Você já experimentou parar, em meio à rotina diária, e olhar para algum elemento da natureza em seu entorno? Um galho no chão, uma poça de água refletindo a luz, uma fila de formigas andando pela terra? Se sim, você provavelmente terá percebido uma coisa: a natureza segue (ou pelo menos tenta seguir) seu ritmo, a despeito da cotação do dólar, do resultado do Mundial de Clubes ou de soldados se matando em conflitos bélicos causados por disputas de poder.
Parece ser desta premissa que “Nada de Novo no Front” (2022), dirigido por Edward Berger, parte ao adaptar o romance homônimo publicado no final dos anos 1920 pelo autor alemão Erich Maria Remarque, inspirado em suas próprias experiências como soldado alemão na Primeira Guerra Mundial. O filme abre e termina com planos de paisagens naturais, e estes momentos líricos de captura daquilo que há de mais prosaico (e perene) no mundo estão distribuídos ao longo de toda a obra, quase que na tentativa de salientar quão injustificada e incompreensível a guerra é, diante da fragilidade dos seres humanos quando comparados ao universo.
Na mais nova transmutação do livro para as telas, acompanhamos Paul Bäumer (o estreante Felix Kammerer, em atuação impressionante), jovem alemão que se junta aos amigos no alistamento para lutar na Primeira Guerra Mundial. Ele e seus companheiros ilusoriamente entusiasmados com o combate são mandados para a Frente Ocidental com o objetivo de dominarem o território francês. Entretanto, com o passar dos meses, os agora combatentes vão se tornando cada vez mais conscientes da brutalidade e do despropósito das batalhas que vão ceifando, uma a uma, a vida de seus colegas. Todo o horror da guerra de trincheiras é intercalado com as tensas negociações entre o governo alemão, que tenta acabar com o conflito, e as autoridades francesas, que procuram impor duras condições para a assinatura do armistício.
É sabido que uma das principais razões para a ascensão de Adolf Hitler, a eclosão da Segunda Guerra Mundial e o Holocausto foi justamente a derrota humilhante da Alemanha na Primeira Grande Guerra, quando milhões de vidas foram perdidas e outras tantas dramaticamente afetadas. Ou seja, hoje conseguimos assistir a “Nada de Novo no Front” à luz (aliás, sob as sombras) de toda a conjuntura macrossocial que seria consequência direta da Primeira Guerra. No entanto, o filme produzido e distribuído pela Netflix é muito eficiente ao nos apresentar uma perspectiva subjetiva, centrada nas pessoas que viviam aquele momento, até então sem precedentes.
É um olhar “de dentro”, próximo da violência radical das trincheiras e dos campos de batalha, algo que é muito resultante do primoroso trabalho das equipes de direção de arte, figurino e maquiagem ‒ mas principalmente da cinematografia, assinada por James Friend. São extremos sentidos do coração vazio da guerra. Já nos primeiros minutos essa abordagem fica clara, quando, após o início com os ambientes naturais, a câmera enquadra de cima o terreno repleto de cadáveres, onde os soldados anteriormente lutaram, se feriram mutuamente e morreram. Em um movimento de grua espetacular, vamos sendo conduzidos paulatinamente mais para baixo, até que o plano já transcorra no nível do chão, acompanhando os combatentes correndo, atirando, sendo atingidos, se desviando, se escondendo e caindo. Somos brevemente apresentados a Heinrich, um protagonista falso que não tardará a sucumbir em meio aos combates. Ou seja, é um mergulho, literalmente, do público no terreno do filme. Há diversos travellings para frente cumprindo esse mesmo papel ao longo da história. Logo depois desta introdução, uma montagem ágil faz o caminho das roupas de Heinrich, que chegarão aos novos alistados, em um ciclo perverso no qual os novos combatentes já começam a trajetória militar investidos materialmente na morte.
A partir daí, estaremos todo o tempo na frente ocidental. Em suas quase três horas de duração, existe no filme sempre um sentimento de que permanecemos dentro dos campos, juntos aos personagens. Provavelmente porque a câmera não para, seguindo de forma incessante e sempre muito próxima os movimentos dos soldados. O filme é hábil ao conseguir cobrir inúmeras facetas da experiência diária dos exércitos que lutavam na Guerra. Há numerosas cenas de tiroteios nas trincheiras, mas também dos soldados se abrigando nos bunkers, procurando por colegas, buscando comida, atacando e se defendendo no chão lamacento. A direção não dispensa o conteúdo gráfico ‒ vemos pessoas sendo explodidas e queimadas, por exemplo ‒, que é de fato perturbador, mas ao mesmo tempo a obra não se baseia apenas nisso. O filme também se detém na construção dos laços interpessoais entre os militares compatriotas e em como essas relações eram ao mesmo tempo fortes, pois necessárias para a subsistência física e mental daqueles homens, mas também fracas, uma vez que estavam ao sabor da insegurança que assombrava, letal e ininterruptamente, os jovens envolvidos no combate.
Sendo um longa-metragem sobre a guerra, “Nada de Novo no Front” poderia facilmente investir na espetacularização da violência, se valendo de recursos como a câmera lenta, o plano-detalhe e os cortes rápidos para apresentar uma espécie de “trem-fantasma” mórbido pelo campo de batalha. Porém, não é isso que acontece. Discordo até mesmo das opiniões que taxam o filme de apelativo ou explícito além do limite. É sintomático, por exemplo, como a direção de Edward Berger se fixa nos momentos mais impactantes apenas enquanto os próprios personagens estão voltados para os acontecimentos. Eu me lembro especificamente de um dos instantes mais desconfortáveis do filme, quando um tanque esmaga um combatente, e a câmera apenas enquadra a morte após o protagonista olhar para o colega — e no brevíssimo instante em que ele mantém a atenção naquele ponto. Estamos, na maior parte do tempo, juntos de Paul, e não simplesmente como espectadores voyeuristicamente privilegiados.
Acredito inclusive que o filme combina de forma muito acertada a exposição dos horrores da guerra com passagens mais figurativas que são tão ou mais eloquentes. Temos objetos (próprios, recebidos ou pegos pelos personagens) como os óculos, o cachecol, o cartaz e os pingentes de identificação, que servem como marcadores das ausências dos soldados que vão morrendo. Do mesmo modo, há um interessantíssimo uso metafórico de um inseto preso em uma caixa de fósforos: quando, em um certo momento, um personagem planeja seguir na carreira militar após o fim da Grande Guerra, Kat (Albrecht Schuch), um dos principais parceiros do protagonista Paul, é mostrado colocando o besouro dentro do pequeno compartimento, tornando visual a ideia de que aquele companheiro está se colocando em uma espécie de armadilha ou prisão da qual dificilmente irá escapar. Mais ao final do longa, quando o mesmo personagem morre, Kat liberta o inseto, sugerindo, alegoricamente, que a morte é a única capaz de trazer algum tipo de libertação para os combatentes, haja vista que a vida depois da guerra não vem livre de traumas profundos.
A imagem, aliás, é constantemente reforçada como o principal veículo de sentidos para o filme. É através da paleta de cores azulada e dos planos holandeses (ou inclinados) que sentimos a frieza e a instabilidade do dia a dia nas trincheiras, enquanto os tons de amarelo e alaranjado e os enquadramentos em ângulo normal predominam nas cenas que envolvem as autoridades francesas e alemãs, transmitindo o conforto daqueles que decidem, de maneira hipócrita, a continuidade ou não da carnificina. O filme também se vale, assim como o grande “Vá e Veja” (1985), de Elem Klimov, das lentes objetivas que engrandecem o rosto humano e assim evidenciam a perplexidade (compartilhada com o espectador) diante da barbárie. Em certos momentos, como na penúltima morte do filme, na floresta, o estilo de montagem picotado e descontínuo lembra muito o filme soviético e até mesmo a estética do cinema silencioso, construindo uma das cenas mais emblemáticas desta obra de Berger.
No entanto, “Nada de Novo no Front” se afasta de “Vá e Veja” ao se estender demais e perder um pouco o ritmo nos vários interlúdios que mostram as negociações. Embora seja uma subtrama interessante, fica a impressão de que muito daquilo poderia ser sintetizado em menos inserções, diminuindo um certo inchaço na duração que torna o filme aparentemente mais longo do que é de fato. Ainda na contramão do clássico de Klimov, a produção alemã (também britânica e estadunidense) parece não saber lidar muito bem com a trilha musical, cujo tema principal, grave e intermitente, é usado à exaustão, quase na tentativa de ecoar uma gravidade que já está dada, tanto imagética quanto dramaticamente.
Ainda assim, o final da história é poderoso o suficiente para evocar um caráter cíclico que, a bem da verdade, está presente desde o início, quando acompanhamos o soldado que é morto e cujas roupas vão ser entregues a Paul. Nesse ínterim, o sol continuou a se pôr, as árvores permaneceram fazendo sombra ao solo e estrelas seguiram sendo obscurecidas a cada manhã. O filme claramente opõe o universo que nos dá origem a um certo ímpeto humano destrutivo. Se a natureza tem um ciclo que faz renascer a vida, o ciclo da guerra apenas coleciona mortes, das pessoas, dos seus sonhos e do futuro. A frente de batalha continua fundamentalmente a mesma há milênios e será sempre um atestado dessa falta de propósito. Embora o filme traga um renovado senso de urgência, a guerra sempre foi vazia. Nenhum patriotismo pode ser prova em contrário, nem no front, nem em lugar algum. Que o cinema siga, enquanto necessário, reafirmando isso. ■
NADA DE NOVO NO FRONT (Im Westen nichts Neues/All Quiet on the Western Front, 2022, Alemanha, França, EUA). Direção: Edward Berger; Roteiro: Edward Berger, Ian Stokell, Lesley Paterson (baseado no livro de Erich Maria Remarque); Produção: Malte Grunert, Daniel Dreifuss, Edward Berger; Fotografia: James Friend; Montagem: Sven Budelmann; Música: Volker Bertelmann; Com: Felix Kammerer, Albrecht Schuch, Daniel Brühl, Aaron Hilmer, Moritz Klaus, Adrian Grünewald, Edin Hasanovic; Estúdio: Amusement Park, Netflix; Distribuição: Netflix; Duração: 2h 27min.
filme nada de novo no front
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Jornalista formado pela UFMG e crítico de cinema, aproveita qualquer oportunidade para falar sobre sua paixão, a sétima arte. Com passagem pelo Curso Técnico em Química do CEFET-MG, iniciou os estudos de forma bem parecida com o começo do próprio cinema: em um laboratório manipulando substâncias químicas. Por quase dois anos, foi estagiário na RecordTV Minas, tendo uma rotina quase tão louca quanto a dos protagonistas de “Rede de Intrigas”. Participou do 6º Talent Press Rio e integrou a Assessoria de Comunicação da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte.