"Entre Mulheres" (Women Talking, 2022), de Sarah Polley - Foto: Divulgação
"Entre Mulheres" (2022), de Sarah Polley - Foto: Divulgação

“Entre Mulheres”: navegar é preciso

O nascimento da força feminista, como uma semente ainda sem nome. É essa a premissa de “Entre Mulheres” (2022), de Sarah Polley, filme baseado no romance homônimo de Miriam Toews, publicado em 2018, e candidato ao Oscar 2023 nas categorias Melhor Filme e Melhor Roteiro Adaptado.

Em um vilarejo menonita, um grupo de mulheres reúne-se para decidir sobre o enfrentamento de um inimigo comum: seus estupradores¹. São os homens que vivem na aldeia e que arbitrariamente estupram as mulheres, exercendo total domínio sobre elas após droga-las. O grupo pratica uma religião adaptada do cristianismo, formada após a Reforma Protestante. Tanto na ficção, como na realidade, acreditam no pacifismo como preceito de vida. Essa crença basilar será o grande dilema daquelas mulheres. Qual a linha correta a se traçar entre o pacifismo que leva ao reino dos céus e a vida digna na terra?

A sociedade retratada está à parte do mundo moderno (na obra, o ano corrente é 2010) e a comunidade vive em seu próprio século, o que é percebido pelas cores da obra. As mulheres são absolutamente submissas, proibidas do ensino – não aprendem ler ou escrever, pois são atividades destinadas aos homens. A elas restam os afazeres domésticos e a geração da vida – nem sempre contando com suas vontades.



A obra é narrada por Autje (Kate Hallett), uma das meninas mais jovens da comunidade. Seu objetivo é contar a história para a filha de Ona (Rooney Mara), uma criança ainda não nascida à época dos acontecimentos. Ela transcreve fatos e faz justas reflexões sobre os dias que precederam a maior decisão da vida das mulheres menonitas: escolher entre ficar e lutar ou partir.

A maior parte do filme é centrada nos diálogos nos quais as mulheres das mais diversas faixas etárias decidem qual a melhor saída para a situação vivenciada. O objetivo é comum, ainda que nem todas compactuem com as mesmas formas de ação. São essas discussões que tornam o filme interessante e bem adaptado, cujo conteúdo é sutil e, ao mesmo tempo, impactante.

Naquele grupo existem mulheres que desejam lutar, que entendem a importância do pacifismo para a salvação eterna, mas que não admitem viver uma vida de humilhações – a exemplo de Salome (Claire Foy). Outras suscitam a ideia de que a fuga é a melhor opção, impedindo que a raiva que sentem transborde e as leve à condição de homicidas, pecadoras. Essa bandeira é sustentada por Greta (Sheila McCarthy) que, para expor seus argumentos, sempre faz alusão às duas éguas que possui. Entre o cômico e o desesperador, demonstra a faceta humana de apoiar suas próprias convicções a partir do conhecimento disponível para si, mesmo que seja o decorrente do comportamento animal. Outra mulher do grupo que desponta com ideias intrigantes é Ona (Rooney Mara). Seus contrapontos são pertinentes e provocativos, evidenciando um desejo de aprofundamento de sentidos para o movimento. Por outro lado, há a mais cética de todas, Mariche (Jessie Buckley), a qual parece desacreditar em qualquer solução, senão a manutenção do status quo daquela comunidade, ainda que esteja em sofrimento. Ela transmite a falta de identidade e esperança, após anos de traumas, acreditando que o destino e a bíblia reservaram aquela vida para aquelas pessoas. O núcleo diversificado traz uma tonalidade perfeita para a trama e o espectador consegue nutrir uma empatia por todos os vieses, inclusive por aquele que defende os homens como vítimas do próprio ambiente e do sistema.

Nesse sentido, o filme ousa ao propor que até mesmo os homens potencialmente estupradores do vilarejo são também vítimas do ambiente e dos costumes sobre os quais foram criados, sendo submetidos a uma doutrinação que os alija do mundo externo. Afinal, aquelas mulheres também eram mães de filhos homens. E, ainda que muitos daqueles filhos tivessem sido indesejados, elas assumiram um compromisso de amor com as crianças, de modo que há um conflito lancinante em imaginar que seus próprios filhos se tornariam os homens que elas tanto repudiam.

O filme é primoroso ao transmitir toda a dor e revolta sem mostrar cenas explícitas de violência ou de escancarar o rosto dos homens, algozes da trama. Não é necessário. A atmosfera criada consegue carregar o fardo da melancolia e da angústia, enquanto as marcas da violência estão por toda parte – nos corpos, no sangue e até na própria gravidez. Inclusive, a música tema “Daydream Believer” (The Monkees), tem uma razão de ser: menciona uma mulher (“sleepy Jean”) que acorda de um devaneio.

O único homem que tem participação relevante em cena é August (Ben Wishaw). Sua mãe foi expulsa da comunidade por questionar as situações ali vivenciadas. Em razão disso, August pôde estudar e tornou-se professor, retornando à comunidade para ensinar os meninos. Em apoio às mulheres, ele, como única pessoa que sabe ler e escrever entre elas, fica responsável pela ata da reunião e registra os prós e contras das sugestões levantadas. Além disso, não esconde seu amor por Ona e seu desejo de casar-se com ela. Ela, entretanto, não se vê como uma mulher casada e, apesar de admirá-lo e de tratá-lo afetuosamente, rejeita sua proposta de casamento. Ona é o exemplo de uma mulher que foi obrigada a engravidar, mas que não tem qualquer aptidão para a figura padrão da mulher-esposa.

Outro tema bastante polêmico, mas que é tratado com maestria na obra, é a presença de uma personagem transexual, Melvin. Quando ainda não se identificava como homem, também foi violentada. O trauma o fez jurar que nunca mais falaria sobre a situação ou sobre qualquer outro assunto. Dessa forma, cala-se completamente, só admitindo conversar com as crianças; para ele, possivelmente, uma forma de redenção ou crença de que seriam os únicos seres merecedores de sua atenção naquela comunidade que não o compreende. Ele nunca se sentiu como uma mulher e assume a identidade de homem trans, ficando à margem entre os adultos. Todos esses tópicos sensíveis são transmitidos com o respeito adequado e a força coerente.

A decisão do grupo de mulheres, afinal, é tomada aos apuros, pois os homens estavam voltando para casa. Partir, sempre partir, foi o que restou a elas. Prepararam-se para rumar ao desconhecido, que, ao menos, parecia promissor, pois existia uma chance maior, ainda que aparentemente remota, de sucesso. Ficar seria arriscar a manutenção do sofrimento ou sujeitar-se ao pecado do homicídio. Unidas apenas pela força da indignação, da vontade de criarem as próprias regras sobre seus corpos e destinos, rumam apenas com uma sabedoria ancestral, seguindo o caminho pela indicação das estrelas no céu e com a esperança de que seus filhos, ao crescerem, pudessem ter um futuro diferente, criados e transformados pelo amor. Navegar foi preciso, viver não era preciso, a “esperança no desconhecido é boa”. Afinal, é a história da criação da semente feminista, mesmo sem conhecimento da causa, capaz de florescer, emergir da compreensão da dor de estar impedida de escolher o próprio destino.

[1] O livro é baseado em acontecimentos reais ocorridos na Bolívia.

Nota: