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“Skinamarink”: Experimentando horrores incômodos

"Skinamarink: Canção de Ninar" (Skinamarink, 2022), de Kyle Edward Ball - Divulgação

A2 Filmes/Divulgação

Admiro muito a coragem dos realizadores e realizadoras que se aventuram pelo cinema experimental. É preciso muita determinação para investir em uma linguagem que não visa à distração ou necessariamente ao retorno financeiro; que trabalha questionando, desconstruindo ou evitando a soberania da representação concreta; e que, via de regra, não é distribuída comercialmente. Não porque estas sejam meras contingências dos filmes experimentais, mas porque são algumas das características principais deste tipo de cinema, como Jacques Aumont e Michel Marie esclarecem, referenciando o autor Dominique Noguez.

Kyle Edward Ball mostra-se então um cineasta corajoso, ao estrear na direção de longas-metragens com o filme de horror experimental “Skinamarink: Canção de Ninar”, que se tornou viral no TikTok, Reddit e YouTube assim que começou a circular em alguns festivais, no segundo semestre de 2022. A trama segue duas crianças, uma menina de seis anos e seu irmão de quatro anos, que, após um acidente bizarro, acordam pela manhã e descobrem que todas as portas e janelas dentro de sua casa desapareceram. O telefone da residência também fica repentinamente inoperante. Além disso, o pai de Kaylee e Kevin está desaparecido. Depois de uma noite dormindo na sala de estar, onde passam o tempo assistindo a antigas fitas de vídeo de desenhos animados, coisas estranhas começam a acontecer. Mais objetos desaparecem, sons aterradores emanam do andar de cima e as luzes se apagam sozinhas. Depois de um tempo, fica claro para os personagens e para o público que alguma força assustadora e inexplicável está cuidando das crianças.

Se é um sinal de coragem investir no cinema experimental, também o é a consciência do quão estendida pode ser uma premissa, a partir das condições a que o próprio cineasta se submete. E, neste parâmetro, o diretor canadense parece ainda não ter o entendimento de que a história e a forma fílmica escolhida para seu longa não se sustentam mutuamente. Os longuíssimos 100 minutos de “Skinamarink” poderiam ser facilmente reduzidos para um curta-metragem de 30 minutos ou menos. E, vejam só, este filme existe: trata-se de “Heck”, realizado pelo mesmo diretor em 2020 (disponível no YouTube) e utilizado como uma espécie de cartão de visita (na expressão original em inglês, “proof of concept) na intenção de atrair investimentos para o primeiro longa do cineasta — assim como “Within the Woods” (1978), por exemplo, serviu como prenúncio para Sam Raimi mostrar seu potencial em “Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio” (1981). Porém, se o curta setentista deu origem a uma obra memorável, “Skinamarink” contém pouco avanço em relação a seu predecessor.

O aprimoramento mais visível está na parte técnica do longa. O filme de 2022 consegue manter uma paleta de cores e uma granulação consistentes ao longo de toda a sua extensão, ressaltando a proposta sombria e distorcida da história, e ainda é bem-sucedido ao trazer ruídos e modulações de diálogo diversificadas, que ajudam na construção do extra-campo e no estabelecimento do fio de narrativa que guia o filme.

Mas, infelizmente, apenas isso me parece pouco para preencher toda a duração da obra. Tanto é que, antes da metade, o filme começa a ficar repetitivo, investindo nos mesmos recursos para tentar consolidar alguma atmosfera, quer seja de medo, angústia ou apreensão. São itens que somem, reaparecem ou desafiam a gravidade, as mesmas animações retrô na televisão, incursões em cômodos escuros, pessoas paradas olhando fixamente para alguma superfície, e daí em diante. Formalmente, o filme também insiste nos mesmos expedientes: a câmera na mão, que impede a visão integral dos ambientes e personagens; os planos holandeses longos, mostrando quinas oblíquas, interiores inclinados ou perspectivas tortuosas; e os movimentos panorâmicos, revelando vagarosamente os cômodos e, não raro, finalizando em sustos com um aumento repentino na trilha sonora.

Até mesmo a estética de filme gravado em película (artificial, já que a obra foi rodada em digital), muito associada aos filmes found footage e que já é bastante datada, vai se tornando maçante, além de parecer um mero artifício nostálgico ou apelo a uma suposta imagética inerentemente inquietante. Importante lembrar que, mesmo se aproveitando do terror analógico, o filme em momento algum indica que se vale da premissa de fitas encontradas, tornando a escolha plástica um tanto quanto aleatória.

"Skinamarink: Canção de Ninar" (Skinamarink, 2022), de Kyle Edward Ball - Divulgação
“Skinamarink: Canção de Ninar” (Skinamarink, 2022), de Kyle Edward Ball – Divulgação

Por estes e outros fatores, enxergo “Skinamarink” como um filme que se preocupa muito mais com sua linguagem predominantemente experimental do que com o horror propriamente dito, o que não seria um problema, se a obra não se esgotasse cedo demais. E claro, a trama à la “Poltergeist – O Fenômeno” ‒ até mesmo com o protagonismo da televisão ‒ de duas crianças sozinhas em casa e acossadas por uma ameaça sobrenatural já é terrível por si, mas muito do horror fica na premissa e nas possíveis elaborações que se pode fazer acerca de suas metáforas, e resta muito pouco no filme propriamente dito. Raríssimos instantes me deixaram tenso e, embora este seja um critério altamente subjetivo, é possível dizer objetivamente que o longa sofre de um ritmo irregular, alongando tanto a maioria das cenas em planos aparentemente irrelevantes e reincidentes que, nos pontos potencialmente climáticos, há um cansaço acumulado que esfria quase por completo o impacto de qualquer acontecimento.

As únicas exceções são os encontros de Kaylee com os pais e a ameaça sobrenatural no quarto de cima, a sequência em que Kevin desce para o porão e os desdobramentos do enredo nos minutos seguintes, o telefonema para a emergência e o final bastante aberto. Além disso, a entidade que assombra as crianças também é bem construída (principalmente em termos de voz) e transmite bem o senso de prisão sem possibilidade de fuga que vai progressivamente tomando conta da casa. A profusão de elipses na narrativa é igualmente bem-vinda, já que deixa espaço para que o público preencha as lacunas e participe de modo mais ativo do filme ‒ cumplicidade que, é preciso dizer, a obra praticamente sabota do início ao fim testando cansativamente a resistência do espectador.

Ao término de “Skinamarink”, eu fiquei com uma dúvida conceitual que é bem melhor resolvida no desfecho de “Heck”. Se o curta-metragem aponta para um horror genuíno em seu final, o longa termina com uma nota mais melancólica, abrindo caminho para o que eu considero um elemento muito positivo do filme: a possibilidade de atribuir vários sentidos mais alegóricos à narrativa. As experiências dos dois irmãos podem simbolizar um leque extenso de situações, das vivências de crianças órfãs às de filhos negligenciados, passando ainda pela relação com pais emocionalmente instáveis e pelos terrores do abuso infantil (que comumente acontece dentro de casa).

"Skinamarink: Canção de Ninar" (Skinamarink, 2022), de Kyle Edward Ball - Divulgação
“Skinamarink: Canção de Ninar” (Skinamarink, 2022), de Kyle Edward Ball – Divulgação

Todavia, se formos nos ater à concretude do filme, o que temos é um longa que caminha em direção a um pesadelo, mas acaba por, em grande parte de sua extensão, ir ao encontro da monotonia. O que me causa estranheza, já que os pesadelos (os meus, os que me são relatados e geralmente os do cinema) costumam ser tudo, menos enfadonhos. Via de regra, quando estamos tendo um sonho ruim, queremos correr, fugir e interromper aquela experiência. “Skinamarink” me fez ter estes ímpetos, mas pelos motivos errados. O diretor diz ter se inspirado em cineastas como Chantal Akerman, Stanley Kubrick e Andrei Tarkovsky. Estes realizadores, no entanto, eram habilidosos na tarefa de deixar o público cansado com o filme, unindo simbioticamente forma e temática. Já o horror experimental de Kyle Edward Ball me deixou, inúmeras vezes, cansado da experiência em si, e ponto.

Claro, o filme não tem obrigação alguma de ser palatável ao gosto do público e da crítica. E, como uma autocrítica, não consegui, por motivos logísticos, vê-lo como gostaria, sozinho em uma sala totalmente escura durante a madrugada. Contudo, obras-primas do terror sobrevivem nas mais adversas circunstâncias, e apenas se valer da linguagem experimental para justificar o enorme descompasso entre duração e conteúdo me parece banalizar demais o que pode ser considerado experimentação. Há um abismo gigantesco entre o posicionamento político vindo das ações progressivamente desestabilizadas de Jeanne Dielman no filme homônimo e a repetição constante de imagens que se pretendem aterrorizantes, mas ou são salvas pela atmosfera geral da obra e suas múltiplas significações, ou acabam sendo inócuas em função da recorrência. Muito me intriga que este filme tenha tido um sucesso tão grande em redes sociais que prezam cada vez mais por conteúdo rápido e diversificado. Eis um mérito do ritmo errático do longa: o de expor o público a algo diferente e conquistar pessoas que vêm sendo ininterruptamente bombardeadas com a velocidade de conteúdo das plataformas digitais.

“Skinamarink: Canção de Ninar” termina por ser um filme interessante, com uma proposta bastante rara atualmente. Embora careça de um rol maior de acontecimentos e recursos fílmicos para experimentar mais com a linguagem e a narrativa cinematográficas, o longa pode abrir uma importante janela de oportunidades para que mais trabalhos de horror experimentais alcancem um público amplo e despertem um interesse maior. Ainda que eu não o considere uma obra-prima, é louvável que um cineasta assumidamente cinéfilo como Kyle Edward Ball demonstre tanta coragem e se aventure, em 2022, a experimentar com o horror e a, pelo menos, tentar horrorizar com seus experimentos. ■

Nota:

"Skinamarink: Canção de Ninar" (Skinamarink, 2022), de Kyle Edward Ball - Divulgação
“Skinamarink: Canção de Ninar” (Skinamarink, 2022), de Kyle Edward Ball – Divulgação

SKINAMARINK: CANÇÃO DE NINAR (Skinamarink, 2022, Canadá). Direção: Kyle Edward Ball; Roteiro: Kyle Edward Ball; Produção: Edmon Rotea, Ava Karvonen, Bonnie Lewis, Alan Lewis; Fotografia: Jamie McRae; Montagem: Kyle Edward Ball; Com: Lucas Paul, Dali Rose Tetreault, Ross Paul, Jaime Hill; Estúdio: Mutiny Pictures, ERO Picture Company; Distribuição: A2 Filmes; Duração: 1 h 40 min.

filme Skinamarink

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