Antes de ir ao cinema assistir a “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso”, eu ouvi opiniões de pessoas distintas sobre o filme. Tinha quem não era fã do Homem-Aranha, mas gostava de filmes de super-heróis. Ouvi impressões de quem é apaixonado por todas as versões do Peter Parker e de quem gosta muito do Miles Morales. Escutei até gente que estava passeando no shopping em um domingo à tarde, olhou os filmes em cartaz e pensou: “Ah, vamos ver esse Homem-Aranha diferente aqui”. Apesar da variedade de pessoas, todas elas tinham a mesma opinião: “O filme é incrível”. Algumas ainda disseram que esta continuação era melhor do que o longa original. E a pergunta que ficou foi: mas como isso era possível?
A produção de 2018 foi um marco em vários sentidos, sendo o principal a presença de um Homem-Aranha preto. Na época do lançamento, foi criada uma ligação entre o personagem e o público infantil negro muito significante. Aquelas crianças conseguiram se reconhecer no protagonista, Miles Morales, e passaram a entender o cenário apresentado de uma forma mais verdadeira. E o impacto não veio apenas para as crianças: foi absurdamente significante para os adultos finalmente ver Morales na telona. Muita gente nem sabia que existia um Homem-Aranha negro, e ao ver este personagem de cabelo black, nariz grande e que adora a cultura hip hop, a identificação é genuína e instantânea.
As técnicas de animação usadas no primeiro filme são geniais e também foram um diferencial para a produção, que se mostrou muito diferente do que costuma ser exibido nos cinemas comerciais. “Homem-Aranha no Aranhaverso” levou o público a uma imersão cheia de cores e elementos visuais vivos, que não deixavam a gente desgrudar os olhos da tela em nenhum instante, deixando a plateia empolgada com cada arte nova apresentada.
Dito isso, “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso” teoricamente não teria nada “novo” para mostrar nessas áreas, certo? Errado! A continuação consegue surpreender novamente nesses aspectos e em vários outros. Agora, Miles Morales (dublado por Shameik Moore) está ainda mais carismático. O personagem, no processo de descoberta sobre o quanto é poderoso e inteligente, vê sua autoestima e autoconfiança aumentar (e cá para nós, quando um adolescente preto descobre isso nele, o mundo fica pequeno). Seu relacionamento com a cultura preta dos Estados Unidos é mostrado através de seus tênis Air Jordan e por meio das músicas que estão em sua playlist, que encanta a todos.
Assim como no filme de origem, as canções escolhidas aqui levam quem está no cinema para o mundo de Miles. Seus devaneios são compartilhados com o público através da trilha sonora, e mais uma vez, a escolha dos artistas é perfeita: nomes como Lil Wayne, A$AP Rocky, Swae Lee (que cantou, ao lado de Post Malone, o single oficial do primeiro filme, “Sunflower”) e 21 Savage enriquecem a trilha sonora com faixas que trabalham muito o R&B, o trap e o hip-hop.
Além disso, o novo longa tem uma abordagem cultural ainda mais rica. A parte porto-riquenha da família de Miles, representada pela mãe Rio Moralez (Luna Lauren Vélez), está mais presente neste filme através de músicas e da língua espanhola nos diálogos. Há também um Homem-Aranha indiano (Pavitr Prabhakar, interpretado por Karan Soni), que apesar de ter pouco tempo de tela, consegue mostrar vários pontos interessantes da cultura do seu país.
Outros dois personagens são bem interessantes e enriquecem o elenco preto do filme: Jessica Drew (Issa Rae) e o Spider-Punk (Daniel Kaluuya). Em sua primeira cena, Jessica já surpreende ao aparecer toda poderosa, em sua moto, fazendo muitas manobras perigosas. Assim como o público, Gwen Stacy (Hailee Steinfeld) fica espantada ao ver que aquela Mulher-Aranha está grávida e que isso não a impede de ser tão potente e inteligente, e ainda lutar contra o vilão de igual para igual.
Já Hobie Brown, o Spider-Punk, é um personagem à parte e adorável por seu humor e carisma. Miles sente ciúmes dele porque Gwen fala muito sobre como Brown é divertido, inteligente e seu parceiro. Antes de nós vermos esse Aranha, não imaginamos o quanto ele poderia acrescentar à história, mas, já ao aparecer pela primeira vez, fica claro o motivo pelo qual a garota gosta tanto do novo herói. Além de ser autêntico e independente, o Spider-Punk é ativista e, ao longo do filme, solta críticas interessantíssimas contra o capitalismo, a sociedade, líderes poderosos etc. Tais falas poderiam soar densas para um blockbuster, porém, acontece exatamente o contrário: elas dão um tom de comédia único, do jeito que faz você rir porque sabe que é verdade tudo o que ele está dizendo. O personagem é sensacional.
E diga-se de passagem, os diretores Joaquim Dos Santos, Justin K. Thompson, Kemp Powers acertaram muito ao escolher os atores que deram voz a esses novos personagens. Issa (famosa por seu papel em “Insecure”) e Kaluuya (super conhecido por atuar em produções importantes na cultura preta, como “Corra!”, “Pantera Negra” e “Judas e o Messias Negro”) trouxeram muita personalidade aos seus papéis. Além disso, é interessante ver como a produção teve o cuidado de escolher um ator indiano para dar vida à Pavitr Prabhakar.
E falando em novos personagens, não dá para deixar de fora o vilão. Em sua primeira aparição, Spot (ou Mancha, dublado por Jason Schwartzman) deixa a impressão de que será um personagem bobo, que não fará um verdadeiro mal ao protagonista. Soa como um alívio cômico, na verdade. Porém, ao longo da história, ele ganha força e descobre o quão é poderoso. Ao perceber o quanto Miles Morales destruiu sua vida, Spot se esforça para conhecer ainda mais seus poderes e resolve usá-los para tirar tudo de seu inimigo, assim como foi feito com ele.
Já conhecida do público, Gwen Stacy também está incrível e neste filme deixa de ser a coadjuvante da história e passa a ser a coprotagonista. Os roteiristas Phil Lord, Chris Miller e David Callaham fizeram um ótimo trabalho ao colocar a personagem com mais destaque. E um dos pontos mais interessantes é que, diferente de Miles, Gwen concorda com o acontecimento dos “eventos canônicos” e suas consequências, ou seja, ela aceita que seu pai, capitão da polícia, terá que morrer para que o multiverso continue em ordem. A garota traz o oposto dos ideais de seu grande amigo e, quando esses pensamentos se confrontam, o rumo da história parte para um conflito muito interessante.
E como acontece em bons roteiros, há uma reviravolta que faz Spot não ser o único problema para Morales. O rapaz descobre o que são os “eventos canônicos” por meio de Miguel O’hara (Oscar Isaac), o Homem-Aranha 2099 já conhecido pelos fãs dos quadrinhos. Ele comunica a Miles que, para manter o multiverso em ordem, algo deve acontecer em todos eles: um capitão da polícia deve morrer ao tentar salvar uma criança de um desastre. Até o momento, isso estava dando certo, até que Miles salva um policial prestes a morrer. E a partir daí, as ramificações mudam e o caos se instala.
Ao descobrir sobre os “eventos canônicos”, Miles lembra de algo muito importante: seu pai (Brian Tyree Henry) está prestes a se tornar capitão. Com isso, o jovem tenta voltar para seu universo e impedir que sua família seja vítima de uma tragédia. É quando a Sociedade-Aranha, liderada por Miguel, passa a perseguir Miles para que ele não consiga mudar o “destino”.
Este conflito enriquece muito a trama e engrandece o protagonista, já que traz um dilema muito típico da vida de qualquer Homem-Aranha: sacrificar uma pessoa pelo mundo inteiro ou sacrificar o mundo inteiro por uma pessoa? É sobre grandes responsabilidades… E eu confesso que, de fora da história e longe destes problemas, minha decisão seria não interferir e deixar aquilo acontecer. Afinal, tudo pode se perder caso eu decida salvar uma única pessoa. Se eu interferir, posso perder ainda mais. Porém, quando se trata de família, o assunto muda de tom e, por isso, eu entendo o esforço de Miles e sua vontade de salvar o pai e também manter a estabilidade dos universos.
Para representar as novas facetas do multiverso, os diretores utilizam ainda mais variedades de técnicas para diferenciar cada realidade, fazendo a experiência do público ser ainda mais divertida. Há cenas que contém tantos elementos visuais, e eles são tão vivos e interessantes, que podem prender facilmente a atenção de quem está em frente à tela.
Cenários e personagens são representados por meio de pontilhismo, grafite, colagem e aquarela, estilos que não estão ali apenas para contribuir visualmente, mas sim porque estão a serviço da história. O mundo da Spider-Gwen, por exemplo, usa uma ferramenta narrativa que liga as mudanças de humor da personagem às cores que nos são mostradas. Já quando o Mancha aparece, os pontos pretos em seu corpo se movimentam de maneira independente, mostrando a complexidade deste personagem. E há também o visual único do Spider-Punk, que tem animações até mesmo quando ele está parado e é inspirado em pôsteres de bandas de punk rock. Há até mesmo inserções de live-action, linkando a animação com os filmes do Aranha protagonizados por Tobey Maguire e Andrew Garfield. Assim como no filme de 2018, toda essa miscelânea visual é ancorada pelo estilo gráfico que remete a páginas de HQs, com o uso da tela dividida na composição dos enquadramentos e inserção de notas de rodapé para explicar alguns termos citados nos diálogos.
As relações familiares da produção também são abordadas de uma maneira bem bonita e íntima, de modo que filhos e pais consigam se identificar. Jeff e Rio Morales são mais desenvolvidos nesta sequência e a relação deles com Miles é muito bem apresentada, mostrando a forte ligação que existe na família. É nítido que toda a preocupação dos adultos com o jovem é sobre amor e cuidado, e que, apesar de ser um adolescente que deseja fazer as coisas sem precisar de aprovação, Miles também ama muito seus pais. E outro personagem para quem o laço parental tem grande importância é Peter B. Parker (voz de Jake Johnson), que retorna agora com a bebezinha Mayday (a futura Spider-Girl) a tiracolo.
Comédia, amizade, romance e drama estão presentes na trama e essa combinação funciona muito bem no roteiro, que faz de maneira coesa a ligação entre os eventos do primeiro filme e a base construída para o terceiro, a ser lançado em 2024. Ao final, é possível compreender o motivo das pessoas estarem dizendo que “Homem Aranha: Através do Aranhaverso” é melhor que o longa anterior. Realmente é e o meu sentimento em relação a isso é apenas um: como é bom ter não apenas um, mas dois filmes incríveis. ■
filme Homem-Aranha Através do Aranhaverso
filme Homem-Aranha Através do Aranhaverso
HOMEM-ARANHA: ATRAVÉS DO ARANHAVERSO (Spider-Man: Across the Spider-Verse, 2023, EUA). Direção: Joaquim dos Santos, Kemp Powers, Justin K. Thompson; Roteiro: Phil Lord, Christopher Miller, Dave Callaham; Produção: Phil Lord, Christopher Miller, Amy Pascal, Avi Arad, Christina Steinberg; Montagem: Michael Andrews; Música: Daniel Pemberton; Com: Shameik Moore, Hailee Steinfeld, Brian Tyree Henry, Luna Lauren Vélez, Jake Johnson, Jason Schwartzman, Issa Rae, Karan Soni, Shea Whigham, Greta Lee, Daniel Kaluuya, Mahershala Ali, Oscar Isaac; Estúdio: Columbia Pictures, Sony Pictures Animation, Marvel Entertainment, Arad Productions, Lord Miller Productions, Pascal Pictures; Distribuição: Sony Pictures; Duração: 2 h 20 min.
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Jornalista e crítica de cinema, sempre que pode está falando de filmes de heróis, animações, comédias românticas ou blockbusters. O jornalismo esportivo foi sua grande paixão durante a graduação. Há pouco, descobriu que o que gosta mesmo é de falar sobre produções audiovisuais, sejam elas filmes que concorrem ao Oscar ou um bom título do Darren Star. Atualmente também trabalha como produtora de TV na Rede Minas.