Um dos meus momentos favoritos de “O Silêncio dos Inocentes” (1991) acontece na cena em que o psicopata Hannibal Lecter conta à agente do FBI Clarice Starling o que houve com o pesquisador que tentou testá-lo certa vez. Gosto muito da cena não apenas pela atuação desconcertante de Anthony Hopkins, mas talvez mais ainda pela reação de Jodie Foster, cuja expressão demonstra uma das mais tensas combinações de pânico e resiliência que eu me lembro de ter visto em um filme.
Zar Amir Ebrahimi (em uma atuação que merecidamente lhe rendeu o Prêmio de Interpretação Feminina na edição de 2022 do Festival de Cannes) me causou impressão semelhante, na cena que mostra também o confronto de uma mulher com um assassino em série. Porém, “Holy Spider”, terceiro longa-metragem do diretor iraniano Ali Abbasi (“Monster”), afasta-se do terror enquanto gênero cinematográfico e joga luz ao horror presente na realidade. A coprodução europeia, falada em persa e que estreou no 75º Festival de Cannes, segue a busca de uma jornalista pelo serial killer responsável pelas mortes de 16 prostitutas em uma cidade sagrada do Irã.
Ao contrário do longa estadunidense, baseado em um livro que, por sua vez, é inspirado em vários criminosos reais para criar uma história totalmente ficcional, “Holy Spider” parte diretamente de acontecimentos factuais para narrar um caso específico ocorrido na República Islâmica do Irã entre 2000 e 2001. Ou seja, já de saída, o filme tem pela frente algumas questões fundamentais de ordem ética, recorrentes no terreno do audiovisual: como retratar tramas factualmente baseadas em casos reais de violência extrema? Narrar essas histórias seria uma forma de violentar novamente as vítimas? Qual o limite para a violência mostrada na recriação das situações enfrentadas por quem sofreu os abusos? De que modo é possível tratar de figuras criminosas sem lhes engrandecer midiaticamente?
O filme de Abbasi se vê confrontado com estas discussões ao longo de toda a sua duração, e parece caminhar também de modo constante na tênue linha entre a denúncia carregada de nuances e a relativização míope para o que realmente importa. E, talvez, o filme só se salve por trazer um competente (ainda que não inédito) debate sobre a violência ocultada pelas aparências, além de refletir acertadamente acerca do papel da sociedade na estrutura misógina que alimenta abusos contra as mulheres.
Porém, esta correção de rota somente vem no terço final da história. Nos dois primeiros atos, o filme parece extremamente confuso em relação à sua real intenção. Abbasi se propõe a acompanhar a investigação jornalística de Arezoo Rahimi (Ebrahimi) ou tenciona ser um cronista da vida do assassino, Saeed Hanaei (Mehdi Bajestani), batizado pela mídia iraniana de “Spider Killer” e que acredita estar cumprindo um desígnio espiritual ao “limpar as ruas”? Ambos têm um tempo de tela semelhante e compartilham de um destaque também similar nos planos mais fechados, por exemplo. Evidentemente, o realizador não tem obrigação alguma de tomar partido e suprir as expectativas do público, da crítica ou de quem quer que seja. Ao mesmo tempo, é legítimo questionar o que levou o cineasta a trazer esta abordagem em detrimento de outras, até mesmo porque o próprio diretor já defendeu que deveria ser dado mais espaço às histórias das vítimas e seus familiares.
Afinal, permanecemos muito tempo ‒ às vezes tempo demais ‒ com o serial killer, seja nos momentos de rotina ou durante o cometimento dos crimes. A decisão criativa do cineasta, contudo, é coerente com sua própria visão em relação à figura do assassino. Abbasi já declarou que “Saeed Hanaei é uma vítima e um criminoso”. E já tratou do caso de modo mais detalhado: “De uma forma muito estranha, senti simpatia pelo cara, realmente contra minha própria vontade. […] Acho que havia um elemento psicótico no aspecto de busca de prazer de seus assassinatos, a sexualidade distorcida e outros enfeites, mas também havia essa estranha inocência nele. Era mais sobre como uma sociedade cria um serial killer”, contou o cineasta a um jornalista durante uma entrevista.
Claro, assassinos em série e outros criminosos podem ter (e geralmente têm) experiências traumáticas que são seguidas por uma vida aparentemente normal, marcada por relações amistosas com as pessoas de seu entorno. Entretanto, “Holy Spider” apresenta uma controversa escolha de foco narrativo. Embora seja importante demarcar que um serial killer não é uma besta inumana, mas sim um ser social com todas as complexidades próprias de pessoas reais, este tipo de caracterização pode ser simplesmente feito em uma ou duas cenas, ou melhor equilibrado com outros elementos no filme. Ao tornar Saeed Hanaei praticamente o protagonista da história (é o nome de Mehdi Bajestani, inclusive, que aparece primeiro nos créditos finais), o filme perde, conscientemente, a oportunidade de aprofundar mais a vida das mulheres mortas. Quem eram? O que sonhavam? Quais as particularidades do trabalho que exerciam em uma sociedade tão marcadamente conservadora como a iraniana?
Outra obra que enfrentou questionamentos similares recentemente foi a série “Dahmer: Um Canibal Americano” (2022). No entanto, a produção da Netflix, ainda que explicitamente centrada na figura do assassino, explora com mais sucesso as trajetórias pregressas das diversas vítimas de Jeffrey Dahmer, dando inclusive sobrenome às pessoas cujas vidas foram tiradas pelo serial killer. Em “Holy Spider”, apesar do declarado objetivo do diretor de falar sobre a misoginia estrutural presente em seu país de origem, nos deparamos, mais uma vez, com um filme cujas vítimas reais só têm protagonismo nos momentos em que estão prestes a morrer ou de fato sendo assassinadas. Até mesmo a investigação levada a cabo por Arezoo Rahimi parece protocolar, e em certo momento os acontecimentos caminham por uma via extremamente previsível, atenuada somente pela performance obstinada de Zar Amir Ebrahimi.
O longa não se torna mais do mesmo apenas pela atenção que dedica, no terceiro ato, a dois eixos fundamentais (e interconectados) dentro da lógica patriarcal que impera no país persa (e, não podemos esquecer, também no Brasil): na esfera macrossocial, temos a estrutura cultural que dá lastro à violência misógina, e que fica evidente quando o assassino é louvado por conhecidos e ovacionado por uma multidão à frente do local onde está preso; já a nível microssocial, e também como um subproduto do contexto mais amplo, acompanhamos, dentro da casa de Saeed Hanaei, a fermentação da violência misógina em Ali Hanaei, filho do serial killer. Este último aspecto guarda uma relação muito próxima com aquela do comentário feito no recente filme brasileiro “Carvão” (2022), que também termina com uma nota áspera acerca de como o ódio pode contaminar perigosamente até mesmo as crianças, quando ela são submetidas e habituadas a ciclos de violência reiterados.
Contudo, se em “Carvão” tudo fica restrito à casa e à vizinhança da família principal, o filme europeu expande bastante esta crítica, mostrando um quadro de hipocrisia generalizada e corrupção irrestrita de valores básicos, como a compaixão e a justiça. A direção de Abbasi contribui na criação desta atmosfera de cinismo e descaso que ronda a cidade. Tudo é filmado com uma seriedade e um despojamento que confere muito mais peso à história, principalmente nas cenas que retratam os assassinatos propriamente ditos, quando a montagem segura a duração dos planos e mostra, de forma realista e sem concessões, as mulheres sendo mortas por estrangulamento com seus próprios lenços, em uma cruel metáfora visual (não originária do filme, mas dos assassinatos reais) da opressão sexista imposta às cidadãs iranianas.
Trata-se, entretanto, de uma condução quase inteiramente clássica, linear e, a bem da verdade, bastante genérica. Planos longos, close-ups e planos-detalhes, raccords, jump cuts, movimentações de câmera, cores saturadas, iluminação e outras ferramentas são utilizadas de forma competente, mas há pouca ou quase nenhuma ideia visual ou técnica de montagem que fuja da cartilha tradicional. O diretor parece, assim, apoiar-se muito mais no apelo de sua história do que na criação de uma narrativa com traços autorais. Isto não seria problema algum, mas acaba se tornando um ponto de questionamento na medida em que Abbasi argumenta que este é um filme noir, “o primeiro filme noir persa”, e recorrentemente cita exemplares de neonoirs como “Chinatown” (1974), “Taxi Driver” (1976) e “Zodíaco” (2006).
Na realidade, eu avalio que esta definição é muito frágil para que seja sustentada sem uma dose generosa de boa vontade, já que o filme passa ao largo do noir em termos de uso da linguagem cinematográfica e mesmo do enredo. Não há, por exemplo, uma trama muito elaborada, o que serve também como crítica à omissão das autoridades em investigar um caso que, no final das contas, não apresentaria grande dificuldade para autoridades devidamente engajadas na busca e prisão do serial killer. Alguns dos principais elementos visuais do noir são igualmente ignorados, como os rigorosos enquadramentos e as sombras por toda parte.
“Holy Spider” é, para mim, um franco avanço do diretor em relação a “Shelley” (2016), seu absolutamente esquecível e pretensioso longa de estreia. Embora traga cenas bastante desconfortáveis (que devem ser ainda mais chocantes para a audiência iraniana), em uma história intensa e narrada de modo competente, o filme perde a oportunidade, pelo menos para mim, de ser efetivamente marcante e apresentar novas perspectivas, tanto no enredo quanto na condução.
Eu gostaria verdadeiramente de dizer que outras cenas do longa me causaram o impacto que tive, por exemplo, com o momento que narrei no início deste texto, quando Arezoo Rahimi é confrontada pelo assassino com a possibilidade de ter sido, ela mesma, sua próxima vítima. Todavia, “Holy Spider” termina, ironicamente, como uma teia que despreza muitos daqueles que poderiam ser seus fios mais fortes. Afinal, as vítimas aparecem apenas enquanto faces mutiladas ou sem vida, enquanto a promissora protagonista disputa a atenção do espectador com o assassino. Para quebrar o tecido misógino que nos prende, talvez devêssemos começar a nos questionar: quais os rostos dos fios cortados pelo caminho? ■
filme holy spider
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HOLY SPIDER (2022, Alemanha, Dinamarca, França, Suécia). Direção: Ali Abbasi; Roteiro: Ali Abbasi, Afshin Kamran Bahrami; Produção: Sol Bondy, Jacob Jarek, Ali Abbasi; Fotografia: Nadim Carlsen; Montagem: Hayedeh Safiyari, Olivia Neergaard-Holm; Música: Martin Dirkov; Com: Mehdi Bajestani, Zar Amir Ebrahimi; Estúdio: Profile Pictures, One Two Films, Why Not Productions; Distribuição: MUBI; Duração: 1 h 57 min.
filme holy spider
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Onde ver "Holy Spider" no streaming:
Jornalista formado pela UFMG e crítico de cinema, aproveita qualquer oportunidade para falar sobre sua paixão, a sétima arte. Com passagem pelo Curso Técnico em Química do CEFET-MG, iniciou os estudos de forma bem parecida com o começo do próprio cinema: em um laboratório manipulando substâncias químicas. Por quase dois anos, foi estagiário na RecordTV Minas, tendo uma rotina quase tão louca quanto a dos protagonistas de “Rede de Intrigas”. Participou do 6º Talent Press Rio e integrou a Assessoria de Comunicação da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte.