Se 2019 foi o ano dos filmes sobre luta de classes, com “Nós”, “Bacurau”, “Coringa” e “Parasita”, 2022 parece ser o dos filmes metalinguísticos: “Não! Não Olhe!“, de Jordan Peele, “X – A Marca da Morte” e “Pearl”, de Ti West, “Império da Luz”, de Sam Mendes, “Os Fabelmans”, de Steven Spielberg, e o mais novo filme de Damien Chazelle, “Babilônia”, mistura de homenagem e sátira à Velha Hollywood.
Destaco estas últimas duas produções, pois é incrível os dois filmes dialogarem tanto entre si e terem sido lançados nos cinemas apenas com uma semana de diferença. Mas, se em sua história fortemente autobiográfica Spielberg criou um drama localizado, tendo como centro o núcleo familiar, Chazelle propõe uma experiência propositalmente muito mais alucinógena e megalomaníaca, no bom e no mau sentido.
Seguindo a glória e o declínio de vários personagens que se aventuram por Hollywood ao longo dos anos 1920 e 1930, “Babilônia” se detém de forma mais específica em três arcos principais. Um deles é protagonizado pelo astro do cinema mudo Jack Conrad (Brad Pitt), que aparentemente consegue atravessar a transição dos filmes silenciosos para o cinema falado, mas logo vê seu brilho desaparecer, em uma referência a atores como John Gilbert e Douglas Fairbanks. Nós também temos Nellie LaRoy (Margot Robbie), uma jovem e extravagante candidata a atriz que, em alusão à real trajetória de estrelas como Clara Bow, não consegue se adaptar à mudança na tecnologia de produção dos filmes, enquanto embarca cada vez mais no vício em drogas e jogos de azar. Por fim, há Manuel “Manny” Torres (Diego Calva), um faz-tudo que trabalha em um estúdio de Los Angeles e sonha ter mais protagonismo na indústria, mas tem de abdicar do que conquistou ao se envolver com Nellie e suas perigosas escolhas.
Gravitando em torno deste trio, há ainda o trompetista Sidney Palmer (Jovan Adepo) e a cantora de cabaré e designer de intertítulos Lady Fay Zhu (Li Jun Li), que ascendem na Cidade dos Sonhos, mas rapidamente percebem que um homem negro e uma imigrante chinesa lésbica são ora rejeitados, ora privados de qualquer agência na indústria moralista e conservadora que sustentava a fábrica de sonhos do cinema americano.
De todos estes personagens, representativos de grupos históricos muitos maiores, a que carrega o filme com maior intensidade é, sem dúvida, a starlet vivida por Margot Robbie. Ela é a alma do filme, e o carisma e ousadia da personagem, aliados ao genuíno talento e entrega da atriz, são o que sustenta a longa extensão da produção, evitando que “Babilônia” se torne desinteressante. A energia da performance de Robbie é uma das grandes responsáveis por ter me deixado totalmente preso ao filme, sem nem mesmo olhar para o lado em momento algum, e em um mergulho completo na insanidade que o diretor inscreve na Velha Hollywood.
Mas, não só isso. Damien Chazelle e seu diretor de fotografia, o sueco Linus Sandgren, têm um visível domínio dos movimentos de câmera e de como eles podem levar o espectador a entrar de cabeça na narrativa. A movimentação fluida e ágil, combinada à profusão de planos-sequências muito bem coreografados, é fundamental para que o público se sinta dentro das diversas festas e sets de filmagem que compartilham duas características: constelações de artistas e falta de qualquer limite. As cores quentes também ajudam a aumentar exponencialmente o clima de ebulição incessante nos bastidores regados a sexo, drogas e jazz.
Tudo isso em meio a uma edição muito ritmada, assinada pelo montador Tom Cross, que trabalha em perfeita sincronia com a também precisa, embora muito explorada, trilha sonora criada por Justin Hurwitz. O compositor coloca em evidência os trompetes, principalmente no tema principal, e consegue, por meio deles, transmitir todo o senso de irreverência e descomprometimento de vários momentos do filme, como quando Manny precisa correr contra o tempo para conseguir uma câmera e continuar a filmagem do filme de Jack, ao mesmo tempo em que Nelly surpreende a diretora e toda a equipe com sua desenvoltura no estúdio de gravação do primeiro filme de que participa. É interessante notar como este mesmo tema, rápido e descontraído, é reaproveitado várias vezes com um andamento bem mais brando, adequando-se também às cenas dramáticas, que desenvolvem mais as relações entre os personagens e seus conflitos psicológicos.
Entretanto, em se tratando de um filme metalinguístico, e principalmente de um longa que se situa em um período tão crucial da história do cinema, a produção ultrapassa seus próprios méritos técnicos e artísticos e busca também nas referências um caminho para construir seu discurso enquanto obra de arte. Algumas dessas citações não funcionam. É o caso das falas que fazem alusão a filmes como “…E o Vento Levou” (1939) e “O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final” (1991), que vêm de forma gratuita e sem agregar nada à narrativa, a não ser uma impressão momentânea de que Chazelle, também roteirista, subestima o público ao acreditar que uma simples frase de efeito deslocada é suficiente para construir uma boa intertextualidade.
Porém, há também as referências bem pensadas. Ora, um dos maiores filmes da história do cinema e também uma grande crítica a Hollywood é o irretocável “Crepúsculo dos Deuses”, de Billy Wilder. Logo no começo do filme de Chazelle, quando Manny vai levar um Jack completamente bêbado para casa, o personagem de Brad Pitt se desequilibra e cai na piscina, e o enquadramento usado pelo diretor lembra muito um dos primeiros momentos do filme de Wilder, quando encontramos Joe Gillis morto na piscina de Norma Desmond ‒ o que não deixa de servir como um presságio da decadência de Jack.
Mais à frente no filme, o próprio Jack Conrad conversa no telefone com a intérprete de Norma, Gloria Swanson, que lhe pede insistentemente para ser escolhida para um papel, algo que reflete, ironicamente, a própria personalidade de sua personagem em “Crepúsculo dos Deuses”. Ou seja, mais do que meras citações, com esta referência ao filme de Wilder, o realizador de “Babilônia” consegue reforçar um dos pontos de seu filme, que é a visão crítica em relação à indústria hollywoodiana, e também o próprio destino que aguarda os personagens.
Mas o melhor uso da intertextualidade fica por conta, sem dúvida, da referência ao filme “Cantando na Chuva” (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen. Chazelle reproduz uma conhecida cena do musical da MGM, imprimindo, no entanto, um tom muito mais trágico e pesado. Embora não falte humor, em “Babilônia” a cena é finalizada de um modo muito mais mordaz, deixando claro o quão insalubre e violento pode ser um set de gravação. E é no final do longa que a referência a “Cantando na Chuva” se consolida, quando o clássico musical é visto por Manny à luz de tudo o que ele viveu.
A obra alcança seu ápice nestes momentos, em que imagens em movimento ou diálogos servem à reflexão sobre as dores e delícias da indústria do entretenimento. Chazelle tem muito êxito quando permite, delicadamente, que os gestos, rostos e falas dos personagens sejam eloquentes na constatação de sucessos, fracassos, perdas e realizações. Os cinco personagens que acompanhamos têm finais melancólicos, mas são, de certo modo, poupados pela câmera do diretor. Destaque para o fim da personagem de Robbie, que literalmente vai em direção à escuridão, prenunciando tanto sua partida concreta quanto o apagamento do brilho que todo astro e estrela do show business precisa, inescapavelmente, enfrentar. A mesma ideia vem também do diálogo que Jack tem com a jornalista de celebridades Elinor St. John (Jean Smart), quando ela lhe diz que sua carreira acabou, mas que, no futuro, mesmo quem nasceu depois de sua morte conviveria com ele nos filmes, pois Hollywood é o “algo maior” que se sobrepõe a todos eles.
Infelizmente, o principal defeito de “Babilônia” talvez resida em seus excessos, tanto no roteiro quanto na direção. Recupero aqui o paralelo com “Os Fabelmans”. Spielberg mostra muito mais maturidade (como não poderia deixar de ser, no caso de um diretor com a experiência dele), e imprime mais paixão ao projeto, enquanto Chazelle parece se deixar levar muito pelo próprio ego. Em outras palavras, se “Os Fabelmans” é uma carta de amor de Spielberg à arte de fazer filmes e à própria família, “Babilônia” é uma carta de amor de Chazelle à própria cinefilia e ao seu potencial pessoal enquanto cineasta, o que poderia não ser tão problemático, caso o diretor não inflasse tanto o filme, em vários sentidos.
Pensemos, por exemplo, na sequência com o mafioso interpretado por Tobey Maguire (também produtor do filme). Todo o suspense criado em torno de um certo elemento poderia ser resolvido em poucos minutos, mas o realizador estende a duração ao máximo, levando a ação para um encaminhamento totalmente sem sentido e desnecessário. Chazelle consegue tornar o momento ainda menos inspirado quando, aleatoriamente, inclui na trilha diegética uma obra operística de Mozart, fazendo um uso totalmente cliché, vazio e injustificado da música.
Também parece sofrer de problema semelhante a cena que se passa no deserto e envolve uma cobra venenosa. O trecho termina em uma confusão generalizada, e só serve para que uma relação (muito mal desenvolvida, é preciso dizer) entre as personagens de Robbie e Jun Li se inicie. Chazelle pode até saber aonde quer chegar, mas por vezes investe nos piores caminhos para levar seu filme a estes lugares. Um exemplo claro é como a obra tenta ser escatológica a todo custo, mas tem sucesso justamente quando faz críticas mais sutis, e nem por isso menos contundentes, à indústria hollywoodiana.
Ao invés de pessoas vomitando umas nas outras, fezes de elefante sendo despejadas nas cabeças dos personagens ou mortes em meio a performances de golden shower, o declínio moral da Velha Hollywood fica muito mais patente, por exemplo, quando Manny pede uma oportunidade a um executivo do estúdio e a resposta que recebe é que ele está onde merece estar. Assim como ele, um imigrante latino, todos os outros personagens centrais sofrem disso, pois ficam presos às contingências que a sociedade da época lhes impõe. Ao apelar para a overdose de expedientes simplórios, como a exploração da repulsa a fluidos corporais, o longa parece desprezar o fato de que vomitar em uma festa não é nada comparado a ter de abdicar da própria identidade para caber em um espaço.
Já o final do filme sedimenta o quão pretensioso Chazelle é capaz de ser. O filme se encaminhava para um excelente desfecho. Após começar a ver “Cantando na Chuva”, Manny se emociona. A câmera sai dele, mostra o cinema cheio e logo depois desce para a fileira da plateia inferior. Um travelling percorre a sequência de espectadores maravilhados com o musical. A câmera volta à plateia de cima e enquadra um Manny que chora. Este deveria ser o último plano de “Babilônia”.
Mas é então que o longa perde totalmente o rumo e começa uma série de flashes de obras cultuadas da história do cinema, em meio a uma intensa pirotecnia gráfica e visual. Além de ser uma manobra pedante, pois a mensagem já estava dada com “Cantando na Chuva” (que em si já é muito representativo), o diretor aparenta estar forçando tanto uma identificação do público quanto uma entrada de seu próprio filme naquele grupo.
O sorriso final de Manny, após a sequência de vinhetas, parece colocar em suspenso toda a melancolia do final e por em primeiro lugar a arte. Fico em dúvida sobre qual discurso este encerramento endossa: uma romantização que não combina com o tom do filme, ou uma resignada sensação de pertencimento e realização por ter finalmente feito parte da indústria. Fico com a segunda opção, mas dispenso a ambição pseudo-intelectual do diretor.
“Babilônia” é certamente um filme marcante. Bem fotografado, montado com precisão e muito bem dirigido na maior parte do tempo, a obra ainda traz Margot Robbie explorando muito de seu potencial como atriz e tendo êxitos ininterruptos. Como a real Babilônia e a Velha Hollywood, o longa atinge picos formidáveis. A ruína de qualquer império, todavia, é não definir bem seus limites. O filme persegue tanto um caminho de exageros que parece não saber administrá-lo, no final das contas. Alguns personagens, como Sidney Palmer e Lady Fay Zhu, são subaproveitados, enquanto outros, como a diretora dos primeiros filmes de Nelly, simplesmente somem a certa altura.
O diretor tenta insistentemente promover um espetáculo tresloucado e grandiloquente, porém se esquece que o poder do cinema muitas vezes está em momentos contidos, misteriosos e sinceros, que falam por si só. É o casal enamorado flutuando em “La La Land: Cantando Estações” (2016), do próprio Chazelle, ou o jovem Sam projetando um filme na palma da mão em “Os Fabelmans”. Para isso, é preciso deixar de se deslumbrar consigo mesmo e se dispor a ser mais verdadeiramente reverente à arte do cinema. Afinal, e “Babilônia” ilustra bem isso de vários modos, as mesmas imagens que te levam ao topo do brilhantismo também te puxam para o abismo dos excessos. ■
BABILÔNIA (Babylon, 2022, EUA). Direção: Damien Chazelle; Roteiro: Damien Chazelle; Produção: Marc Platt, Matthew Plouffe, Olivia Hamilton; Fotografia: Linus Sandgren; Montagem: Tom Cross; Música: Justin Hurwitz; Com: Brad Pitt, Margot Robbie, Diego Calva, Jean Smart, Jovan Adepo, Li Jun Li, Tobey Maguire; Estúdio: Paramount Pictures; Distribuição: Paramount Pictures; Duração: 3 h 9 min.
filme Babilônia
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Jornalista formado pela UFMG e crítico de cinema, aproveita qualquer oportunidade para falar sobre sua paixão, a sétima arte. Com passagem pelo Curso Técnico em Química do CEFET-MG, iniciou os estudos de forma bem parecida com o começo do próprio cinema: em um laboratório manipulando substâncias químicas. Por quase dois anos, foi estagiário na RecordTV Minas, tendo uma rotina quase tão louca quanto a dos protagonistas de “Rede de Intrigas”. Participou do 6º Talent Press Rio e integrou a Assessoria de Comunicação da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte.