"Tótem" (2023), de Lila Avilés - Divulgação
"Tótem" (2023), de Lila Avilés - Divulgação

CinéLatino Toulouse: A morte e todos os seus amigos

Sol deseja deter a morte. Irene abraça a morte. Theo, como Derek Jarman antes dele, quer foder com os mortos. Três personagens diferentes. Três países diferentes. Três filmes completamente diferentes. Mas apenas uma América Latina, revelada em toda a sua violenta e rica complexidade na 35ª edição do CinéLatino, festival francês dedicado à produção latina contemporânea, em Toulouse.

Morte, ausência, a perda de alguém ou algo querido, e como lidar com isso, foram um tema recorrente nos filmes presentes na competição oficial do evento neste ano. Foi uma boa oportunidade para refletir sobre como o cinema lida com a morte, como a apresenta, supera, diverte-se com ela ou a subverte. Se Deleuze diz que arte é aquilo que resiste – resiste ao tempo, ignora a mortalidade –, como isso é verdade (ou não) no cinema? O trio de longas citados acima, os melhores da competitiva, responderam a essa pergunta de formas bastante diversas.

O primeiro deles é “Tótem”, também exibido na seleção oficial do Festival de Berlim deste ano. Nele, acompanhamos a pequena Sol (Naíma Sentíes) durante um dia em que ela e sua família preparam uma festa de aniversário para seu pai, Tona (Mateo Garcia), acometido por um câncer e que claramente não tem muito mais tempo de vida. É, acima de tudo, um dia de negação. E a negação tem muitas formas. Um bonsai. Um bolo interminável. Um balão perigoso e desastroso. Um momento nonsense e obviamente inútil de brujería.



Em todas essas (muitas, talvez demais) metáforas visuais, a diretora mexicana Lila Avilés permite que seus personagens se dediquem a suas versões particulares de luto. Fazer um bolo, preparar um bonsai ou lançar um balão são modos de não encarar a morte de frente, de não ter que lidar com o inevitável, o implacável, com a crueldade incurável do acaso. É uma maneira de viver na irrespirável presença da morte.

O montador Omar Guzmán tem que servir e equilibrar todos esses personagens e momentos – e às vezes ele (e o filme) sofre para dar conta disso, principalmente quando amigos que o espectador não sabe exatamente quem são chegam no ato final da festa, e o longa quase perde o foco. “Tótem” funciona melhor, porém, quando se concentra na pequena Sol. Ela não está em negação. Sabe perfeitamente o que está acontecendo, quer que seu pai não morra e é muito clara sobre isso. Seu desejo é improvável, mas é nela que Tona irá sobreviver. Na forma como Sol olha para uma pintura que o pai fez especialmente para ela (e vai olhar de novo, e de novo, e de novo), na sua memória dele e daquele dia, que ficará para sempre dentro dela – às vezes mais forte, às vezes mais distante – como um filme.

Farsa medieval

No outro extremo do espectro, está o brasileiro “Carvão”, filme que venceu o prêmio do júri Fipresci, da crítica internacional, do qual fui membro. Seus personagens não querem negar ou ignorar a morte. Eles a abraçam, como uma forma de sobreviver. Para sustentar seu filho, Jean (Jean de Almeida Costa), e seu marido alcoólatra, enrustido e semi-inútil, Jairo (Rômulo Braga), Irene (Maeve Jinkings) mata seu pai, um idoso em estado vegetativo, e o substitui por Miguel (César Bordón), um traficante de drogas que precisa se esconder, em troca de dinheiro.

O filme se passa num rincão remoto não-identificado no interior do Brasil, que poderia muito bem ser uma floresta na Idade Média – porque a trama é essencialmente uma farsa medieval perversa. Se o surgimento do Carnaval remonta àquela época como um interlúdio de inversão/subversão – os ricos se vestem de pobres, os homens de mulheres, as crianças de adultos – em que as regras cristãs não se aplicam, “Carvão” opera esse mesmo feito em sua narrativa. Uma vez que seus personagens abandonam sua rígida moralidade católica logo no início do longa, os homens são revelados como fracos/vulneráveis/gays, as mulheres são chefes de família, quase masculinas, propensas ao crime e sem muitas frescuras com violência, e as crianças são tratadas como adultos. Levando essa analogia ainda mais além, talvez eles estejam todos aprisionados em um dos círculos do inferno de Dante – representado pela casa minúscula, bagunçada, feia e pouco iluminada, da qual o filme quase nunca sai – e nós estamos presos lá com eles.

"Carvão" (2022), de Carolina Markowicz - Foto: Pandora Filmes/Divulgação
“Carvão” (2022), de Carolina Markowicz – Foto: Pandora Filmes/Divulgação

“Carvão” é um filme sufocante, amoral e desconfortável que combina de forma quase inusitada uma certa estética social-realista do cinema independente contemporâneo com uma trama bastante ficcional. Há um olhar dirigido a pessoas pobres, em locação, com figurinos e design de produção muito naturalistas e autênticos, porém a cineasta Carolina Markowicz não recorre a longos planos-sequência nem à atitude documental condescendente de “pobrezinhos, olha como eles sofrem”. O longa tem uma decupagem e uma mise-en-scène bem clássicas, que se valem das fortes atuações de seu elenco para vender os extremos de sua narrativa farsesca, o que permite ótimos momentos de humor macabro – como quando Irene e Miguel têm uma discussão (in)tensa e importante e, quando o traficante sai do quadro, vemos que o inútil e preguiçoso Jairo dormia no sofá o tempo todo. Ou quando a diretora da escola sugere, após Jean tentar comprar drogas para Miguel, que o problema é que se tratava de cocaína, e não maconha – o que, aos 9 anos, seria mais aceitável ou compreensível.

E Jean, como Sol em “Tótem”, é o centro moral do filme. Ele participa de todos os planos, esquemas e delitos de seus pais, mas é a única voz que realmente aponta a hipocrisia das ações deles. A melhor cena do longa é o garoto parado na porta da casa, enquanto Irene e Jairo praticam um homicídio necessário (ou não?), porque Jean não está apenas observando – ele está vigiando, para garantir que ninguém venha ver o assassinato de alguém a quem ele acabou de dar um presente muito afetuoso e genuíno. Está aprendendo que, no universo de “Carvão”, é matar ou morrer. Contudo, não é Miguel quem transforma aquela família em assassinos. A exemplo do ex-presidente Jair Bolsonaro, ele é apenas uma oportunidade para que o mal que sempre esteve dentro deles venha à tona e se expresse, contaminando permanentemente o resto de suas vidas com manchas de morte e sementes de dúvida sobre quão perversas as pessoas podem realmente ser.

Quimeras

O último dos três é “Anhell69”. O filme do diretor colombiano Theo Montoya é uma surra brutal e niilista de cinema queer que existe na linha tênue entre a vida e a morte. A produção é uma elegia a um longa de ficção que ele nunca chegou a fazer, mas é também – e principalmente – uma elegia a todos os amigos que iriam colaborar com ele naquele filme e que faleceram desde então.

O tal longa era uma espécie de ficção científica B sobre uma distopia queer em que pessoas frequentam festas underground em busca da prática proibida de fazer sexo com fantasmas. E Montoya, como Derek Jarman e o Novo Cinema Queer dos anos 1990, agora usa “Anhell69” para uma última foda com (literalmente) os fantasmas de seus amigos – no sentido de ter uma chance derradeira de desfrutar de um momento lascivo, desafiador, arruaceiro e provocativamente não-normativo com eles/as/xs. Se todos/as/es estão morrendo – e nunca sabemos exatamente por quê: Covid? Overdose? Violência homo/transfóbica? Suicídio? Todas as anteriores? Não importa –, o cinema passa a ser a única coisa que vive, que resiste. Um “lugar para chorar”, como o diretor diz no início do filme, mas também um espaço para desafiar a morte, zombar dela, olhar e cuspir na cara dela, depois fodê-la para tentar anestesiar a dor.

"Anhell69" (2022), de Theo Montoya - Divulgação
“Anhell69” (2022), de Theo Montoya – Divulgação

Montoya é de Medellín, uma cidade que, segundo ele, não tem horizonte, nem saída. Um lugar assombrado pela ausência de gerações de pais assassinados pela violência do tráfico e dos cartéis, de onde os jovens sonham desesperada e inutilmente em escapar. “Anhell69” torna-se, assim, um longa de quimeras. Um altar lindo e violentamente doloroso para todos esses espectros, essas vidas abreviadas cedo demais, esses sonhos nunca realizados, obras de arte nunca criadas, esses momentos de alegria, liberdade e possibilidade nunca realmente vividos.

Diante de todas essas impossibilidades e potenciais irrealizados, o cinema se revela um último recurso, uma última chance de (algum tipo de) sobrevivência. E o filme de Montoya se transforma no que ele chama de “experiência de cinema trans”: uma ficção irreverente no corpo de um documentário angustiante, uma realidade desoladora no corpo do cinema como um ato de fabulação e resistência. ■

O crítico viajou a convite do 35º CinéLatino Rencontres de Toulouse.