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Berlinale: são tantas coisinhas miúdas

Berlinale - Foto: Songyang/Unsplash

Berlinale - Foto: Songyang/Unsplash

crise festival de berlim

Ah, como eram lindos aqueles Anos Dourados, quando a ansiedade pela chegada do mês de fevereiro marcava o início do ano.  As primeiras semanas do ano eram dedicadas às cabines, para jornalistas que vivem na capital.  Até a primeira ou segunda semana de janeiro, era deixar a vida passar. A Berlinale era a vertente do calendário e do relógio interior. Até 2020, o maior evento cultural da Alemanha foi o último mega-evento no mundo da cultura, antes do mundo capotar.

Eram dez dias de uma viagem por diversas telas, cores e estilos e a questão filosófica tomava novos rumos na hora de decidir a qual filme assisitr e qual, não. A maratona cinematográfica da Berlinale faz um festival de filme documentário, no formato do DocLisboa, parecer um passeio descalço na beira da praia.

A proveniência mais esperada dos filmes era a de países sem uma tradição cinematográfica ou com tão pouco dinheiro, que resultava em verdadeiros atos de amor e resistência, como foi no caso do Brasil nos seis anos de escuridão do negacionismo burro e ignorante. A Berlinale sempre esteve de portas abertas para filmes autorais brasileiros, mesmo que seus curadores não fossem exímios conhecedores da cinematografia brasileira. Mas a Berlinale fez muitos acertos no que diz respeito ao cinema nacional.

Foi na Berlinale que um roteiro que ficou mais de 10 anos na gaveta desabrochou e foi viajar para os mais improváveis cantos do mundo. Como traduzir para países como a Coreia do Sul e a Indonésia, a cena de Val (magistralmente vivida e eternizada por Regina Casé) consternada por uma pessoa ser capaz de colocar a forma de gelo de volta na geladeira, VAZIA. “Que Horas Ela Volta?”,  obra-prima de Anna Muylaert, que é tão a cara da Berlinale na cena em que Val, finalmente, “toma posse” da piscina.

“Russa”, do diretor português João Salaviza com uma cena de abraço transcendente entre duas irmãs em frente ao elevador do prédio que estava com dias contados, devido ao galopante processo de especulação imobiliária. E a Dora, hein? Aquela dona de feições rígidas, olhos empapuçados que arrebataram os críticos mais severos de Berlim com “Central do Brasil”, trabalhando em escrever cartas que ela não envia, minimizar distâncias, criar pontes, afetos. A Dona Fernanda levou pra casa o Urso de Prata como melhor atriz e o Waltinho (Salles), o de Ouro.

Filmes como esses formam o argumento da Berlinale, uma Red Line de coerência no contar de histórias únicas e posicionadas na dramaturgia de tal maneira, que o mundo inteiro chorou e gargalhou com elas. Esse DNA se manteve mais ou menos firme durante toda a história de mais de 70 anos.

Modernidade & as Leis do Capital

O zeitgeist trouxe as séries, as plataformas de streaming colocando o mercado de cinema de cabeça para baixo, mas há prova de que a resistência ainda é possível de exercitar, como mostra o diretor recifense Kleber Mendonça Filho. “Retratos de Fantasmas”, uma escrachada declaração de amor aos cinemas como espaço físico, como aeroporto para decolar, entrar na tela, como naquela obra-prima de Woody Allen. Kleber fez questão de imprimir já mesmo no cartaz: “Só nos cinemas”. A coerência e audácia do diretor é um fator exótico, como mostra o andar da carruagem na gerência, ou melhor, no desmantelamento da Berlinale, O FESTIVAL DE PÚBLICO, o mais democrático e, até então, com lugar cativo entre Cannes e Veneza. Mas a partir de agora, a Berlinale está “de mudanca”.

Mesmo com inúmeras crises de identidade (a financeira só apareceu depois da epidemia da Covid-19), a Berlinale se mantinha fiel ao olhar para “além da beira do prato”, como ensina um ditado popular no país de Wim Wenders, Nastassja Kinski e Christian Petzold, este último também assinante da carta de repúdio ao comportamento da ministra alemã da Cultura e Mídia, Claudia Roth (Verdes). Martin Scorsese e também a primeira linha do cinema português, nas pessoas dos diretores de João Pedro Rodrigues e João Victor Guerra da Matta, estão entre os mais de 400 diretores e diretoras que assinaram a carta em protesto contra a forma como foi lidado o desligamento do diretor artístico Carlo Chatrian e pleiteando o prolongamento de seu contrato.

Scorsese considerou o comportamento da ministra como “imoral”.

Subordinação ao mercado

As diversas notas de imprensa exigindo uma dieta para a Berlinale como a extinção da mostra Berlinale Series, da Perspectiva do Cinema Alemão e da premiação de gala do Urso pelo Conjunto da Obra são só uma parte do cenário indigno criado por Claudia Roth.

Mesmo antes do terremoto cultural que causou dentro do país e com desdobramento expressivo no exterior, o festival já estava na mesa de operação do CTI, sendo obrigado a se submeter à cirurgia bariátrica cultural, estrangulado pelas leis do mercado; simplesmente tudo o que a Berlinale não fazia até então. Vivemos um momento de mudança de paradigma, de como o festival se define, sim. É mesmo a questão do DNA.

O que Claudia Roth fez de pior, além de desfigurar o maior festival de público do mundo e o terceiro na lista dos festivais Categoria A, foi desmontá-lo de forma programática, arranhar, e muito, a sua imagem de um festival glamoroso, mas rebelde e que enveredava por outros caminhos.

Público do Berlinale Palast - Foto: Jan Windszus © Berlinale 2010
Jan Windszus © Berlinale 2010

Terra queimada

Com essa desova de Chatrian, depois de, como ele afirma, ter sido enganado, como uma dobradinha em estado de decomposição com diretor & CEO irá conceber a versão 2024? Qual será o respaldo do Ministério? Como irão se alinhar as demandas temáticas? Como Chatrian irá aparecer na frente do público e de convidados e fazer cara bonita num jogo sujo, durante 10 dias da Berlinale 2024? Este ano já não houve a festa de confraternização de diretores da mostra Panorama, importantíssima plataforma para network. A cerimônia de abertura, antigamente um verdadeiro banquete com cinco andares de delícias gastronômicas, este ano só ofereceu canapé de preztel, que só não ficou na garganta porque as bebidas ainda eram fartas.

Tudo mudou

A quarta economia do mundo, Alemanha, mutilando o seu maior evento cultural, o seu maior cartão de visitas. Agora, a menina dos olhos da vitrine para o mundo virou instrumento de regulação nas mãos de uma ministra atrapalhada. Logo ela, que antes de assumir o cargo era presença constante nas primeiras filas dos teatros e cinemas, ratificando “a importância da cultura”. Sua credibilidade agora já sofreu grandes fissuras. Nem pensar como será a reação do público e dos convidados na noite de abertura do festival.

Vacuum

Em gestões eficientes, alinhavadas e bem pensadas, muito antes de se demitir uma pessoa de cargo de confiança com a simbologia da Berlinale, monta-se uma banca de seleção que brilha pela diversidade e por um horizonte que vá muito além das fronteiras germânicas, e isso necessita tempo e esmero. Todo ministerío tem seus especialistas, mas o Ministério da Cultura e Mídia está longe de ter uma banca.

O estrago que Claudia Roth causou na imagem do festival é histórico desde já. Nem mesmo o ex-diretor da Berlinale, o sisudo Moritz de Hadeln, que tinha como agravante o seu conhecimento (para ser eufemista) rústico da língua alemã e contabilizava índices negativos de simpatia, causou tanto dano à imagem do festival. Quanto às lesões e fissuras no âmbito programático, só a próxima edição irá reverberar os efeitos dos cortes já anunciados em 2023.

Chatrian decidiu jogar a toalha publicando, na página do festival, texto no qual lamentava e choramingava pela forma com a qual foi tratado. Nesse meio tempo, o texto sumiu do site da Berlinale, atestando a falta de alinhamento da diretoria com o departamento de imprensa e com o âmbito ministerial.

Berlin não é Locarno. Nunca foi!

Carlo Chatrian nunca se encaixou em Berlim. Sua expertise em cinema europeu é inquestionável. Ele colocou uma avalanche de filmes europeus na competição, deixando-a desestruturada e esfarelada. Ao longo dos anos foram coisinhas miúdas que, no somatório, se tornaram um ciclone.

O ex-diretor do Festival de Locarno é isento de carisma, simpatia e coolness. Suas aparições (e eram poucas) ao lado da holandesa e CEO do festival, Mariëtte Rissenbeek, eram de causar vergonha alheia. Em postura submissa, ele ficava ao lado dela como se fosse um aluno de recuperação ao lado da rígida diretora da escola. Sua incapacidade de falar a língua alemã não lhe somou pontos. Suas breves frases na língua de Schiller & Goethe foram politicamente corretas, mas sem semântica, sem conteúdo.

A Mostra Competitiva já vinha sofrendo de uma crise de identidade depois que o ex-diretor Dieter Kosslick deixou de ser um visionário e corajoso pouco antes dele sair pelo mundo procurando filmes ainda a ser finalizados. Como quando foi para Los Angeles levar um dedo de prosa com Clint Eastwood, assistir ao seu mais novo filme numa sessão de cinema exclusivíssima para evitar que ele fosse para Cannes. Ou ter conexão direta com Martin Scorsese e trazer para Berlim “Shine a Light”, protagonizado pela melhor banda do mundo.

Sob a diretoria de Dieter Kosslick, desde 2012, a Berlinale tinha o melhor embaixador, a maior harmonia, no contraponto, de um festival da chamada Categoria A e de público. Para Kosslick, esses dois itens nunca formaram uma dicotomia.

A mostra Encounters, criada por Chatrian, não soube dizer ao certo a que veio e ficou como uma roupa pendurada no varal, sem harmonizar com nenhuma outra mostra do festival. Claro que os dois anos da pandemia do coronavírus, com um festival reformulado para o mês de julho durante o verão europeu e temperaturas arábicas (2021 e 2022), exigiu muita criatividade e jogo de cintura do governo alemão.

A partir da edição de 2025, o festival (ou o que tiver sobrado dele),  retorna ao formato comandado somente por um diretor ou diretora. Ele (ou ela) terá que colher os cacos gerados pela ministra e desovar a terra queimada espalhada por todo o entorno de Potsdamer Platz. O repúdio passou por vários países da Europa e foi chegar até lá em Hollywood.

Seja como for: a Berlinale nunca mais será a mesma. Da forma que a gente conhecia, a Berlinale morreu.

Viva a Berlinale!

Berlinale Palast © Alexander Janetzko / Berlinale 2020
© Alexander Janetzko / Berlinale 2020

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