Toda vez que escuto “The Chain”, clássico atemporal da banda Fleetwood Mac, eu me lembro imediatamente de Michael Myers e da franquia “Halloween”, principalmente dos filmes da nova trilogia (2018-2022). Por quê? Talvez pelo fato de que eu ouvia muito a música na época de lançamento do reboot, mas mais ainda porque há algo, na melodia e nos vocais da canção, que a conecta ao clima dos filmes. Desde esta estranha correspondência, isso nunca mais havia acontecido, até o momento em que me deparei com “Medusa” (2021), segundo longa-metragem da cineasta brasileira Anita Rocha da Silveira, que também é responsável pelo roteiro. A música da vez é “Cloudbusting”, de Kate Bush, e novamente é como se as obras estivessem ligadas por uma indescritível atmosfera comum de presságio, de que algo muito transformador está por vir.
Inicio com essa espécie de trívia pessoal porque falar de atmosfera no cinema de Anita Rocha da Silveira é algo muito importante. Tanto em seus curtas, “O Vampiro do Meio-Dia” (2008), “Handebol” (2010) e “Os Mortos-Vivos” (2012), quanto em seu primeiro longa-metragem, o ótimo “Mate-me Por Favor” (2015), a realizadora sempre soube construir com maestria a ambiência de seus filmes, abrindo mais espaço para as experiências e perspectivas pessoais dos personagens e flexibilizando a estrutura dramática e a progressão tradicional do enredo. Em outras palavras, importam mais os momentos particulares dos personagens, seus dilemas interiores e as implicações simbólicas e metafóricas que vêm daí do que uma história contada a partir de causas e consequências claramente delimitadas.
E é no envolvente “Medusa” que a diretora parece atingir o nível mais refinado até então em sua carreira. Se os curtas de Anita Rocha me soam às vezes um pouco soltos, embora interessantes, “Mate-me Por Favor” trouxe uma narrativa mais bem trabalhada e que parecia mais consciente em termos de proposta. “Medusa”, por sua vez, equilibra brilhantemente a aura etérea característica da diretora a um enredo muito consistente e que traz suas discussões de modo contundente. O filme foi destaque nas edições de 2021 da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes (onde estreou mundialmente) e do Festival Internacional de Cinema de Toronto. Em território nacional, foi o grande vencedor da Première Brasil do Festival do Rio, com a distinção de Melhor Filme, além de ter recebido os prêmios de Melhor Direção e Melhor Atriz Coadjuvante (para Lara Tremouroux).
A história tem como protagonista a jovem religiosa Mariana (Mari Oliveira, que também atua no longa anterior da diretora), que pertence a um mundo onde deve manter a aparência de ser uma mulher perfeita. Para não ceder às tentações, ela e suas amigas se esforçam ao máximo para controlar tudo e todas à sua volta. Mas, ao cair da noite, Mari e as outras formam uma gangue e, escondidas atrás de máscaras, caçam e punem aquelas que se desviaram do que consideram ser o caminho correto. A mesma liberdade que as afronta, entretanto, também as fascina. E é a partir desta complexa dualidade entre medo/repulsa e desejo/atração que as vidas e a visão das personagens vão se transformar radicalmente ao longo do filme, fazendo emergir um grito catártico no final do terceiro ato.
Assim como “Mate-me Por Favor”, “Medusa” se propõe a debater uma profusão de temas, como religião, conservadorismo, avanço da extrema-direita e do militarismo, sexismo, culto à beleza, entre outros. Unindo tudo, a diretora trabalha mais uma vez com personagens obcecados, seja pela aparência, pela Igreja, ou ainda por ideais reacionários e misóginos de feminilidade. Mas, acima de tudo, há a obsessão por aquilo que se abomina, e isso acaba sendo o fio condutor da obra. Mari e seu grupo, as “Preciosas do Altar”, poderiam rejeitar as mulheres que consideram “pecadoras” apenas em um nível discursivo, mas resolvem combater o que veem como uma ameaça a partir da violência física extrema. Ou seja, existe uma obsessão que só cessa com o contato carnal. As personagens se sentem realizadas apenas quando machucam outras.
E, com o passar do tempo, esta obsessão ainda disfarçada de punitivismo vai ficando mais intensa, à medida que Mari e sua melhor amiga, Michele (Tremouroux), entram cada vez mais fundo na história e na busca por Melissa (Bruna Linzmeyer), mulher que teve o rosto desfigurado por ser tida como lasciva e agora assombra (literal e figurativamente) as personagens. Parece ser ela a Medusa do título, mas que aqui é humanizada e tirada do papel bestial para se tornar uma espécie de propulsora da luta feminina contra os verdadeiros monstros que historicamente oprimem as mulheres.
Como todo mito, há várias versões para a Medusa original. Em uma delas, ela teria tentando competir com a beleza de Atena, deusa virgem da sabedoria e da guerra, que a transformou em uma terrível górgona. Na outra, Medusa era sacerdotisa do templo de Atena e uma das mais lindas donzelas existentes, especialmente admirada por seu cabelo. Ela tinha de se manter casta pelo ofício. Porém, um dia, Medusa teria cedido às investidas de Poseidon, deus dos oceanos, enfurecendo a divindade feminina, que transformou seu belo cabelo em serpentes e deixou seu rosto tão horrível que uma mera visão transformaria os que a olhassem em pedra. Em uma terceira versão, Poseidon, diante da recusa, violentou Medusa dentro do templo, e a jovem foi, ainda assim, igualmente punida por Atena.
A figura de Medusa e seu nome já foram amplamente explorados nas artes. Temos a assustadora pintura de Caravaggio, o bonito poema da escritora Louise Bogan e o marcante álbum de covers de Annie Lennox, apenas para ficar em alguns exemplos. Mas Anita Rocha traz uma atualidade impressionante à figura ao transpor elementos das três versões para seu filme, compondo um quadro cujo centro gravitacional é o corpo feminino, seja ele tratado como uma vitrine para a beleza sempre idealizada, temido e reprimido por expressar sua sexualidade, ou culpabilizado por todos pela violência que sofre — todos estes temas urgentes na sociedade brasileira e que chamaram a atenção da cineasta por volta de 2015, quando ela começou a se deparar com uma série de notícias de jornais sobre ataques contra jovens consideradas “promíscuas” por agressoras também mulheres. Foi justamente a partir daí que a diretora resolveu se afastar um pouco de seu longa anterior e trabalhar com personagens mais velhas e comentários políticos mais incisivos, atrelando tudo isso à universalidade da figura mitológica milenar.
Se a temática pesada e real confere ao filme grande parte de seu terror, é na criação das imagens e sons que a diretora consolida o gênero do filme. Assumidamente fã de “Suspiria” (1977), de Dario Argento, do trabalho de John Carpenter ‒ responsável por obras-primas como “Halloween” ‒, e dos inquietantes filmes de David Lynch, Anita Rocha e o diretor de fotografia João Atala (que colabora constantemente com a cineasta) mergulham o filme em uma paleta saturada, carregando também no uso das cores neon, o que ao mesmo tempo destaca o aspecto distópico/fantasioso da história e também sua beleza plástica, um ponto tão importante dentre as discussões que o longa propõe.
Já o trabalho sonoro e a trilha musical conduzidos pela própria Anita Rocha e por Bernardo Uzeda (também seu colaborador frequente, e de Gabriela Amaral Almeida no excelente “O Animal Cordial”) são, em grande parte, responsáveis pela atmosfera tensa do filme, fazendo dos sintetizadores e do registro musical grave à la Goblin e Carpenter um complemento importante para a jornada da protagonista e de suas amigas.
Um terceiro ponto de conexão com Carpenter e com a tradição do cinema de horror são as máscaras usadas pelas “Preciosas do Altar”. Além de simbolizar a despersonalização que leva cada uma das jovens a seguir as diretrizes da religião sem questionar, o design das máscaras também remete à teatralidade grega, compartilhando o território de origem com o próprio mito da Medusa e ressaltando o papel da representação dentro do universo do filme. Afinal, as jovens tanto seguem um padrão que lhes é imposto quanto impõem a outras pessoas este mesmo comportamento, literalmente escondendo sua própria conduta reprovável atrás das máscaras do moralismo.
Mas o filme é realmente dominado pela presença das atrizes, principalmente a protagonista feita por Mari Oliveira e a personagem de Lara Tremouroux. A dinâmica das duas é sempre muito orgânica e ambas conseguem, nos instantes necessários, transitar de forma sóbria entre os temas mais sérios e os momentos em que a fantasia e o humor ganham mais espaço. A atriz principal, que dá vida a Mari, encara com muita competência a tarefa de conduzir a personagem ao longo de todo o filme, com suas contradições, descobertas e reviravoltas — o que foi fruto, segundo ela, de um trabalho de campo intenso em igrejas evangélicas para conhecer melhor este universo. Já a intérprete de Michele brilha pontualmente, como na cena em que relata o que aconteceu com Melissa, e apenas seu rosto e sua voz materializam a história de forma extremamente intensa ‒ mérito também do roteiro, que acertadamente confia na atriz e resolve manter o mistério sobre a verdadeira aparência de sua Medusa.
O roteiro também é muito bem-sucedido ao trazer como protagonista uma mulher negra cujo interesse amoroso é também um homem preto (Lucas, ótimo personagem de Felipe Frazão), sem que nada disso seja uma questão específica na história (o que infelizmente ainda é algo a ser pontuado na sociedade em que vivemos). Mari é uma personagem complexa, cujo bom desenvolvimento certamente se deve à própria intérprete, que já declarou em entrevistas ter recebido passe livre da diretora para ajudar na avaliação e nas ideias para a construção da protagonista.
No entanto, talvez as únicas falhas mais aparentes no filme sejam justamente relacionadas a duas personagens importantes que acabam sendo prejudicadas. No caso de Karen (Joana Medeiros), diretora do hospital em que Mari vai trabalhar, o roteiro parece não saber muito bem o que fazer. A ambientação fantasmagórica do hospital e uma cena específica dão espaço para atriz ter seu momento, mas o destaque dado a ela em seu primeiro encontro com a protagonista dá a entender que Karen será mais explorada no filme, o que acaba não acontecendo. Já no que diz respeito ao pastor Guilherme, personagem central dentro da construção da religiosidade evangélica no filme, o problema parece ser de escalação. Thiago Fragoso é um ator competente, mas acredito que para este papel seria imprescindível um profissional menos conhecido. Sendo um rosto muito reconhecível, o personagem acaba perdendo a personalidade própria e a credibilidade, ainda que se trate claramente de uma sátira a famigerados pastores evangélicos. Mesmo se esforçando para comprar o personagem, eu não conseguia deixar de pensar que estava vendo Thiago Fragoso interpretando Thiago Fragoso.
Mas “Medusa” consegue, e muito, superar quaisquer problemas e terminar como um grande filme sobre o Brasil contemporâneo. Me lembro de ter ficado especialmente feliz ao constatar, uma vez mais, que o país produz filmes de gênero que não devem absolutamente nada às melhores produções estrangeiras. E é mais significativo ainda que esses filmes sejam feitos por e sobre mulheres. “Medusa” termina com uma das melhores catarses que me lembro de ter visto recentemente, subvertendo a noção de histeria e relembrando como este conceito atravessa historicamente a descredibilização das experiências femininas e o controle sobre suas narrativas e corpos. Certamente, de agora em diante, sempre que ouvir Kate Bush eu me lembrarei de Anita Rocha da Silveira. Porém, e mais importante, sempre que ouvir o nome “Medusa”, voltarei a sentir o quão interessante, atmosférico e bem realizado é este filme que reafirma o poder do cinema de horror de direcionar seu (e nosso) olhar para os monstros verdadeiros que coexistem conosco. E de como gritar no cinema e na vida pode ser libertador. ■
MEDUSA (2021, Brasil). Direção: Anita Rocha da Silveira; Roteiro: Anita Rocha da Silveira; Produção: Vania Catani, Mayra Faour Auad, Fernanda Thurann; Fotografia: João Atala; Montagem: Marilia Moraes; Música: Anita Rocha da Silveira, Bernardo Uzeda; Com: Mari Oliveira, Lara Tremouroux, Joana Medeiros, Felipe Frazão, Bruna G, Carol Romano, João Oliveira, Bruna Linzmeyer, Thiago Fragoso, Inez Viana; Estúdio: Bananeira Filmes; Distribuição: Vitrine Filmes; Duração: 2h 3min.
filme Medusa
filme Medusa
filme Medusa
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