“Vá.”
O diretor soviético Elem Klimov nos leva ao centro da barbárie que tomou conta da Bielorrússia (atual Belarus) durante a Segunda Guerra Mundial. Em “Vá e Veja” (Idi i smotri, 1985), somos transportados ao ano de 1943. Acompanhamos a trajetória do adolescente Flyora, que deixa sua aldeia após encontrar um velho fuzil, e se junta ao movimento guerrilheiro de resistência contra os nazistas. Mais do que apenas assistir à sucessão de horrores que o jovem presencia e vivencia, somos jogados dentro deste mundo de caos e destruição, e constantemente conduzidos a marchar, interromper o passo e olhar. Os frequentes e longos close-ups em rostos transtornados, a câmera na mão cambaleante em meio à correria desenfreada, o desenho de som que nos torna surdos quando o personagem perde momentaneamente a audição… Tudo isso nos puxa para dentro do filme, fazendo do imperativo do título um convite cruel ao espectador, seguido de outro chamamento igualmente impiedoso:
“Veja.”
O último filme de Elem Klimov se enquadra naquela categoria de obras que eu considero desconfortáveis mas indispensáveis. Assim como “12 Anos de Escravidão” (12 Years a Slave, 2013), de Steve McQueen, por exemplo, “Vá e Veja” não hesita em mostrar imagens incômodas em planos longos. Devo dizer que minha relação pessoal com essas retratações de violências extremas é quase sempre dúbia. Até que ponto uma imagem brutal vista na tela é justificável e se mantém atrás de uma linha ética que separa a consciência pelo choque da exploração gratuita de traumas? Sinceramente, não sei responder. E tendo a acreditar que isso varia de filme para filme, e também de pessoa para pessoa, dependendo até mesmo do momento pelo qual o espectador está passando. Mas, não resta dúvida para mim, filmes como “Vá e Veja” são necessários, e por um motivo muito simples. Por mais longe que o filme vá, por mais perturbadoras que suas situações sejam, nada daquilo se compara ao terror da realidade que o filme convoca. E, como espectadores distantes no tempo e no espaço, mesmo que o filme fosse um documentário (na acepção mais tradicional dessa palavra), ainda não teríamos a mais remota dimensão real do que foi a selvageria praticada pelos nazistas em território bielorrusso. Afinal de contas, como ver o que já passou, o que não nos afetou diretamente, o que já se tornou passado a milhares de quilômetros? Por isso considero fundamental a franqueza do filme de Klimov. Recusando o simples choque pelo choque, o cineasta se demora sobre as ações, tanto boas quanto ruins, impelindo a audiência a estar ali, a colocar os pés naquele chão.
“Vá.”
Em um determinado momento do filme, Flyora e Glasha, a jovem que ele conhece no campo de treinamento da resistência, precisam ir de um ponto a outro. Eles estão de volta à vila onde o garoto morava. Vendo que aparentemente sua mãe e suas irmãs não estão lá, o adolescente resolve procurar além do pântano que fica perto da casa. Aí se segue uma cena extensa, da qual destaco um plano longuíssimo (cerca de 2min06s) que mostra os personagens passando com extrema dificuldade pela lama para chegar à terra firme. Sem abandonar a narrativa, o diretor oferece um momento simbólico que sugere a experiência excruciante do que significa estar imerso em uma guerra, e também da jornada do próprio protagonista, que sairá dali exausto e marcado, tal qual os responsáveis pela obra. Elem Klimov e o escritor bielorrusso Ales Adamovich construíram o roteiro do filme a partir de suas próprias memórias enquanto jovens em meio à Segunda Guerra: Adamovich como jovem mensageiro e guerrilheiro na Bielorrúsia ocupada, e Klimov, sua mãe e seu irmão bebê como fugitivos evacuados em uma balsa pelo rio Volga durante a batalha de Stalingrado. Talvez por isso o filme nos ordene de modo tão enfático:
“Veja.”
Devo confessar que, a partir do terço final do filme, eu já estava em estado completo de catatonia, com os olhos e a boca paralisados, totalmente incapaz de virar o rosto, muito embora o filme apresente uma sequência com potencial de fazer qualquer um desviar os olhos. Aí está um dos tantos fascínios que “Vá e Veja” me desperta. Este é o tipo de filme que mantém, ao mesmo tempo, um magnetismo e uma repulsa sobre o olhar do espectador. Talvez aí se possa falar novamente dos planos fechados e longos, da fotografia realista, das imagens simbólicas, do uso das lentes split diopter (que criam a ilusão de foco profundo) para colocar em foco acontecimentos e reações, além de outros vários elementos que conferem essa atmosfera etérea e poética ao longa. Entretanto, por mais que para analisar seja necessário decompor o filme, pessoalmente acredito ‒ aqui amparado por considerações do crítico francês Marcel Martin ‒ que obras como esta de Klimov guardam algo quase místico que, para além da forma e do conteúdo, sustenta a alma do filme (ou a magia, ou o ser). Algo que eu nunca sei exatamente o que é, mas sei o poder que exerce sobre mim. Algo que não está exatamente neste enquadramento ou naquele, mas que paira sobre a obra como um todo. Algo que aponta para a vida fugaz e a guerra eterna. Na sequência mencionada, dezenas de moradores de uma vila são trancados em um celeiro e queimados vivos por militares alemães. Amplificando o sadismo do genocídio, os aldeões são informados de que quem deixar as crianças no celeiro pode sair. E é aí que nosso protagonista vai.
“Vá.”
Flyora escapa, mas a devastação já está feita. Contrariando a tendência muito vista no cinema comercial, em momento algum a trajetória do menino é suficiente e termina em si mesma, ainda que o filme russo nos faça experienciar a guerra sob o ponto de vista específico e subjetivo dele. Quando o protagonista está na iminência de escapar do celeiro, por exemplo, torcemos para que ele saia, mas o filme se encarrega a todo momento de nos lembrar (pelo desenho de som que acentua na mixagem os gritos de desespero) das crianças, idosos e outras pessoas que lá permanecem para morrer terrivelmente. Vamos com ele para fora, mas de que adianta isso? Assim como o personagem, o espectador é levado a perder o chão. E sou obrigado a ressaltar: que ator fabuloso é Aleksei Kravchenko! Com poucas linhas de diálogo ao longo de todo o filme, o intérprete de Flyora consegue transmitir, em olhares densos e expressões faciais de puro horror, o que o personagem está vivendo e sentindo, em uma performance digna do cinema silencioso. O que é um grande desafio, já que em momentos anteriores do filme acompanhamos o jovem em instantes de alegria e inocência, sentimentos transmitidos à audiência pelos mesmos olhos grandes e rosto eloquente. A queda do personagem é perfeitamente ilustrada pela sucessão de feições do ator e, de certa forma, é como se estivéssemos passando por uma galeria de retratos expressionistas à lá “O Grito”, de Edvard Munch. Mas vemos muito mais.
“Veja.”
Dentre os inúmeros planos belamente construídos ao longo das mais de duas horas de “Vá e Veja”, dois se destacam pela brutal singeleza. Se a caminhada exasperada na lama e o fogo inclemente na carne humana dão uma visão direta e inconteste da destruição, outros dois deixam clara a desesperança que impera em solo bielorrusso. Não por acaso, ambos trabalham com o olhar. No primeiro, a vaca que Flyora e seus companheiros conseguiram levar de uma fazenda é morta em um bombardeio, e o filme se detém, por alguns poucos segundos, no olho inquieto do animal em seus derradeiros suspiros. Ecoando os frequentes usos de bois e vacas no cinema soviético, o olhar triste capturado pela câmera dá a ver não apenas um animal abatido, mas toda uma sociedade cansada e combalida pelo conflito assimétrico de forças. Já o outro plano, igualmente implacável, surge logo após o massacre na aldeia, quando os soldados alemães colocam uma idosa deitada em uma cama no meio do que sobrou da destruição, com as chamas ainda altas ao fundo. Descendo um pouco pelo continente asiático, ouso dizer que o rosto da senhora e o enquadramento usado são muito similares às escolhas feitas pelo cineasta indiano Satyajit Ray para filmar a morte da personagem de Chunibala Devi em “A Canção da Estrada” (Pather Panchali, 1955), primeiro filme de sua tocante Trilogia de Apu. Mas, se no filme bengali a partida é individual, no de Klimov vemos a idosa ainda viva, mas o que morre em frente aos seus olhos é a terra, onde provavelmente ela nasceu e cresceu. No final das contas, a morte dela é o fim da memória e da própria vila.
“Vá.”
O final da obra soviética vai em uma direção não menos magnífica. Numa sugestão de ciclicidade da experiência do protagonista, ouvimos outro combatente “novato” ser chamado para integrar a tropa. E, assim como no icônico final de “A Malvada” (All About Eve, 1950, Joseph L. Mankiewicz), sabemos que vai tudo começar de novo. Mais à frente, Flyora encontra um retrato de Adolf Hitler em um lago e atira furiosamente no quadro, à medida que vamos vendo fusões de imagens de arquivo retrocedendo da guerra até a infância do Führer. Através da construção visual, o filme dá ao jovem a breve oportunidade de obliterar tudo que foi erguido pelo líder nazista. Um palpite: Quentin Tarantino certamente levou essa cena de reescrita fílmica da história bastante ao pé da letra com seu “Bastardos Inglórios” (Inglourious Basterds, 2009). Mas, voltando à revanche do protagonista soviético, é justamente no momento em que Hitler aparece como criança que o jovem bielorrusso cessa os disparos. A mensagem é clara: existe um limite para a barbárie. Mesmo no momento da catarse simbólica, a obra nos convida à reflexão, como já havia feito antes. Devo dizer que o filme feito por Elem Klimov, ainda que fosse ruim, teria minha recomendação, para que cada um avalie segundo seu próprio juízo. Mas, sendo a joia que é, minha conclusão não poderia ser expressa de outra forma, e com meus votos mais enfáticos:
“Veja.”
VÁ E VEJA (Idi i smotri/Come and See, 1985, Bielorrússia, Rússia, Alemanha). Direção: Elem Klimov; Roteiro: Ales Adamovich, Elem Klimov; Produção: Elem Klimov; Fotografia: Aleksei Rodionov; Montagem: Valeriya Belova; Música: Oleg Yanchenko; Com: Aleksei Kravchenko, Olga Mironova; Estúdio: Belarusfilm, Mosfilm; Distribuição: Janus Films, CPC-UMES Filmes; Duração: 2h 22min.
filme vá e veja
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Jornalista formado pela UFMG e crítico de cinema, aproveita qualquer oportunidade para falar sobre sua paixão, a sétima arte. Com passagem pelo Curso Técnico em Química do CEFET-MG, iniciou os estudos de forma bem parecida com o começo do próprio cinema: em um laboratório manipulando substâncias químicas. Por quase dois anos, foi estagiário na RecordTV Minas, tendo uma rotina quase tão louca quanto a dos protagonistas de “Rede de Intrigas”. Participou do 6º Talent Press Rio e integrou a Assessoria de Comunicação da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte.