Depois da opressão violenta causada pela pandemia, com desdobramentos civilizatórios, a Berlinale 2023 gerava muitas expectativas: tinha tudo para ser o alívio, o grito entalado na garganta desde 2020. Me recuso a falar sobre a edição de 2021, que aconteceu sob um calor infernal de 37 graus, e a de 2022, que aconteceu num período que estava sobre a ameaça do ápice da variante Ômicron.
Alívio light
Salas de projeção com capacidade máxima, fim do uso de máscaras que durante tanto tempo esconderam nossas emoções e, acima de tudo, do zeitgeist que nos deixou esfomeados daquilo do que mais gostávamos: ver gente, discutir, analisar, abraçar e ver filmes até os olhos ficarem quadrados. Mas como ensina um ditado em língua alemã, implacável e que sempre te puxa para a realidade: “A vida não é um playground”, e a Berlinale 2023 ficou devendo. Muito.
Dados técnicos
Vinte mil credenciais, entre elas 2.800 jornalistas e blogueiros de, ao todo, 132 países. O boletim dos organizadores informa que 320 mil ingressos foram vendidos ao público. Com esses números, o festival atinge o nível de público pré-pandemia.
Competição
A mostra na corrida pelos Ursos do maior festival de público do mundo, exceto por duas obras, brilhou pela distopia, falta de coragem estética e falta de histórias que nos fazem transcender. Já faz tempo a época em que a Berlinale trazia para a competição filmes de cineastas desconhecidos e que saíam de Berlim com Ursos na mala e conquistando o mundo.
O fato da presença de cinco longas de cineastas alemães, entre eles “Der Rote Himmel” (“O céu vermelho”), do diretor Christian Petzold, é o maior fator de descaracterização da vitrine mais prestigiosa da Berlinale.
Vale lembrar que a CEO Mariëtte Rissenbeek atuou entre 2003 e 2011 na produtora German Films, num período em que o cinema alemão ganhava o mundo. Seria esse o objetivo de “ajudar” os filmes do país ou a Berlinale estaria se tornando um festival regional e, consequentemente, saindo da lista dos três da chamada categoria A (junto com Cannes e Veneza)? Falta rumo, definição, coerência.
O número inflacionário de obras de obras alemãs é só um dos itens que fazem transparecer o andar da carruagem que a Berlinale vem tomando desde que o italiano Carlo Chatrian assumiu a direção artística, em 2020.
A mostra Encounters, criada por ele assim que assumiu o cargo e dedicada a novos nomes, ainda não expressou para que veio. A única exceção na edição 2023 foi “Viver Mal”, de João Canijo. O diretor português foi o primeiro, em toda a história de 73 anos da Berlinale que, na mesma edição, competiu com dois filmes: um deles na Mostra Competitiva (“Mal Viver”) e o outro na Encounters (“Viver Mal”).
Panorama
Wieland Speck, junto com Manfred Salzgeber, criou a mostra Panorama numa época em que a Alemanha era um país reacionário e a homossexualidade, um crime prescrito no Código Penal. Depois da saída daquele que era incansável visitante de festivais pelo mundo, a então segunda mostra mais relevante da Berlinale despencou no banho-maria, no medíocre, fator indigno para a plataforma que já foi chave para países com mais ou menos tradição cinematográfica.
O cinema brasileiro tem muito a agradecer à Panorama, porém, o atual curador, Michael Stütz, fica devendo uma assinatura própria, coragem, mas acima de tudo, coerência. São muitos os filmes que vem para Berlim com o aval e curadoria de outros festivais e sem o pedigree para ser apresentado na Berlinale. A curadoria se banha no conforto e deixou de ser protagonista. É preciso viajar pelos continentes, pesquisar, interagir com as cenas locais, ir para países longínquos, se emancipar da lente eurocentrista, trazer o diferencial e ficar longe do previsível.
Perspectiva do Cinema Alemão
A ex-curadora desta mostra, Linda Söfkter, tinha uma conexão muito forte com realizadores recém-formados das escolas de cinema. Já a nova curadora da PDK (na sigla em alemão), Jenni Zylka, ainda precisa inserir a sua assinatura na mostra. Um detalhe interessante, para dizer ao mínimo, talvez tenha sido o filme de média-metragem (30 minutos) “Quarta-Feira de Cinzas” (“Ash Wednesday”), dirigido por João Pedro, que cursa a cadeira de direção na escola de cinema de Babelsberg, e Bárbara Santos, que recentemente trabalhou com Karim Aïnouz em “A Vida Invisível”.
“Quarta-Feira de Cinzas” foi todo rodado no galpão do prestigioso Studio Babelsberg, num período de 10 dias, com muita improvisação e vontade de fazer. O financiamento mínimo foi todo do lado alemão. Teria sido por uma mudança de paradigma que o futuro do filme alemão estaria se emancipando da restrição linguistica, ou o “cair” nessa mostra foi devido à origem do filme na Faculdade de Cinema o fator determinante?
Berlinale Shorts
É eletrizante ver o amor que os berlinenses têm por esta mostra. Todas as sessões estão sempre lotadas e Berlinale Shorts foi a mostra que exibiu os melhores filmes no quesito diversidade e na habilidade narrativa. O brasileiro “Miçangas” foi coerente com essa linha.
Forum
A mostra que serve de plataforma para linguagens muito mais arriscadas, no sentido estrito, podendo incluir ensaios e instalações, foi a melhor da Berlinale num ano fraco e com muitos defeitos. O faro certo e a coragem da equipe curatorial (formada por Cristina Nord, Ala Younis e Ulrich Ziemons) levou o clássico brasileiro “A Rainha Diaba” à mostra “Forum Special”, em sua versão recém-restaurada. Entre todas as seções, esta é a única que não escorregou e se manteve fiel à sua essência.
Berlinale Talents
A mostra que tem como objetivo dar asas à nova geração para voos altos acabou se tornando um engodo para a Berlinale. O número de projetos financiados pelo World Cinema Fund (WCF, na sigla) se transformou numa garantia da exibição do filme no festival, o que (e isso vem transparecendo nos últimos anos) fecha a porta para quem está de fora de um grupo muito seleto. A diversidade e o fator surpresa nas demais mostras sofre com isso. Em 2023, a Berlinale Talents teve 203 convidados, de 68 países, para integrar o grupo de jovens cineastas.
O culpado
Mesmo com mostras fracas, a causa maior do processo de desconstrução de várias pilastras da Berlinale é o diretor Carlo Chatrian. Para comandar o festival mais político do mundo, é preciso mais do que ser exímio conhecedor do cinema europeu, algo incontestável no portfólio do ex-diretor do Festival de Locarno. O festival suíço acontece no mês de agosto, durante o verão europeu e a céu aberto. Essas são somente algumas das características que o tornam incompatíveis com a Berlinale. E Berlim não é e nunca poderá se tornar um Locarno.
Chatrian se apoia demais na aba da CEO Mariëtte Rissenbeek, que parece uma rígida diretora de escola cuja régua invisível tem seu pupilo sempre na mira. Nem mesmo o pouco conhecimento da língua alemã que Chatrian possui é o principal fator que faz parecê-lo um peixe fora d’água!
Para se tornar o “cartão de visitas” da Berlinale, é preciso ter carisma, saber lidar com as grandes estrelas no tapete vermelho, saber receber à La Berlinoise e ter balanceada a obrigatoriedade do glamour no tapete vermelho com o exercício da curadoria meticulosa. Apesar dos streamings hoje em dia, o festival deve abrir um leque de possibilidades para o público berlinense de descobrir pérolas cinematográficas que o resto do mundo ainda não viu.
Meus favoritos
No topo: “Mal Viver”, do diretor português João Canijo. Na época da pandemia, toda a equipe ficou enclausurada num hotel para contar uma história de feridas, biografias dilasceradas e sobre a impossibilidade de repará-las para seguir em frente.
O filme de Canijo, que há tempos merecia o reconhecimento internacional, é um filme de mulheres, mas bem diferente da estética almodovariana. A entrega total das melhores atrizes do cinema português atual e as ótimas promessas é a principal virtude desse filme, junto com a nota pessoal de cada atriz que teve tempo suficiente de “conviver” com sua personagem.
A moldura do longa é a fotografia que tem a assinatura de Leonor Teles, com sua obsessão pelos detalhes, pela harmonia como também pelo total contrário dela. Canijo se refere a Leonor como “alma gêmea”. Quem assistir ao filme irá constatar que nem goiabada e queijo se completam tanto.
Superpower
A ideia de Sean Penn e Aaron Kaufman era fazer um documentário sobre os desdobramentos da pandemia, mas a dinâmica dos fatos os fizeram mudar de planos. O documentário goza da relevância histórica entre as imagens da capital ucraniana, Kiev, um dia antes do ataque das forças militares russas. As diversas garrafas de vodka e um número monstruoso de cigarros que o diretor e o protagonista do filme consomem são parte do touch hollywoodiano.
Um dos melhores momentos entre as coletivas de imprensa da Berlinale foi o boné usado pelo ex de Madonna: “Killer Tacos”. Demorou um bocado para jornalistas fazerem a pergunta que todos queriam saber. Falar de paz e usar um boné com a palavra Killer? Provocação? Não saberemos. Em senso estrito é, segundo Sean, apenas o nome de um restaurante de tacos no Havaí.
Disco Boy
Franz Rogowski é um ator alemão muito atípico. Ao invés de hibernar na onda de conforto das produções alemãs, ele se joga em solos linguísticos e na possibilidade da confrontação com outras perpectivas cinematográficas. Ele compensa a limitação causada pelo idioma “estrangeiro” através de intenso trabalho corporal e visceral com o qual ele compõe seus personagens.
O título “Disco Boy” insinua algo pueril, mas a história que Franz conta é a de uma homem da Bielorrússia que, usando uma excursão para uma partida de futebol, consegue entrar ilegalmente na França, o país dos seus sonhos. Para conseguir mudar para a legalidade ele precisa percorrer um caminho cheio de lama e percalços até chegar numa rua de duas vias e escolher por onde seguir.
Inexplicável Rogowski não ter levado um Urso de Prata por sua atuação, mas o filme do diretor italiano Giacomo Abbruzzese não saiu de Berlim com as mãos abanando: o prêmio de contribuição artística foi para a renomada fotógrafa Hélène Louvart.
Tár
O filme estrelado por Cate Blanchett tem várias indicações para o Oscar 2023. “Tár”, que tem a Universal alemã como distribuidora, foi apresentado a convidados e jornalistas no início do mês de janeiro e teve exibição especial na Berlinale.
Blanchett incorpora a maestrina da Filarmônica de Berlim. O filme quase todo foi filmado na capital e parte do financiamento também é alemã. A coprotagonista é Nina Hoss, durante muitos anos musa de Christian Petzold. O filme merece o Oscar e todos os prêmios. Um primor.
Tubarão
Um filme da minha juventude e um dos primeiros que me fizeram colar na tela é “Tubarão”. Na homenagem feita ao brilhante Steven Spielberg, os berlinenses tiveram a chance de assistir aos clássicos do diretor. Na mesma hora em que “Tubarão” foi exibido, eu estava na cerimônia de gala de entrega do Urso pelo conjunto da obra. Não dá para reclamar.
Aliás, a cerimônia — que reportamos in loco e quase em tempo real pelo Cinematório — foi a mais glamourosa e mais emocionante para a cinéfila que vos escreve. Foi histórico. Se foi único, o tempo irá dizer. Ele prometeu que continuará a trabalhar.
“O longo beijo” (Der Langer Langer Kuss)
A hermeticidade e profundidade deste filme que foi exibido na mostra Perspectiva do Cinema Alemão não tem “só” um argumento alinhado, enxuto e coerente o tempo todo. Ele consegue, em poucos minutos, nos fazer interagir com o drama de uma família estraçalhada na qual os filhos não se encaixam nas expectativas do pai, que aparece para jantar e se mostra “irritado”. A cumplicidade entre irmão e irmã, acima de tudo, e a coragem de seguir em frente são comoventes.
O filme alemão consegue ser imbatível quando brilha pela profundidade em histórias simples, de um cotidiano que nos é familiar e que tem, em partes, uma narrativa de filme de terror para ressaltar o limbo no qual seus protagonistas se encontram. Foi realizado por estudantes e o diretor da Escola de Cinema de Munique. Guardem esses nomes: Nils Thalmann, Luisa Bocksnick e o diretor Lukas Röder.
Epílogo
Lá na frente, a Berlinale 2023 será lembrada como um alívio depois de um tempo sombrio de salas vazias e de cancelamentos — e no que concerne ao Brasil, pela ressurreição do cinema do país, que, mesmo não tendo brilhado este ano, apresentou grandes feitos depois de ter sido quase totalmente destruído.
A Berlinale deixou um gostinho de quero mais, melhores filmes, surpresas cinematográficas e organizadores que tragam a Berlinale, a original, de volta. Estamos com muitas saudades.
Nascida no Rio de Janeiro e radicada na capital alemã, acompanha o Festival Internacional de Cinema de Berlim desde 1989, ainda como cinéfila incondicional. Em 1998, a cobertura se tornou profissional, para diversos meios de comunicação no Brasil e na Alemanha, e durante quatro anos foi expert da Berlinale no programa “Dschungelfieber”, da Rádio Eins de Berlim.