Alguns dos meus filmes de horror favoritos pertencem ao subgênero “filme de bruxa” ou trabalham de algum modo a presença dessas figuras: “O Bebê de Rosemary” (1968), “Suspiria” (1977) e “A Bruxa” (2015). A lista não é nem um pouco original, eu sei, mas a obviedade pode ser explicada pela força que esses filmes deram à temática da bruxaria e ao próprio gênero terror. Então, quando comecei a assistir a “Duas Bruxas”, filme estadunidense dirigido (e também coproduzido, coescrito, fotografado e montado) pelo franco-americano Pierre Tsigaridis, imaginava que o cineasta, em sua estreia nos longas-metragens, beberia dessas e de várias outras fontes. Mas eu também esperava algum tipo de inovação ou subversão, como Anna Biller fez em seu sensacional “A Bruxa do Amor” (2016) ou Luca Guadagnino trouxe com o corajoso remake “Suspiria: A Dança do Medo” (2018).
Não que fosse necessário uma obra totalmente original ou disrruptiva, mas, se é para assistir a uma colagem de outras ideias já levadas às telas, é preferível retornar diretamente aos filmes cultuados. Infelizmente, é por esse caminho pouco empolgante que o longa de Tsigaridis segue e, embora haja algumas ideias muito boas aqui, a maior parte de “Duas Bruxas” é composta por fragmentos pouco criativos nos quais as atuações são um grande ponto fraco.
No filme, começamos seguindo Sarah (Belle Adams), uma jovem grávida que passa a desconfiar que foi amaldiçoada por uma mulher idosa que a encarou em um restaurante. Ela viaja neste estado de paranoia acompanhada de seu cético namorado, Simon (Ian Michaels), para a casa de dois amigos, o casal Dustin (Tim Fox) e Melissa (Dina Silva), cujo envolvimento com o ocultismo os leva a experiências aterrorizantes no decorrer da noite. Após os acontecimentos desta primeira metade, somos apresentados a Rachel (Kristina Klebe, também roteirista do filme) e sua estranha colega de quarto Masha (Rebekah Kennedy). As vidas das duas passam então a ser movidas pelas ações da mesma mulher que assustou Sarah no restaurante, e que havíamos descoberto ser de fato uma bruxa desde a primeira cena do filme.
O diretor não poupa referências a filmes de terror que se tornaram marcos da história do cinema. Além das três obras já citadas no início deste texto, transbordam citações a filmes como “Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio” (1981) ‒ o balanço que se movimenta sozinho e os possuídos com olhos opacos ‒ e “Corrente do Mal” (2014) ‒ o característico zoom-in lento em direção à presença sobrenatural.
É visível que Tsigaridis é um grande fã do gênero. Ele ama filmes de terror. E ama tanto que resolve seguir à risca todos os clichês do horror e das histórias de bruxa. Temos a bruxa velha que come crianças, a mulher grávida paranoica, a casa isolada no campo, o tabuleiro ouija, a bruxa como figura lasciva subordinada ao demônio, mortes e suicídios causadas por feitiçaria, a cerimônia do sabá, além dos tradicionais (e numerosos) sustos acompanhados por um som alto, entre outros. Isso não seria exatamente um problema, mas torna-se um na medida em que o filme não tem quase mais nada de próprio para apresentar.
Em meio a este caldeirão de lugares-comuns, apenas alguns momentos se salvam. É o caso da bem-construída cena, logo no início do filme, em que Sarah acredita estar vendo a bruxa em seu quarto durante a noite. Tudo é bem utilizado para causar suspense nesse instante, da tensão do tempo dilatado à iluminação que deixa apenas um feixe de luz no rosto da então protagonista. Mais à frente, o desenrolar dos acontecimentos na casa de Dustin e Melissa também traz caminhos interessantes em termos de expectativas e do que efetivamente ocorre, adicionando pontuais elementos inesperados à história.
Porém, a segunda parte (o filme é dividido em duas, com um epílogo) torna o que estava sendo minimamente interessante em uma sucessão de cenas quase aleatórias. E aqui a carência de boas atuações fica ainda mais evidente. Se Sarah é bem defendida por sua intérprete no primeiro terço, quase todos os outros personagens são prejudicados por atuações incompetentes, que transitam entre o inexpressivo (caso de Masha e Rachel) e o caricato (demérito para Simon, Dustin e Melissa). Apenas Danielle Kennedy, que dá vida a Mary, avó de Rachel, consegue imprimir alguma verdade ao papel, embora a personagem apareça pouco. Em um filme que aparentemente se leva a sério (tenho dúvidas, mas pelo tom geral e pela estética considero que sim), isso se torna um problema bastante significativo.
A bem da verdade, até é possível extrair do filme algum tipo de comentário, seja sobre o quanto mulheres sofrem por terem suas experiências e opiniões invalidadas por homens, ou mesmo uma questão geracional, já que no longa existem duas bruxas em diferentes estados da vida e que representam distintos objetivos e mitologias em torno desta figura sobrenatural. O filme parece ter alguma consciência da historicidade do tema que está tratando, na medida em que Rachel, em certo momento, ressalta que as bruxas eram mulheres que desafiavam a autoridade patriarcal, e não entidades demoníacas que comiam crianças. No entanto, a obra acaba por reforçar vários dos estereótipos já exaustivamente explorados no cinema, sem a potência crítica de “A Bruxa” ou de “Suspiria: A Dança do Medo” e menos ainda a verve satírica e autoconsciente de “A Bruxa do Amor”.
“Duas Bruxas” é um filme insosso que se sai muito mal ao tentar construir um enredo consistentemente assustador envolvendo bruxas, invocação de espíritos e assassinatos sobrenaturais. Mesmo a cinematografia e a montagem, dignamente executadas para criar um clima de medo e angústia em instantes específicos, às vezes derrapam, seja em planos que de tão mal fotografados parecem saídos de séries de TV de baixo orçamento, seja em cenas com extensão exagerada.
A direção estreante de Tsigaridis e o roteiro proporcionam raros momentos inspirados e conceitos minimamente interessantes (por exemplo, a transmutação de forma como efeito da bruxaria). Boas ideias, entretanto, não são suficientes. É perceptível que o cineasta conhece bastante e admira o cinema de horror. Porém, ironicamente nenhum dos grandes filmes de horror aqui citados foi feito em um passe de mágica. Espero sinceramente que o realizador, em seu próximo longa, consiga organizar suas boas ideias em um filme melhor. ■
DUAS BRUXAS – A HERANÇA DIABÓLICA (Two Witches, 2021, EUA). Direção: Pierre Tsigaridis; Roteiro: Kristina Klebe, Maxime Rancon, Pierre Tsigaridis; Produção: Maxime Rancon; Fotografia: Pierre Tsigaridis; Montagem: Pierre Tsigaridis; Música: Gioacchino Marincola; Com: Rebekah Kennedy, Kristina Klebe, Tim Fox, Dina Silva, Belle Adams; Estúdio: Incubo Films, The Rancon Company; Distribuição: Synapse; Duração: 1h 38min.
filme Duas Bruxas
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filme Duas Bruxas
filme Duas Bruxas
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Jornalista formado pela UFMG e crítico de cinema, aproveita qualquer oportunidade para falar sobre sua paixão, a sétima arte. Com passagem pelo Curso Técnico em Química do CEFET-MG, iniciou os estudos de forma bem parecida com o começo do próprio cinema: em um laboratório manipulando substâncias químicas. Por quase dois anos, foi estagiário na RecordTV Minas, tendo uma rotina quase tão louca quanto a dos protagonistas de “Rede de Intrigas”. Participou do 6º Talent Press Rio e integrou a Assessoria de Comunicação da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte.