Enquanto eu assistia a “Raquel 1:1” (2022), novo longa-metragem realizado pela cineasta paulista Mariana Bastos, algo bastante trivial, mas inesperado, me chamou a atenção. Ainda que a obra pertença ao gênero horror (chamarei aqui não de drama, thriller ou suspense psicológico, mas de fato horror), ela não se aproveita de um dos maiores clichês deste tipo de filme: o susto no espelho.
Habituado a ver filmes de terror, eu fiquei esperando que a ação da personagem principal de abrir e fechar a porta espelhada de um armário sucessivas vezes fosse terminar com o aparecimento súbito de uma figura ameaçadora/sobrenatural, mas, para minha surpresa positiva, não foi isso que aconteceu. E, a exemplo deste momento pontual, “Raquel 1:1” se sobressai como um filme que consegue trazer uma ideia bastante original e conduzi-la de forma tensa (vide os primeiros planos referenciando o início de “O Iluminado”), embora careça de mais desenvolvimento e complexidade na abordagem de alguns temas e personagens que trata.
O filme acompanha Raquel (Valentina Herszage), uma adolescente religiosa que se muda com o pai, Hermes (Emilio de Mello), para uma pequena e conservadora cidade no interior do Brasil buscando começar uma nova vida. Ela faz amizade rapidamente com um grupo de meninas evangélicas de uma igreja local e se aprofunda em sua espiritualidade e na dor de seus traumas. Durante seus primeiros dias na nova cidade, a jovem também experimenta um misterioso despertar espiritual, quando passa a se empenhar na importante e controversa missão de reescrever a Bíblia, atualizando as diversas passagens cujos discursos antifemininos têm sido historicamente usados para legitimar condutas misóginas e violências contra as mulheres.
É justamente este chamado que considero o aspecto mais interessante de “Raquel 1:1”. Assim como o recente e ótimo “Medusa” (2021), de Anita Rocha da Silveira, resgata uma figura grega usualmente associada à deturpação de um ideal de beleza feminina e a um temor em relação à sexualidade das mulheres e a torna um catalisador para a resistência contra o sexismo, o filme roteirizado e dirigido por Mariana Bastos segue um caminho similar ao propor a modificação de trechos da Bíblia, agora feita por mulheres e em favor das mulheres.
Aliás, esta é apenas uma das tantas aproximações entre os dois longas lançados comercialmente no Brasil em março de 2023, com diferença de apenas uma semana entre suas datas de estreia. Ambos são os segundos longas nas filmografias de diretoras mulheres que se valem do horror para falar sobre as imbricações entre machismo, religião e reacionarismo no Brasil contemporâneo. Talvez por ação divina, após “Os Fabelmans” e “Babilônia”, esta já é a segunda vez em 2023 que dois filmes tematicamente tão próximos estreiam nas salas de cinema do Brasil tão próximos um do outro.
Contudo, se “Medusa” consegue ser verdadeiramente denso e atmosférico em meio às discussões que estabelece, “Raquel 1:1” conserva uma boa construção de suspense, mas parece acelerar demais e não aprofundar de fato nas relevantes questões que permeiam o filme. Por exemplo, o próprio processo de reescrita da Bíblia, que movimenta o enredo, é estabelecido em uma montagem com imagens das jovens separando e corrigindo os trechos combinada à leitura em off das passagens originais. É interessante, mas fica a impressão de que todo o desenrolar dessa reapropriação dos textos bíblicos poderia ser mais detalhada, apresentando com calma os critérios, as discussões e os resultados da iniciativa. A condução do longa dá a entender que as jovens (até então religiosas) aderiram rápido demais ao chamado de Raquel, e parece não existir uma escalada de entendimento acerca da validade da proposta vinda de fora daquele núcleo interiorano.
Voltando um pouco no enredo, até mesmo a chegada de Raquel à cidade e sua interação com as jovens da igreja é rápida e um tanto quanto superficial, transformando a progressão da trama em um caminho pouco sólido. Por exemplo, por volta dos 10 minutos de duração, Raquel já chegou à cidade, se estabeleceu com o pai na casa, os dois organizaram a mercearia da qual vão tirar o sustento, ela conheceu as jovens da igreja, foi convidada por elas para um passeio e passou pela experiência sobrenatural cujos desdobramentos vão nortear o filme. Da mesma forma, a discussão que Raquel empreende com suas correligionárias poderia ter sido estendida, ou ser apenas um dentre outros debates ao longo do segundo ato do filme, de modo a dar mais substância à jornada inicial da protagonista. O que poderia ser uma boa síntese narrativa acaba soando como ações se atropelando sem o devido tempo para que sejam bem estruturadas.
Embora a representação das igrejas e fiéis evangélicos não seja a mais densa e interessante possível (todas as referências à religião parecem excessivamente prontas e calculadas, entregando frases feitas e às vezes um maniqueísmo que destoa um pouco da forte consciência social da obra), entendo que este não é exatamente o foco do filme, cujo ponto está muito mais em narrar a cruzada de Raquel para promover discussões importantes que ainda são negligenciadas em meio àquele segmento. Neste sentido, o filme é muito eficiente ao estabelecer um ambiente em que qualquer questionamento é visto como uma ação diabólica, e no qual não existe muito espaço para problematizações, inclusive na cena que lembra muito um momento-chave de “Carrie, a Estranha” (1976).
De forma igualmente primorosa, Mariana Bastos consegue aglutinar vários elementos canônicos da teologia judaico-cristã em favor de uma narrativa em que tudo é permeado por experiências, compreensões e conceitos ligados à religião. O nome da protagonista, por exemplo, remete à esposa de Jacó, enquanto o objeto que ela encontra faz uma referência a Moisés. Já o aparecimento de feridas no corpo faz alusão às Chagas do próprio Cristo. É justamente graças à exploração destes e outros elementos do Cristianismo a partir de quadros, músicas e da própria Bíblia enquanto texto também literário, e, portanto, construído, que o filme mantém uma aura constante de que algo sobrenatural está por vir, o que fica claro ao final da obra. A presença do sangue e do fogo também reforçam este imaginário, preparando todo o caminho para o estabelecimento da protagonista como uma figura profética crível.
Também a iluminação do longa, a cargo da veterana diretora de fotografia Fernanda Tanaka, ajuda muito na construção do suspense e no clima de sufocamento que a personagem principal sofre, inclusive em casa, com o pai, que mesmo aparentemente tendo boas intenções, não a compreende e em certo sentido até mesmo despreza sua fé. Novamente, temos um eco de “Carrie, a Estranha”, com os ambientes constantemente imersos em escuridão e sombras, na medida em que ambas são progressivamente oprimidas, até que suas reações vêm sob a forma de uma libertação irrefreável e consolidada pela simbologia do fogo como a iluminação definitiva frente a tanto obscurantismo.
A diretora ainda é muito bem-sucedida ao conseguir incluir, de forma orgânica, as redes sociais no filme. Muitos dos pontos de virada de “Raquel 1:1” vêm por meio de conversas em aplicativos de mensagens, e aqui é possível ver uma elaboração mais complexa, já que a mesma ferramenta que serve à disseminação de discursos de ódio e fundamentalismo também é o veículo para a reunião de pessoas que procuram desenvolver a autonomia de pensamento e questionar as estruturas de poder.
“Raquel 1:1” seguramente não é um filme perfeito. As irregulares (ora afetadas, ora insípidas) interpretações dos atores e atrizes contribuem para que a construção dramática e de universo do filme sejam limitadas. Se a atuação de Valentina Herszage neste registro apático funciona em “Mate-me Por Favor” (2015), pela proposta geral do longa de estreia de Anita Rocha da Silveira, aqui considero que a atriz poderia ter acrescentado mais força à sua interpretação, até mesmo pela jornada intensa da personagem. Todavia, é justamente o fim dessa jornada que voltará a elevar o filme como a obra de qualidade que é. É nos últimos planos e em uma cartela de texto ao final do longa que temos o excelente fechamento para esta história, além da justificativa absolutamente coerente para o título do filme. Mariana Bastos não se atém apenas ao passado, mas propõe um ideal de futuro, a partir da reescrita literal e da escrita fílmica.
Este filme certamente não me fará temer ao abrir uma porta espelhada. A fé transmutada em horror por ora me parece algo muito pior. ■
RAQUEL 1:1 (2022, Brasil). Direção: Mariana Bastos; Roteiro: Mariana Bastos; Produção: Fernando Sapelli, Morena Koti, Igor Bonatto; Fotografia: Fernanda Tanaka; Montagem: Guilherme Porto; Música: Arthur Decloedt, Marianna Romano; Com: Valentina Herszage, Emilio de Mello, Priscila Bittencourt, Eduarda Samara, Ravel Andrade; Estúdio: Claraluz Filmes; Distribuição: O2 Play; Duração: 1 h 30 min.
crítica filme Raquel 1:1
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