Assistir ao filme “Barbie”, de Greta Gerwig, para quem está minimamente consciente de toda a máquina capitalista em operação, torna-se uma experiência de entretenimento peculiar, que nos divide em muitas camadas e contradições — as nossas (individuais, coletivas, ambas?) e da própria obra (seria melhor aqui usar a palavra produção?), ambivalente e metalinguística do início ao fim, brincando debochadamente entre desconstrução e reafirmação.
Veja:
É sobre uma das bonecas mais icônicas do mundo e que atravessa gerações. Logo, o produto de sucesso de uma marca, cuja influência para o imaginário social começou com a proposta de inovação em brinquedos para meninas, ampliando suas possibilidades lúdicas e imaginativas, mas acabou gerando ou reforçando padrões irreais de beleza, estereótipos de gênero e um modelo hegemônico de feminilidade, entre outras questões problemáticas;
Outro ponto: o lançamento do filme tem sido explorado pelo marketing de maneira onipresente e até sufocante, o que, por um lado, significa que as engrenagens estão servindo para um filme realizado e protagonizado por mulheres e isso é muito bem-vindo, considerando que pouquíssimas diretoras e narrativas centradas em “coisas de mulherzinha” têm acesso ao poderio dos blockbusters; mas, por outro lado, corrobora para o frenesi da sociedade do consumo e para o esmagamento dos filmes pequenos;
Mais um ponto: alguma liberdade artística é possível e esperada em um filme encomendado por uma corporação do porte da Mattel e com um grande estúdio como a Warner Bros.? A visão de Greta Gerwig, que vem de filmes autorais, e toda a confiabilidade que seu trabalho (e, de certa forma, sua “marca” pessoal) imprime ao projeto implicam algum nível de subversão, de sabotagem da indústria, ou apenas se trata de uma negociação cultural-econômica, uma espécie de acordo entre as partes?
E afinal, o quanto tudo isso importa exatamente neste caso, se para quase todas as grandes produções hollywoodianas tais questionamentos podem ser aplicados?
Dito isso, vamos ao filme — que, no fim das contas, mostra-se uma estrutura bastante engenhosa pela autoconsciência, com momentos de boas risadas, emoção, crítica social e muita metalinguagem envolvendo a cultura pop.
“Barbie” começa com a sequência que referencia um capítulo de “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968), de Stanley Kubrick (isso foi divulgado como teaser, infelizmente — eu adoraria ter tido contato somente ao ver o filme). No lugar dos primatas, um grupo de meninas, ainda crianças, brincam juntas; e no lugar da chegada do monolito, a chegada da boneca loira, magra e de maiô. Para além da equiparação monolito-Barbie e do comentário sobre mudança e evolução, vale refletir sobre como morte, artificialidade e humanidade são temas explorados pelo clássico da ficção científica, e, também estão em “Barbie”, mesmo que de uma forma que busca menos complexidade e mais compreensão.
A Barbie principal, autodenominada Barbie Estereotipada (Margot Robbie), passa os dias, sempre iguais e sempre felizes, na Barbielândia, seu mundo perfeito e cor-de-rosa. Há total harmonia com outras Barbies (12 versões ganham algum destaque, incluindo uma Barbie mitológica, a Sereia, papel da cantora Dua Lipa, e a Barbie Presidente, papel de Issa Rae), os vários Kens e o Allan. Neste lugar utópico, as bonecas estão no comando, ocupando todos os espaços de poder e de trabalho, enquanto os bonecos são apenas acessórios. Hiperfeminilidade e sororidade estão expressas em cada detalhe. Interessante notar os detalhes da direção de arte e da construção da Barbielândia, onde tudo é feito e funciona não só tomando as referências diretas dos brinquedos (bonecas, roupas, objetos, casas, paisagens), mas também de como se brinca com eles, inclusive nas movimentações e diálogos das personagens. Este mundo só existe pelo ato de brincar das meninas reais. A Mattel vende os aparatos, mas são elas que definem como usá-los. Mais pano para manga sobre arte e indústria, identidade e representação. Ah, repare o matte painting nos cenários, pois esse recurso faz toda a diferença no conceito geral de um absurdo materializado.
Mas as coisas começam a sair de ordem, pois Barbie não consegue esconder que anda pensando sobre o impensável: a morte. E ainda, entre outros pequenos “defeitos” que vão surgindo, o mais significativo deles: seus pés em ponta, que nunca descem do salto, de repente se tornam pés comuns, planos, totalmente no chão, o que a faz cair — aqui, a informação de que um corpo real com as proporções da boneca não se sustentaria em pé é utilizada no roteiro como ótima ironia, assim como acontece em várias outras boas tiradas ao longo do filme.
Metaforicamente, tudo já está sendo dito: tamanha utopia é uma ilusão; tais lampejos de finitude e realidade lhe provocam a angústia necessária para fazer com que Barbie siga em uma jornada para além do mundo cor-de-rosa da perfeição (sua própria Matrix), que ela mesma ainda não faz ideia de onde vai dar. A princípio, seu desejo é de voltar à normalidade, mas suas experiências, descobertas e frustrações em território desconhecido a levam por uma busca de si mesma e por novos sentidos para sua vida até então de plástico. A crise existencial é, portanto, a essência da trama.
Pois então, não tá fácil pra ninguém, nem pra Barbie.
Inteligentemente, Greta Gerwig incorporou ao filme a crise e a controvérsia intrínsecas à história dessa figura feminina artificial e a perturbadora dissonância em torno do mito de mulher. Em seu “ato de imaginação”, a diretora (que também escreveu o roteiro ao lado de Noah Baumbach) propõe expor, de maneira cômica e irônica, sobre o principal causador das dores e de todo o tormento: o patriarcado. E, por meio da metalinguagem, ainda reflete sobre a simbiose desse sistema social ao sistema econômico do capitalismo.
É aí que entra o Mundo Real, paralelo à Barbielândia. É explicado para a Barbie, pela Barbie Estranha (Kate McKinnon) — a única capaz de salvar qualquer outra Barbie da… estranheza (!) — que ela precisa ir até o Mundo Real para tentar evitar seu próprio colapso e o da Barbielândia. Isso porque a crise foi desencadeada pela menina que brinca com a boneca. Ou seja, mulher-boneca e mulher-humana precisam se encontrar, mas para restaurarem a distância necessária entre elas. Se isso não é Gerwig apontando para a necessidade de uma reavaliação crítica dessa relação, eu não sei o que é. Mas como se aprofundar nisso em um filme da própria Mattel? Eita! Ao menos a semente está plantada.
Talvez esse aprofundamento seria mesmo mais interessante (e menos divertido, é verdade) do que a relação Barbie-Ken que ganha centralidade para a sátira dos papeis de gênero. E ainda porque a humana não é uma criança: Gloria (America Ferrera) é uma mulher latina, mãe da adolescente Sasha (Ariana Greenblatt), e as duas enfrentam uma tensão constante que, claro, não tem tempo de ser desenvolvida e se resolve quando se unem por um propósito comum. Mas salve Sasha, aliás, por usar a palavra fascista e nos lembrar daquele meme de outrora… sim, a Barbie Fascista.
Ken (Ryan Gosling), entre o jocoso e a sensibilidade disfarçada, vive apenas pelo propósito de ser notado pela Barbie e, numa atitude desesperada, coloca-se como companheiro em sua aventura, mesmo que a amada resista a essa ideia, inicialmente. Ao chegarem no Mundo Real, este é exatamente o “oposto”* da Barbielândia, com códigos, valores e funcionamento sob comando masculino. A estética e a ética são baseadas na masculinidade tradicional — até mesmo a Mattel, que fabrica as bonecas, é dominada por homens (qualquer semelhança com o a realidade que vivemos, não é mera coincidência). Porém, aos empresários são dedicadas muitas piadas fáceis e uma caricatura inofensiva. Apesar de serem divertidas autocríticas, eu desconfio seriamente que isso sirva muito mais ao objetivo de tornar a marca mais “legal” e mais próxima do público do que de fato fazer esse público questioná-la.
[*Observação: oposto vem com aspas aqui, pois é preciso atentarmos para o binarismo e a heteronormatividade de todo esse universo, de ambos os mundos. Quase não há espaço para o que é dissidente — lembrando: é um filme da Barbie!]
Não demora muito para que em “nosso” mundo, a Barbie se quebre. Enquanto o Ken se sente, pela primeira vez, um protagonista, e passa a querer que as coisas mudem em seu mundo de origem, voltando sozinho à Barbielândia para colocar o que aprendeu em prática. Na ausência da Barbie, ele consegue mimetizar, no mundo cor-de-rosa, o patriarcado que recém-descobriu, modificando-a para um reino não tão rosado assim, a Kenlândia. Todas as Barbies, antes com suas profissões e autonomia, agora estão submissas aos Kens. O clássico machista “traz minha cerveja” vira síntese do aprisionamento feminino. Tudo isso vai culminar, no final, numa disputa entre bonecos e bonecas, sendo que as estratégias “de guerra” usadas pela Barbies ironizam dinâmicas sociais e de poder das relações entre homens e mulheres. E algo muito importante: o próprio Ken acaba se conscientizando de como o novo sistema que ele aplicou também o reprime. Há um entendimento entre os dois lados.
Objetificada, assediada, desrespeitada pelos homens e, até mesmo, ridicularizada pelas meninas que encontra no Mundo Real (quando ainda acreditava ser uma heroína para elas), Barbie mostra, à sua maneira, a violência da opressão e do ódio ao feminino. Chega ao ponto de ela quase ser, literalmente, colocada de volta à sua caixa (alô pessoas que tiraram foto dentro da caixa fabricada pela publicidade do filme, baita contradição aí!). E começa, então, sua morte simbólica, que será, adiante, vencida pelo seu renascimento e transformação. Renascimento que só acontece porque ela é inspirada pela fúria não mais adormecida de Gloria (que também é quem encontra a solução final para salvar Barbielândia do domínio masculino), pelo esforço conjunto de outras Barbies, e pela guia da criadora, Ruth Handler (interpretada com ternura por Rhea Perlman) — uma das fundadoras da Mattel e quem inventou a boneca, em 1959 (ela faleceu em 2002).
É encantador o momento em que Barbie e Ruth conversam sobre a possibilidade que se abre para a boneca: tornar-se mulher. Já que, como boneca, especialmente como Barbie Estereotipada, ela mesma não se reconhece nem encontra um lugar. Barbie diz que não quer mais representar uma ideia, quer poder imaginar. A sacada aqui é perceber como as humanas ainda lutam por isso, especialmente no cinema. Já tivemos muitos ganhos, mas estão longe de serem suficientes.
Por isso a identificação bate forte com o monólogo indignado de Gloria sobre o quanto ainda somos assombradas e diminuídas pelas amarras patriarcais impostas às nossas identidades — um projeto de poder que constrói a ideia impossível de mulher para que as múltiplas mulheridades se dilacerem. Daí o sentimento constante de insuficiência, desmerecimento, incapacidade, inadequação. Mas a ironia: esse desabafo só reverbera em Barbielândia, quando consegue curar as Barbies da lavagem cerebral que sofreram pelos Kens. De volta ao Mundo Real, não temos dúvidas de que a vida segue com seu machismo estrutural — a ideia proposta por Gloria de uma Barbie Comum é uma pequena vitória e satisfaz a todos, mas não deixa de ser ingênua.
Por falar em vitória, o que Greta Gerwig executa como metalinguagem é fascinante. Ela parte de dentro da própria indústria cultural para apontar como esta age ideologicamente em nossos imaginários e percepções, tanto para o bem quanto para o mal. Basta que observemos as recriações, as figuras icônicas que são evocadas, tudo feito de maneira orgânica, ora satirizando, ora homenageando o que essas tantas imagens significam para nossa experiência humana. Há sequências típicas de várias produções da cultura pop, desde romances a animações dos Looney Tunes e filmes de ação com suas corridas de carros frenéticas. E nas referências aos musicais clássicos, os números de dança enriquecem a vibe camp e seduzem pelo espetáculo. Então, ela faz com que o familiar seja revisto com novos olhos, por uma lente crítica e feminista. Seu gesto não é inovador e nem radical, mas é um gesto político num espaço mainstream, pois propõe modificações na relação dos espectadores e espectadoras com a cultura pop do qual Barbie faz parte.
Entre outros aspectos que chamam a atenção, está o elenco bastante diverso, que aponta para a importância da pluralidade de corpos e etnias ocupando espaços e telas. Há, inclusive, uma Barbie com deficiência motora, que usa uma cadeira de rodas enquanto dança feliz em uma festa. Porém, tal pluralidade no filme é apenas de superfície, não sendo integrada totalmente ao feminismo que se apresenta na narrativa (falta interseccionalidade).
Por tudo isso e por tanto mais que não foi traduzido em palavras aqui (pela riqueza de detalhes e intertextualidade), Gerwig mostra que não brinca em serviço. Ou melhor, brinca, sim! Como só quem sabe muito sobre o que faz consegue brincar. Diante de todas as questões do início deste texto, a diretora não traz soluções perfeitas, pois nem poderia (ninguém pode com tantos paradoxos), mas explora de maneira desinibida o lugar da negociação. Abraçar as contradições entre o afetivo e o problemático, o nostálgico e o contemporâneo, o artístico e o comercial foi perspicaz e resultou em um filme com estilo e substância próprias, que conversa com um grande público por meio de um humor esperto e corajoso.
Ah! E só posso agradecer pela overdose de rosa em um mundo cada vez mais desencantado em cores sóbrias. ■
Onde ver "Barbie" no streaming:
Editora, crítica de cinema e podcaster do Cinematório. Filiada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e membra do Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Jornalista profissional pela UFMG e com formação em Produção de Moda pela mesma instituição. É cria dos anos 90 e do interior de Minas.