Valendo-se das possibilidades de um formato intermediário, o média-metragem, três filmes da Mostra Cinema Mutirão – seção da 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes dedicada à temática que orienta esta edição do evento – apresentam trabalhos de experimentação de linguagem e propostas estético-políticas instigantes, tanto em termos de experiência sensorial quanto de narrativas e discursos. E em seus modos de produção, percebe-se o interesse pela coletividade e colaboração. São eles: “Caixa Preta”, dirigido por Saskia e Bernardo Oliveira; “Partida de Vôlei à Sombra do Vulcão”, de Clarissa Campolina e Fernanda Vianna; e “Entre a Colônia e as Estrelas”, de Lorran Dias.
“Caixa Preta” (2022), com seus 51 minutos, é daquelas obras tão esteticamente marcantes, que se torna difícil descrevê-la, pois o filme escapa às definições e conceituações pré-estabelecidas para lançar-se inteiramente ao risco do ruído, à dissonância e perturbação – embora haja uma consciência muito plena de onde se quer chegar com o que provoca. Na apresentação da sessão, aquele momento que antecede a exibição do filme, os codiretores, Saskia (multiartista vibrante) e Bernardo Oliveira (professor, músico e crítico) disseram que “é um filme cuja sinopse cada um constrói” e que toda reação é válida, até mesmo dormir, pois “é dormindo que se sonha”. Nesse clima de liberdade artística, o filme começou e já foi logo provocando incômodo e curiosidade com seus quase seis minutos de tela preta iniciais, onde o som de tambores é o que preenche “o vazio”. Em “Caixa Preta” fica evidente que a música é protagonista e a montagem é o que dá forma ao transe. Sim, transe. Um transe audiovisual inquietante, de jogo de texturas e camadas, jogo entre o que aparece e o que não é visível, que vai, aos poucos, se materializando e fluindo como discurso inventivo, tecnológico e impactante sobre racismo, mas principalmente sobre vivências e resistência negra. Ao final, tudo é catarse, entre sinapses e sensações. Fica ainda a questão: que referências sobre corpos/corpus negros temos, que referências devem ser criadas?
“Partida de Vôlei à Sombra do Vulcão” (2022) é o resultado de um encontro fecundo entre a arte teatral e a arte cinematográfica. A direção é de Clarissa Campolina e Fernanda Vianna, que orquestraram a feitura desse curioso amálgama do cinema com as artes cênicas. A produção é do Grupo Galpão, o que já nos diz muito sobre o trabalho competente da dramaturgia e de todo o elenco, proporcionando uma experiência – de sotaque e jeito mineiro de ser – que te prende do início ao fim. Os atores e atrizes Inês Peixoto, Teuda Bara, Simone Ordones, Paulo André, Lydia Del Picchia, Eduardo Moreira, Antônio Edson e Júlio Maciel parecem se divertir enquanto vivem seus papeis, inclusive dividindo a mesma personagem. Isso porque a narrativa, com inspirações do realismo fantástico, tem boas doses de humor, enquanto faz comentários políticos, metáforas existenciais e imagens bastante simbólicas – sem esquecer, ainda, de toques bem-vindos de melancolia. A jornada da protagonista, uma mulher em erupção tal qual o vulcão que ela busca encontrar, capta bem um certo espírito do tempo. Sua viagem até o vulcão pelo qual está obcecada, que se torna mais inusitada com a descoberta de uma gravidez, é um percurso onírico sobre si mesma, sobre o Brasil e sobre o mundo contemporâneo.
“Entre a Colônia e as Estrelas” (2022), com uma equipe formada majoritariamente por pessoas negras, é escrito e dirigido por Lorran Dias, que integra o coletivo Anarca Filmes. O filme se utiliza de estratégias do cinema fantástico e da pesquisa de arquivos para narrar sobre afetos e enfrentamentos na Colônia Juliano Moreira, Zona Oeste do Rio de Janeiro, antigo local destinado a abrigar pacientes de saúde mental. Os mistérios e descobertas cruzam temporalidades, vivências, diferenças políticas e identitárias. A jornada da protagonista Estelar (Timbuca Hai), uma profissional de enfermagem psiquiátrica, passa por uma crise hídrica que afeta o Rio e mudanças em sua casa e no trabalho. Em casa, as tensões acontencem devido à chegada de Kalil (Lorre Motta), seu irmão mais novo, que precisa de morada. A relação entre os dois está abalada pois Kalil é um homem trans e não tem o apoio e a empatia de Estelar. Já o trabalho virou assombro devido à hierarquia problemática do hospital. Todo o percurso serve para que Estelar encontre coragem, possa se conscientizar e compreender sobre questões de corpo, território, memória e empatia. É digno de nota o belo trabalho de fotografia e som que potencializam as imagens enquanto fluxo e ambientação.
A 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes segue até o sábado, dia 28 de janeiro.
Editora, crítica de cinema e podcaster do Cinematório. Filiada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e membra do Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Jornalista profissional pela UFMG e com formação em Produção de Moda pela mesma instituição. É cria dos anos 90 e do interior de Minas.