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“Fale Comigo”: Pouco ou quase nada a dizer

"Fale Comigo" (Talk to Me, 2022), de Danny Philippou e Michael Philippou - Divulgação

"Fale Comigo" (Talk to Me, 2022), de Danny Philippou e Michael Philippou - Divulgação

Um grupo de amigos descobre um objeto místico que lhes permite invocar espíritos. Não, não estamos falando de “Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio” (1981). O luto de uma protagonista é levado às últimas consequências após um ritual de contato com o mundo dos mortos. Não, também não é “Hereditário” (2018) o filme da vez. Apesar de parecerem muito familiares, as tramas destas duas obras retornam aos cinemas, agora combinadas e, a princípio, com uma nova roupagem. Digo “a princípio” porque demora pouco para percebermos que “Fale Comigo” (2022) ‒ estreia dos youtubers australianos Danny Philippou e Michael Philippou na direção de longas-metragens ‒ não tem nada de muito novo a oferecer.

O filme segue a jovem Mia (Sophie Wilde), que tenta superar a recente e misteriosa morte da mãe e é acolhida no processo de luto pelos irmãos Jade (Alexandra Jensen) e Riley (Joe Bird). Porém, quando o trio participa de uma brincadeira envolvendo uma mão embalsamada capaz de conjurar espíritos, a situação sai do controle e todos precisam confrontar manifestações violentas vindas do além. Com esta premissa, é natural que haja comparações com outros filmes de horror sobrenatural. E, sempre é bom lembrar, obra alguma tem a obrigação de ser inovadora ou surpreendente, ou ainda, de trazer alguma mensagem sobre os temas que lhe perpassam.

No entanto, “Fale Comigo” se apoia excessivamente nestas ressalvas e acaba se tornando um filme genérico, à procura de uma identidade que nunca chega. O longa australiano, mesmo partindo de duas premissas já exploradas ao extremo dentro do horror, até poderia se sair bem, não fosse a ausência quase total de elementos próprios e o frágil aproveitamento que estas poucas novidades encontram. Por um lado, ao investir no subgênero dos espíritos malignos, o enredo consegue introduzir um conceito diferente e interessante, associando o ritual de possessão espiritual a uma espécie de droga ou jogo adolescente, que vicia os convidados de cada festa em que é realizado e se torna uma boa justificativa para que os jovens continuem se submetendo ao ritual, mesmo com os desdobramentos cada vez mais dramáticos.

"Fale Comigo" (Talk to Me, 2022), de Danny Philippou e Michael Philippou - Divulgação
“Fale Comigo” (Talk to Me, 2022), de Danny Philippou e Michael Philippou – Divulgação

Por outro lado, esta boa ideia logo é abandonada, na medida em que a história começa a dedicar um amplo espaço ao luto de Mia. Mas, por qual razão dar protagonismo ao estado da personagem se daí só sairão obviedades? Ao longo do filme, entendemos que Mia teve depressão, se culpa pela morte da mãe, relembra frequentemente o convívio com ela e vê no ritual uma chance de reencontrá-la e descobrir as reais circunstâncias de sua morte. Todavia, tudo isso é absolutamente evidente, tanto do ponto de vista humano, quanto narrativo, desde o início do longa. “Fale Comigo” torna-se então um filme indeciso, que não consegue equilibrar seus aspectos mais trash e gore com o suspense psicológico e o drama humano. O resultado é um terror  que beira o inofensivo, com lampejos de originalidade, mas cuja concepção promissora é engolida por um drama pouco interessante, que não mergulha fundo no retrato do luto, e nem propõe algum tipo de reflexão acerca do processo ou de sua representação na ficção. Tal indecisão é perceptível até mesmo nos escassos momentos cômicos do filme. Seja no toque do celular de Jade, na montagem das possessões sucessivas na casa dos irmãos ou na estranhíssima cena envolvendo o cachorro da família, o humor presente no longa parece abrupto e anticlimático, como se inépcia dos irmãos diretores para lidar com o drama se estendesse também à comédia.

Os cineastas, contudo, parecem entender minimamente os mecanismos para a criação do horror e os recursos que a linguagem cinematográfica tem a oferecer. O filme acerta ao não apelar para o uso indiscriminado de jump scares, e nem para o choque recorrente. A partir de uma tensão bem construída e que é progressivamente acentuada pelo roteiro a partir das descobertas dos personagens, o longa consegue causar impacto real nos momentos certos, principalmente através da maquiagem e dos efeitos visuais, que ganham destaque nas poucas cenas mais explícitas.

A montagem também se mostra inteligente, ao nem sempre revelar o rosto da entidade que está sendo vista pela pessoa que segura a mão durante as sessões ritualísticas. Ao fazer isso, o filme atesta em termos práticos a máxima segundo a qual a imaginação humana sempre pode ir um passo além de qualquer imagem mostrada em detalhes. E, mesmo quando julga necessário e opta por não esconder o que os personagens estão vendo, a direção consegue se sair bem. É o caso de um momento breve que mostra um personagem central da trama sendo atormentado pelos espíritos. Os diretores sabem que o público precisa ser confrontado com aquelas imagens para que a tensão mental que envolve a decisão de uma outra personagem seja justificada.

"Fale Comigo" (Talk to Me, 2022), de Danny Philippou e Michael Philippou - Divulgação
“Fale Comigo” (Talk to Me, 2022), de Danny Philippou e Michael Philippou – Divulgação

Aliás, “Fale Comigo” tem êxito justamente quando se vale da gramática cinematográfica para evidenciar as inquietações e motivações dos personagens. É o caso da segunda cena do ritual, quando a direção de fotografia habilmente usa o foco e o desfoco para deixar clara, em termos imagéticos, a solidão de uma das pessoas frente ao relacionamento de outras, tornando compreensível o ímpeto da personagem de participar da experiência perigosa. A cinematografia também ganha destaque quando, pouco depois, mostra a chuva refletida no rosto desta mesma personagem, acentuando os conflitos que dominam sua consciência.

Não faltam ideias visuais interessantes como estas no filme dos irmãos Philippou. Uma pena que grande parte delas esteja a serviço de uma trama pouco criativa. O longa acena até mesmo para os filmes de horror de Jordan Peele ao criar metáforas utilizando animais. O cervo de “Corra!” (2017) aqui se torna um canguru ‒ afinal, estamos na Austrália, não é mesmo? Contudo, mesmo nisso, “Fale Comigo” acaba sendo previsível. Tão logo o canguru aparece, fica claro que a sua situação e até mesmo um diálogo em especial retornarão mais tarde, em outro contexto e aplicado aos personagens humanos do filme.

“Corrente do Mal” (2014) parece ser outra influência, sobretudo pelo imperativo em forma de súplica do título. O longa australiano está repleto de jovens cujas relações com os pais se encontram fraturadas. Mas ele não tem, nem de longe, a força social e a sofisticação temática da obra estadunidense. O que temos, no final das contas, é um filme inerte. Bem realizado, mas que não avança nas temáticas e abordagens já trazidas pelo horror há décadas. Por mais que se segure a mão que o filme estende, ele nos oferece muito pouco em troca. Chamar de charlatanismo seria exagero, mas não resta dúvida que “Fale Comigo”, infelizmente, tem pouco ou quase nada a dizer. ■

filme fale comigo

Nota:

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FALE COMIGO (Talk to Me, 2022, Austrália). Direção: Danny Philippou, Michael Philippou; Roteiro: Danny Philippou, Bill Hinzman; Produção: Samantha Jennings, Kristina Ceyton; Fotografia: Aaron McLisky; Montagem: Geoff Lamb; Música: Cornel Wilczek; Com: Sophie Wilde, Alexandra Jensen, Joe Bird, Otis Dhanji, Miranda Otto, Zoe Terakes, Chris Alosio, Marcus Johnson, Alexandria Steffensen; Estúdio: Causeway Films, Bankside Films; Distribuição: Diamond Films; Duração: 1 h 35 min.

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