Embora o objetivo central dos filmes de terror geralmente seja gerar medo (ou angústia, repulsa, choque, desconforto) no público, quando nos acostumamos a ver filmes do gênero é comum que estas emoções extremas se tornem não tão frequentes quanto aquelas vividas na época em que éramos crianças, por exemplo. É justamente por isso que costumo valorizar muito o reflexo de virar o rosto ou contorcer o corpo durante a sessão de um filme de terror. Estas manifestações físicas de sentimentos marcaram minha experiência com “A Morte do Demônio: A Ascensão”, mais recente longa da franquia “Evil Dead”, iniciada nos anos 1980 por Sam Raimi.
O cineasta e o astro da trilogia original, Bruce Campbell, aparecem aqui apenas como produtores executivos, mas a obra já começa homenageando os filmes clássicos. Dirigido e roteirizado por Lee Cronin, “A Morte do Demônio: A Ascensão” se inicia com a célebre câmera flutuante de Raimi passando por um lago até quase colidir com uma jovem. É então que descobrimos que o plano fantasmagórico não era bem aquilo a que estávamos acostumados. Mas a ameaça não tarda a aparecer, dentro da cabana, quando o roteiro faz um paralelismo interessantíssimo com passagens de “O Morro dos Ventos Uivantes”, escrito por Emily Brontë.
O longa, no entanto, não será ambientado em uma cabana, como o foram seus antecessores. O novo “A Morte do Demônio” segue uma certa tendência atual de mover as franquias de terror para os centros urbanos dos Estados Unidos. Embora “O Bebê de Rosemary” seja um exemplar precoce do horror nas grandes cidades, os anos 1970, 1980 e 1990 foram marcados por obras que levaram as ameaças para o campo, o subúrbio ou as locações isoladas. Na esteira de “Pânico 6”, ambientado em Nova York, “A Ascensão” escolhe Los Angeles para guardar o lendário Necronomicon. O filme segue Beth (Lily Sullivan), recém-chegada na cidade onde sua irmã mais velha, Ellie (Alyssa Sutherland), cria os três filhos, Kassie (a ótima estreante Nell Fisher), Bridget (Gabrielle Echols, insuportavelmente blasé) e Danny (o inexpressivo Morgan Davies). A família vive em um prédio já decrépito, mas a situação dos personagens se tornará ainda mais incômoda após a entidade guardada no Livro dos Mortos ser libertada e infestar o edifício com os incontroláveis deadites.
Cheio de ótimas frases de efeito, muito sangue e vítimas possuídas que contorcem o corpo acrobaticamente, “A Morte do Demônio: A Ascensão” demonstra um relativo domínio de Lee Cronin sobre questões importantes do horror contemporâneo, dos clássicos do gênero e da franquia “Evil Dead”. Em primeiro lugar, o longa é bem-sucedido ao transferir a trama de uma cabana no meio do nada para um apartamento em uma grande cidade. Seria anacrônico pensar que em 2023 o público ainda compraria a imprudência característica nos filmes dos anos 1980, quando jovens iam sozinhos para um casebre isolado sem nenhuma justificativa plausível. Recuperar este enredo atualmente funciona apenas na chave da paródia, como acontece em “O Segredo da Cabana” (2011), e o humor é algo no qual este novo “Evil Dead” definitivamente não está buscando investir. Outro ponto positivo do longa é a forma encontrada pelo roteiro para que os personagens encontrem o Livro dos Mortos, a partir de determinado acontecimento que torna a escolha específica por Los Angeles ainda mais justificada.
A trama também é competente ao lançar, ao longo da narrativa, vários elementos que serão recuperados e úteis depois. Há objetos como a tesoura de Ellie e a boneca decapitada da filha caçula, Kassie, que são estabelecidos no início e se tornam importantes na luta dos protagonistas contra a presença maligna. São também numerosas as informações eventualmente mencionadas pelos personagens e que se revelam cruciais tanto para a sobrevivência da família, quanto para o avanço da entidade, a exemplo da experiência de Beth como técnica de som ou do gato do vizinho que habitualmente anda pelos dutos de ar do edifício.
No entanto, se nestes aspectos o roteiro se mostra consistente, em outros a escrita de Lee Cronin deixa bastante a desejar, principalmente quando se analisa o comportamento dos personagens. Ellie, por exemplo, não demora nem mesmo alguns minutos para ignorar uma orientação importante que ela mesma havia dado aos filhos, sem nenhum motivo razoável. Kassie também demonstra transitar entre uma ação perigosamente inconsequente (o que é compreensível, por se tratar de uma criança) e, instantes depois, um grau de maturidade incompatível com a atitude que ela havia acabado de tomar. Já a entidade parece não ter muitas regras definidas: ela é capaz de matar várias pessoas em poucos segundos, e aparentemente é imortal, mas uma simples porta trancada impede sua entrada no apartamento dos protagonistas. Mas, justiça seja feita, “A Morte do Demônio: A Ascensão” não é o primeiro filme da franquia a dispensar uma coerência maior na delimitação das normas que regem a ameaça.
Por outro lado, a indefinição ideológica da obra torna difícil qualquer tipo de condescendência. À exceção da infame cena de estupro do primeiro filme (“Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio”, de 1981), a franquia “Evil Dead” não é conhecida por incluir questões sociais ou temáticas consideradas tabus em seus filmes. Entretanto, o novo longa ensaia sutilmente algumas incursões por temas atualmente em pauta no debate público, e nisso ele parece fazer coro ao recente remake “O Massacre da Serra Elétrica: O Retorno de Leatherface” (2022), dirigido por David Blue Garcia e lançado pela Netflix.
Infelizmente, ambos os filmes falham na abordagem, e acabam pendendo muito mais para o lado conservador, embora possa parecer diferente em um primeiro momento. Bridget, a filha mais velha de Ellie, por exemplo, é qualificada como uma jovem progressista, com ideais feministas e defesa concreta de minorias étnicas e sociais. O primeiro vizinho a aparecer para ajudar os protagonistas, Gabe (Jayden Daniels), é um jovem negro cujas ações apontam inicialmente para uma agência importante ao longo do filme. Ele é justamente quem censura outro vizinho quando este faz menção de pegar uma arma para lutar contra a versão possuída de Ellie. A própria Ellie, por sua vez, se refere aos filhos como sanguessugas quando possuída pela entidade, e sua caracterização pré-morte deixa implícito tanto um comportamento relapso quanto um certo cansaço em relação à maternidade. Beth chega também com uma subtrama de gravidez e pede a ajuda da irmã, deixando muito implicitamente no ar a ideia do que poderia vir a ser um aborto.
Mas o filme se encarrega de punir e “colocar em seu lugar” todos estes personagens que exibem qualquer traço de inconformismo ou inadequação com o estado de coisas hegemônico. Ellie é a primeira ser possuída, Bridget morre queimada, Gabe é o primeiro a ser assassinado por Ellie, a arma é fartamente usada e salva a vida dos protagonistas diversas vezes, e Beth termina o filme sedimentando um laço materno fortíssimo antes mesmo de dar à luz sua criança. Obviamente, estes elementos não seriam objeto de questionamento se não estivessem todos aglutinados na narrativa, ou ainda, se o próprio filme não fizesse questão de ostentar um suposto posicionamento político que é, no entanto, contrariado reiteradas vezes pelos caminhos que a obra toma.
O saldo de todos estes “detalhes” indica um filme cujo discurso soa, sobretudo, desonesto, por querer vender ideias que não parece defender de fato. Ainda reafirmando este viés moralizante, há toda uma nova construção do descobrimento do Livro dos Mortos associando o artefato e sua tradução ao imaginário judaico-cristão e também à insensatez de um padre. A ameaça torna-se, então, uma entidade profana que ataca precisamente a família estadunidense “desestruturada” e não-religiosa (isso é salientado em um diálogo, a certa altura), assim como acontece em “O Exorcista” (1973) e “Hereditário” (2018), por exemplo, ainda que estes filmes não tragam indícios claros de conservadorismo.
Mas talvez seja outro o aspecto principal que o novo “Evil Dead” retira do primeiro longa de Ari Aster, porém com resultados diametralmente piores. “A Morte do Demônio: A Ascensão” investe em uma fotografia tão escura que às vezes é difícil perceber exatamente o que está acontecendo em tela. O que não faz sentido algum, já que os filmes originais também se passavam à noite, mas traziam um trabalho de iluminação muito mais refinado, incluindo as lindíssimas composições com feixes diversos de luz atravessando os espaços. Evidentemente, a proposta do reboot busca se distanciar dos filmes já feitos, e isso é benéfico. Pode-se argumentar também que a cinematografia do filme obedece a uma dada circunstância diegética, e isso é igualmente verídico.
Mas, ainda assim, a escuridão das cenas parece muito mais a tentativa de forçar uma atmosfera sombria na percepção do espectador (obedecendo a uma já saturada tendência do terror contemporâneo) do que uma necessidade real ou uma tentativa formal de criar horror com luz e sombras ‒ isso chega a ser feito, mas poucas vezes. Todavia, nem sempre a direção de fotografia, assinada por Dave Garbett, empobrece plasticamente o filme. Há também momentos técnicos inspirados, como aquele em que o diretor usa as lentes split diopter (que criam uma ilusória profundidade de campo) para colocar em foco, no mesmo enquadramento, a mãe possuída e sua família a observando horrorizada.
Já em relação à montagem de Bryan Shaw, esta sim segue o exemplo da trilogia original e cria um ritmo desconcertante para os acontecimentos. Assim como “Uma Noite Alucinante II”, o mais recente exemplar da franquia se estrutura em torno de várias cenas perturbadoras ou escatológicas mais e mais impactantes, separadas por pequenos hiatos. O sentimento gerado por esta fragmentação do horror é de que estamos em um pesadelo, progressivamente acossados pela presença maligna. Este definitivamente não é um filme para aqueles que se incomodam com mutilações, perfurações, desmembramentos, fluidos corporais extravasados e afins, o que não chega a ser nenhuma novidade para aqueles que conhecem a franquia, mas é exponencialmente amplificado aqui. Arrisco dizer que, em termos de violência, sangue, efeitos e maquiagem, talvez seja um dos filmes mais ostensivos dos últimos tempos, embora a morte apareça de forma muito mais ascética, sem o elemento trash da primeira produção dirigida por Sam Raimi ‒ nota-se a diferença de orçamento simplesmente pelos créditos.
Porém, antes que eles subam, ainda temos a terrível conexão entre a história principal e os acontecimentos no lago, mostrados no início do filme. Pior do que isso, apenas o personagem do filho de Ellie, Danny, cuja imbecilidade é tão grande que faria inveja aos mais estúpidos personagens dos slashers oitentistas. A questão é que, mesmo não sendo tão memorável quanto os filmes originais, e apesar dos problemas, “A Morte do Demônio: A Ascensão” consegue ser um filme muito competente dentro da franquia.
Com referências discretas e óbvias, que vão de “O Iluminado” (1980) ao segundo longa da trilogia original (prestem atenção ao nome da pizzaria escrito na caixa que os filhos de Ellie levam para casa), o filme encontra novos e interessantes caminhos para a continuidade desta que é uma das franquias mais interessantes e queridas dos anos 80, ao entregar exatamente aquilo que o público conhecedor do Livro dos Mortos espera ‒ e consegue até mesmo estabelecer uma boa sucessora para o Ash de Bruce Campbell. Mas, muito provavelmente o filme ficará um bom tempo comigo por outro motivo, menos intelectual e mais físico: vou demorar a esquecer o ímpeto que senti no cinema de virar o rosto e me contorcer, em uma cena envolvendo uma mulher possuída, sua vítima e um ralador de legumes. Decididamente, não é todo dia que um filme de horror me presenteia com momentos tão insólitos. ■
filme a morte do demônio a ascensão
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A MORTE DO DEMÔNIO: A ASCENSÃO (Evil Dead Rise, 2023, EUA). Direção: Lee Cronin; Roteiro: Lee Cronin; Produção: Rob Tapert; Fotografia: Dave Garbett; Montagem: Bryan Shaw; Música: Stephen McKeon; Com: Lily Sullivan, Alyssa Sutherland, Morgan Davies, Gabrielle Echols, Nell Fisher; Estúdio: New Line Cinema, Renaissance Pictures; Distribuição: Warner Bros.; Duração: 1 h 37 min.
filme a morte do demônio a ascensão
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Jornalista formado pela UFMG e crítico de cinema, aproveita qualquer oportunidade para falar sobre sua paixão, a sétima arte. Com passagem pelo Curso Técnico em Química do CEFET-MG, iniciou os estudos de forma bem parecida com o começo do próprio cinema: em um laboratório manipulando substâncias químicas. Por quase dois anos, foi estagiário na RecordTV Minas, tendo uma rotina quase tão louca quanto a dos protagonistas de “Rede de Intrigas”. Participou do 6º Talent Press Rio e integrou a Assessoria de Comunicação da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte.