alemão. Ao seu lado, como co-protagonista, a musa de Christian Petzold, Nina Hoss.
Aliás, uma das melhores novidades da Berlinale 2023 é a volta de Christian Petzold que tem lugar cativo na lista dos melhores diretores de cinema na Alemanha. Petzold mora em Berlim e, certa vez num jantar de abertura, em conversa rápida, ele me confessou achar “bem legal” sair da Première e ir pra casa, dormir na sua cama. Petzold e suas atrizes vem colecionando Ursos ao longo dos últimos anos. Em 2007, Nina Hoss levou o Urso de Prata por “Yella”, e Paula Beer, em 2020, por seu desempenho em “Undine”.
Dominância alemã
Com cinco filmes na Mostra Competitiva, a Alemanha é o país mais bem representado na Berlinale. Esse aspecto é também uma novidade. Em outras edições e com outra curadoria, os filmes alemães não eram “somente” reservados para Berlim.
Existem os festivais em Munique, em Oberhausen, em Leipzig, que focam em diferentes formatos. Essa fila de filmes alemães deixa uma pulga atrás da orelha, se outros, de países que não possuem uma tradição cinematográfica e nem mesmo orçamentos potentes, teriam ficado nas gavetas. É legítimo o político ficar acima do trabalho de arte? Como equilibrar as necessidades do Zeitgeist com o DNA do festival e a possiblidade de uma plataforma para o novo, o inusitado? Segundo Chatrian, a mostra “Encouters” foi criada exatamente para isso, mas também essa mostra, ainda muito jovem, precisa encontrar a sua essência.
Sustentabilidade em pauta
A apostila, digo, o Dossier da Berlinale não esqueceu o tema “Sustentabilidade”. O tapete vermelho é de material reciclável, as lâmpadas são LED e o catering este ano irá oferecer ainda mais opções de produtos vegetarianos.
O glamour de carros da Volkswagen, como vimos nos últimos anos, será trocado pelos carros mais simplórios do Uber que, junto com Armani, se tornou o principal patrocinador da Berlinale.
O clima na coletiva foi bem morno. A programação 2023 não empolga, mas como o cinema tem sempre uma carta na manga, vamos estar de olhos abertos a possíveis novas e estonteantes experiências cinematográficas. A certeza que se tem, desde já, é que as salas terão capacidade total, sem as restrições da época mais grave da pandemia, e que as filas homéricas em frente aos guichês de venda de ingressos são coisa do passado. Ingressos, agora, só online, o que é problemático, para dizer ao mínimo, num festival que jura ter no portfólio, digo, na cartilha, o aspecto da inclusão. Por mais infactível que se possa parecer, muitos berlinenses não possuem internet e ficarão de fora da corrida pelos ingressos.
A concepção da Berlinale sob nova direção ainda está longe de alinhavar um lugar entre o passado, antes do tsunami civilizatório, o presente em 2023 e um futuro próximo.