"O Bígamo" (The Bigamist, 1953), de Ida Lupino - Imagem: Reprodução/Kino Lorber

Sobre homens perdidos e uma pioneira na direção: dois filmes de Ida Lupino

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O cinema, além de proporcionar experiências artísticas, reflexivas e sensoriais que nos marcam tanto a nível individual quanto na esfera coletiva, também é encantador por outras razões. A sétima arte já nasceu em um contexto de profundas e aceleradas mudanças sociais e culturais ao redor do mundo, e, justamente por isso, é fascinante observar, por exemplo, como questões até hoje intensamente debatidas já apareciam, mesmo nos primórdios e ao longo da consolidação do cinema. Mais interessante ainda é notar de que modo Hollywood, uma indústria especialmente conservadora e igualmente influente, foi palco de alguns dos mais inesperados dissidentes, verdadeiras fissuras dentro da estrutura rígida dos estúdios, da censura e do sistema de estrelas.

É surpreendente descobrir, portanto, que um imigrante japonês de nome Sessue Hayakawa se tornou um astro dos filmes silenciosos nos anos 1920. Ou que James Whale, diretor de clássicos cultuados como “Frankenstein” (1931) e “O Homem Invisível” (1933), era abertamente gay, trabalhando na indústria hollywoodiana durante toda a década de 30. Ainda, que alguns dos maiores filmes da Era de Ouro de Hollywood, como “Cantando na Chuva” (1952) e “No Tempo das Diligências” (1939), foram montados por mulheres ‒ respectivamente, Adrienne Fazan e Dorothy Spencer. Outra Dorothy, de sobrenome Arzner, foi quem abriu as portas do mundo mágico de Hollywood para as diretoras mulheres após a chegada do som ao cinema, embora já dirigisse filmes silenciosos desde a segunda metade da década de 1920. Sendo praticamente a única diretora ativa em Hollywood nos anos 1930 e 40, a aposentadoria de Arzner em 1943 provocou um vácuo no cinema estadunidense que só foi preenchido no final da década.



E é aí que chegamos a Ida Lupino. A atriz, roteirista, produtora e diretora independente que fez carreira em Hollywood ostenta vários feitos notórios. Ela foi a única diretora em atividade na década de 50, e também a única a fazer parte do Sindicato dos Diretores na época (a segunda a entrar para a organização, justamente após Arzner). Foi ainda a primeira mulher tanto a realizar um filme noir, “O Mundo Odeia-me” (1953), quanto a dirigir e atuar simultaneamente em um filme falado, “O Bígamo” (1953), dois filmes de elevadíssima qualidade. Você que lê este texto deve ter percebido que as duas obras estrearam em 1953, o que coloca a cineasta britânica (radicada nos Estados Unidos) no ilustre grupo de diretores e diretoras que lançaram mais de um excelente filme no mesmo ano. Nada mais justo então do que falar sobre como estas obras são exemplares do talento cinematográfico que foi Ida Lupino.

Lançado em março de 1953 e baseado na onda de assassinatos praticados pelo criminoso William “Billy” Cook, “O Mundo Odeia-me” (“The Hitch-Hiker”, ou “O Caroneiro”, em tradução literal) segue dois amigos cujo trajeto de carro é interrompido por um assassino sádico fugido da cadeia, o qual os obriga a ajudá-lo a escapar. Emmett Myers (William Tallman) começa o filme roubando dois carros e assassinando três pessoas. Assim, a partir do momento em que ele pede carona e é atendido por Roy Collins (Edmond O’Brien) e Gilbert Bowen (Frank Lovejoy) durante uma escapadela dos dois para o México, já sabemos que a sobrevivência dos protagonistas não é garantida.

“O Mundo Odeia-me” (The Hitch-Hiker, 1953), de Ida Lupino – Imagem: Reprodução

O que salta aos olhos de imediato em “O Mundo Odeia-me” é o quanto o filme adianta, em pelo menos duas décadas, a premissa dos filmes slasher, com um assassino implacável ‒ o sobrenome Myers parece ser apenas uma irônica coincidência ‒ que faz cada vez mais vítimas, embora falte ao filme vários dos elementos específicos do slasher, como as armas pontiagudas e a máscara do assassino. Ainda assim, em uma época na qual as obras de suspense e de horror ainda trabalhavam com ameaças externas (principalmente criaturas extraterrestres), Lupino já colocava em seu longa-metragem que a ameaça poderia vir de dentro dos Estados Unidos, e estar à espreita em qualquer estrada do país.

Aliás, o antagonista em “O Mundo Odeia-me” é, sem dúvida, um personagem sui generis, talvez um pai de Anton Chigurh, tamanho o senso de ameaça que ambos os antagonistas provocam tanto em outros personagens quanto no próprio público. Começando por sua pálpebra direita paralisada, o que torna Emmett Myers uma presença que nunca fecha os olhos, literalmente. Por isso mesmo, ele parece ser muito mais uma representação de terrores sociais mais amplos do que um simples vilão individual. O racismo do personagem contra mexicanos é exposto em vários momentos e, em determinada cena, o próprio Myers demonstra um profundo ressentimento com a família e a sociedade em geral. Ou seja, trata-se de um certo tipo de homem estadunidense do pós-Segunda Guerra, amargurado com o que seu país falhou em lhe oferecer, e canalizando esse ódio para grupos que ele considera inferiores (no caso, os latinos).

O perigo representado pelo personagem já fica claro nos primeiros minutos do filme, e a direção precisa de Lupino, auxiliada pela hábil cinematografia assinada por Nicholas Musuraca (presença recorrente na direção de fotografia de filmes noir), são fundamentais para construir o terror em torno da figura do caroneiro. Nos primeiros instantes, o vilão é mostrado apenas através de sua sombra na estrada, ou em uma foto no jornal, ou ainda por meio de alguma parte de seu corpo (mãos e pés) à medida que executa seus benfeitores.

Porém, quando Bowen e Collins lhe dão carona, a face do assassino finalmente toma vida. Exibindo um uso exemplar de iluminação e movimentação de câmera, o filme nos mostra o criminoso totalmente envolto em sombras enquanto entra no carro e se senta, e seu rosto somente é iluminado quando um travelling para frente avança sobre a face ameaçadora do bandido, que amedronta os protagonistas com uma arma de fogo. Depois do close-up, um novo travelling, agora para trás, coloca novamente os amigos no quadro, instaurando a tensão que se seguirá ao longo de todo o filme. A iluminação também será decisiva na última cena do filme, quando a vida de um dos protagonistas é posta em risco pelo assassino, e a face iluminada do personagem reforça sua condição de alvo e toda a angústia levada ao clímax.

Neste sentido, e contrariando totalmente os estereótipos segundo os quais mulheres cineastas invariavelmente dirigem filmes “com maior delicadeza”, ou sobre “questões femininas”, Ida Lupino realiza um filme absolutamente cru e, mais incomum ainda para a época, focado em personagens masculinos. E nada disso parece gratuito. À medida que a trama se desenvolve, fica claro que o estilo realista e quase rudimentar do longa (situado majoritariamente em paisagens desérticas e arenosas, que são aproveitadas até nas transições de cenas) é imprescindível na criação da atmosfera de perigo, isolamento e desesperança que acompanha os viajantes a partir de seu encontro com Myers. O enredo também pode ser lido como um comentário sobre masculinidade, na medida em que Bowen e Collins são continuamente humilhados pelo assassino, e muitas vezes ridicularizados por uma suposta “fraqueza” ou “covardia” que os impediria de fugir e/ou reagir; ao final, contudo, quando eles já começavam a perder as esperanças de escapar, o que os salva é a amizade, o companheirismo e o cuidado recíproco.

Contudo, se em “O Mundo Odeia-me” temos uma resolução minimamente positiva (apesar do trauma que os personagens provavelmente levarão da experiência com o assassino), o segundo filme dirigido por Ida Lupino em 1953 trabalha em uma chave muito mais pessimista. Lançado em dezembro daquele ano, “O Bígamo” se distancia totalmente da ação crua e do universo masculino levado às telas pela cineasta alguns meses antes, e apresenta ao público uma trama essencialmente melancólica e por vezes melodramática, que transita entre o drama romântico e o filme noir.

De todo modo, assim como em seu filme anterior, aqui também temos uma trama centrada no conflito entre três pessoas. O título é auto-explicativo: esta é a história de um homem (Edmond O’Brien) que mantém dois casamentos simultâneos. Para Eve (Joan Fontaine)  e seu círculo social, ele é Harry Graham. Já para Phyllis (Ida Lupino), ele assume a identidade de Harrison Graham.

“O Bígamo” costuma ser encarado como uma obra competente, mas menos aclamada de Lupino, talvez por seu estilo ostensivamente clássico e sua abordagem tida como mais sentimental. No entanto, o que vemos aqui é um trabalho de direção sóbrio e consistente, colocado a serviço de uma narrativa visualmente muito elegante ‒ os figurinos e o design de produção são os primeiros a saltar aos olhos ‒,  a um só tempo sensível e fatalista.

O personagem-título, catalisador deste triângulo amoroso inusual, oferece um vislumbre da ideia geral por trás do filme. “O Bígamo” é, antes de tudo, a história de um homem perdido ‒ os planos do personagem à frente das ladeiras de São Francisco ou em frente à janela do hotel com flashes de luz parecem um prelúdio, meia década antes, do “Scottie” Ferguson de James Stewart em “Um Corpo que Cai”. Porém, Harry não está sob risco concreto como os amigos de “O Mundo Odeia-me”. Segundo suas próprias palavras, a solidão o levou à bigamia. Mas, se observarmos bem, o que precipita Harry Graham à perdição é, também, seu orgulho masculino ferido. O protagonista deixa claro, mais de uma vez, que o protagonismo de Eve nos negócios o deixa desconfortável. Ela tem menos tempo para a relação deles, é verdade ‒ eis uma curiosa inversão do clichê da mulher preterida pelo marido empresário.

Mas Harry se incomoda de fato com a independência da esposa, que demonstra ter adquirido um profundo domínio (inclusive técnico) do negócio gerido pelos dois. À medida que detalha seu envolvimento com Phyllis ao agente de adoção (Edmund Gwenn), ele diz algo que voltará mais tarde no filme, e que parece ser a essência da tribulação pela qual o personagem passa: “Pela primeira vez, me senti necessário; Eu amava Eve, mas nunca senti que ela precisava de mim”. Ou seja, para este homem, a ideia de se relacionar com uma mulher que não depende dele é inconcebível. Não por acaso, Eve não pode ter filhos biológicos, e é com Phyllis que Harry acaba realizando, ainda que involuntariamente, seu desejo de ter uma esposa que permaneça em casa cuidando do filho.

Ou seja, em “O Bígamo”, o personagem principal é levado, quase que inconscientemente, a perseguir uma vida compatível com os padrões sociais prescritos aos homens. Ironicamente, Harry Graham acaba por se tornar um criminoso, rejeitado e punido pela mesma sociedade cujas normas simbólicas nortearam sua conduta. E, se nada disso é explicitamente dito no filme (mas pode ser lido nas entrelinhas), a hipocrisia social é alvo direto da crítica de Lupino. Ao final do longa, o advogado de defesa de Harry é preciso, no tribunal, ao explicar como a sociedade julga moralmente as ações do protagonista, muito embora ele tenha tomado a atitude correta ao ter assumido o filho de Phyllis e se casado com ela.

“O Bígamo” (The Bigamist, 1953), de Ida Lupino – Imagem: Reprodução/Kino Lorber

Tudo isso transforma o filme em uma experiência singular. Embora tenha elementos de drama, romance e noir, um dos aspectos que se destaca em “O Bígamo” é justamente este enredo complexo, que não oferece personagens simplórios ao público, e tampouco dá à audiência escolhas e avaliações fáceis. Ainda mais do que Harry, Eve e Phyllis também são conduzidas por caminhos totalmente alheios às suas vontades. Enquanto a personagem de Joan Fontaine precisa lidar com o agravamento da saúde do pai, o trabalho e o processo de adoção de uma criança, Phyllis tem a vida totalmente transformada a partir de seu encontro com o protagonista, largando seu emprego e tendo que se preparar para a chegada de uma criança.

 As atrizes dão vida às personagens de modo igualmente habilidoso, tornando os olhares e a voz instrumentos essenciais para a compressão da humanidade por trás daquelas figuras. Me lembro, por exemplo, de quando Phyllis se declara apaixonadamente para Harry durante a dança no restaurante, ou do choque inscrito no rosto de Eve ao descobrir a traição do marido, ou ainda, o misto de mágoa e decepção silenciosas que as duas compartilham na última cena, no tribunal, quando são confrontadas com a verdade sobre o homem que amam.

Ida Lupino, com sua voz grave em frente às câmeras ‒ curioso como ela é a antítese completa de outra Phyllis, a sórdida femme fatale interpretada por Barbara Stanwyck em “Pacto de Sangue” (1944) ‒, consegue construir uma personagem que é vulnerável, mas também (e sobretudo) altiva. Phyllis vive sua própria vida e, quando engravida de Harry, é relutante ao aceitar o casamento motivado sobretudo pela criança que está por vir. A personagem foge tanto do estereótipo sexista da mulher que busca ascender socialmente por meio do casamento, quanto do também misógino lugar-comum da mulher inocente e indefesa que precisa ser protegida pelo homem com o qual se envolveu.

Por trás das lentes, a Lupino cineasta também demonstra a segurança de uma diretora que sabe exatamente a história que quer contar, e de que modo se valer da linguagem cinematográfica para narrar os acontecimentos. Prova disso é a mobilidade da câmera, que, quando necessário, se desloca com desenvoltura pelos espaços para enquadrar alguma ação ou reação importante dos personagens. Também estão presentes as características sombras, típicas do cinema noir, que envolvem Harry e o ambiente nos momentos em que ele está com Phyllis, representando a duplicidade que o protagonista leva consigo. De forma semelhante, quando o protagonista descobre a gravidez de Phyllis e tenciona contar a verdade para Eve, um contra-plongée do personagem andando na rua o equipara imageticamente a um dos prédios de Los Angeles, deixando claro o peso que o homem está carregando.

Por estas e outras várias razões, Ida Lupino deveria ser mais amplamente conhecida e reconhecida por sua coragem, disposição e talento ao dirigir filmes muitas vezes focados em personagens masculinos, jogando luz em questões controversas de sua época. Ela combinava a visão de uma cineasta autoral ao pragmatismo de uma diretora comercial, sempre economizando no orçamento e no tempo, e, ainda assim, entregando obras esteticamente sofisticadas e narrativamente complexas. De atriz contratada por estúdios hollywoodianos à pioneira do cinema independente e da televisão, Lupino demonstrou para a indústria e para o público da época, em termos práticos, que uma mulher pode assumir a direção e realizar filmes formidáveis, como “O Mundo Odeia-me” ou “O Bígamo”. Mais do que um ponto fora da curva na Era de Ouro de Hollywood, Ida Lupino precisa ser celebrada por sua obra. Que seus filmes continuem a ser descobertos e redescobertos, e seu nome siga provocando fascínio naqueles que se encantam a cada novo (ou nova) dissidente que descobrem ter tido um papel central na história do Cinema.

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